“Pensei que fosse barulho de escapamento de moto, mas quando ouvi meu vizinho desesperado, batendo no portão, e vi um corpo ensanguentando, descobri que era meu filho”. Esta é a imagem que vem à cabeça da diarista Elvira Ferreira, 58, quando recorda o momento que presenciou seu filho Ricardo Ferreira Gama, 30, sendo morto.
Auxiliar de limpeza na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) de Santos (72 km de São Paulo), Ricardo foi morto há exatos dois meses, no dia 2 de agosto, após receber oito tiros a queima-roupa em frente à sua casa, na Vila Mathias. “Ele estava deitado, com as mãos pra cima. Aquelas mãozinhas gordinhas dele”, relembra. “Hoje não sei mais quem eu sou.”
Os principais suspeitos pela morte de Ricardo são três policiais militares que foram vistos agredindo o auxiliar de limpeza dois dias antes do crime, ao lado da Unifesp, antes do inÃcio do expediente. Após a repercussão do episódio, os três foram afastados da corporação pela cúpula da PM, e o DHPP (Departamento de HomicÃdios e Proteção à Pessoa) da PolÃcia Civil assumiu as investigações.
As agressões foram presenciadas pelo chefe de Ricardo, um supervisor de limpeza chamado Carlos, e por estudantes da universidade, que registraram as ações em vÃdeo. De acordo com Elzira, as agressões tiveram inÃcio depois que o filho bateu boca com os policiais, após ser xingado por eles.
Ricardo chegou dez minutos antes do horário que costumava entrar no trabalho e decidiu fumar um cigarro, quando viu os três PMs entrando em uma casa vizinha. Curioso, foi observar o que os policiais faziam, sendo agredido por eles na sequencia. O auxiliar de limpeza ficou bastante machucado e foi levado ao pronto-socorro pelos próprios PMs. O chefe dele o acompanhou o tempo todo.
A repercussão do caso preocupou Ricardo, segundo sua mãe. Ele gostava de sair à noite e costumava chegar tarde em casa, sozinho. Para evitar consequências mais graves, ele desejava “abafar o episódio”: decidiu não registrar boletim de ocorrência e pediu aos estudantes da Unifesp e à própria universidade que não levassem a história adiante.
Elvira acha que o filho morreu porque tinha passagem pela polÃcia por tráfico de drogas. “Ele teve uma passagem, mas era muito amoroso, brincalhão, trabalhador. Ele tinha acabado de comprar um tênis para pagar em três prestações. Eu terminei de pagar.”
A diarista afirma que preferiria ver o filho preso pelo suposto desacato aos policiais. “Que ele passasse dez anos na cadeia, que eu ia lá, o visitaria todo domingo. Era meu único filho.”
Elvira participou hoje de um evento organizado por vários movimentos sociais em função do aniversário do Massacre do Carandiru, que completa 21 anos nesta quarta-feira (2). Os organizadores se articulam para levantar a pauta da desmilitarização da polÃcia. Entre os movimentos estão o Mães de Maio — que acusa a PolÃcia Militar pela morte de 493 pessoas após os ataques do PCC, em maio de 2006; Rede 2 de Outubro; o Tortura Nunca Mais; e o Movimento Passe Livre.
As entidades vão promover um ato no final da tarde de hoje em frente ao Teatro Municipal, no centro de São Paulo. No sábado, haverá outra manifestação, no Parque da Juventude, na zona norte, mesmo local onde funcionou o Carandiru. Os familiares do auxiliar de pedreiro Amarildo Souza, desaparecido há quase três meses no Rio de Janeiro, devem comparecer.
“Queremos uma polÃcia desmilitarizada. O corporativismo faz com que os policiais gozem de impunidade. A cultura das instituições é do extermÃnio, foi o que sobreviveu da ditadura militar”, afirma Débora Silva, lÃder do Mães de Maio, cujo filho foi morto em 2006 também em Santos. “Eu paguei a bala que matou meu filho.”