Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil
São Paulo – O uso excessivo da violência pela polÃcia não acabou após o episódio do Massacre do Carandiru, em que 111 detentos foram mortos pelas tropas que ocuparam o Pavilhão 9, no dia 2 de outubro de 1992. Passados 20 anos do massacre, ainda falta controle à PolÃcia Militar. “Quando não se pisa no freio, a polÃcia extrapola porque é mais fácil trabalhar com violênciaâ€, disse Guaracy Mingardi, especialista em segurança pública e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista à  Agência Brasil.
Mingardi é cientista polÃtico, com doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e já foi secretário de Segurança Pública de Guarulhos, assessor do procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo e subsecretário nacional de Segurança Pública.
O especialista critica a polÃtica de segurança do estado de São Paulo e defende que é preciso “pisar no freio†para evitar excessos na atividade policial. “Combater excesso da polÃcia é controle. E controle é mandar a mensagem certa, que é avisar: passou desta linha será processadoâ€, acrescentou.
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Segurança Pública disse que não falta controle à polÃcia do estado. “As polÃcias são controladas internamente por corregedorias e, externamente, fiscalizadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Falar em falta de controle é má-fé ou sandiceâ€, disse o órgão.
Sobre a crÃtica de que o governador Geraldo Alckmin estaria passando a “mensagem errada†à população ao promover a comandantes das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) policiais envolvidos no massacre de 1992, a secretaria respondeu que “a polÃcia é treinada para agir de acordo com a lei†e que, sempre que há excessos, os policiais são punidos. “Importante lembrar que, neste ano, três policiais da Rota foram presos depois de serem acusados de homicÃdio em uma ação. A mensagem, portanto, sempre foi a de agir dentro da legalidadeâ€, destacou a secretaria em nota.
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Mingardi à  Agência Brasil:
Agência Brasil (ABr): Em 2000, um documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) dizia que o histórico da PolÃcia Militar de São Paulo na época do massacre, em 1992, “era de uso excessivo de violênciaâ€. Esse excesso policial continua ocorrendo nos dias de hoje?
Guaracy Mingardi: O excesso da polÃcia não acabou ali. Houve um momento de tentativa de controle sobre isso, que foi no começo do governo Covas [governador Mário Covas], nos primeiros quatro anos [de mandato, entre 1995 e 1999]. Depois, no segundo mandato Covas e no começo do mandato Alckmin [Geraldo Alckmin, 2001-2003]. Logo depois que o Covas morreu [2001], continuou mais ou menos porque havia interesse da Secretaria de Segurança Pública. Depois disso, foi relaxando, não houve continuidade, não houve uma preocupação em segurar a polÃcia porque a grande questão é a seguinte: com a polÃcia, em qualquer lugar do mundo, é preciso pisar no freio. Quando não se pisa no freio, a polÃcia extrapola porque é mais fácil trabalhar com violência. Há uma tradição de violência por parte da polÃcia, de várias décadas, que se agravou muito nos anos 1970, quando os militares assumiram as PMs. A PolÃcia Militar de São Paulo não existia. Havia a Força Pública e a Guarda Civil, que não era municipal, era estadual. Por decreto-lei, as duas foram unificadas e se transformaram na PolÃcia Militar, em 1969. E foi posto um general para comandá-la. Isso dá outro tipo de enfoque porque o enfoque militar é diferente do policial.  Enquanto o policial é treinado para identificar e capturar, o militar é treinado para abater o inimigo e fazer com que ele se renda de qualquer forma. A partir daÃ, a PolÃcia Militar, que tinha sido criada recentemente em São Paulo, foi ficando cada vez mais violenta.
ABr: Com o Carandiru, essa violência cresceu?
Mingardi: Depois do Carandiru, houve um decréscimo disso, mesmo durante o governo Fleury [Luiz Antonio Fleury Filho, governador de São Paulo entre os anos de 1991 e 1995]. A incidência de mortes diminuiu. Mas, depois, a coisa voltou a ter outro enfoque. Começamos a ter administrações que pisaram no acelerador e não no freio da polÃcia. O acelerador é dizer para a polÃcia: vá lá e resolva. O freio é dizer: vá resolver dentro de determinadas caracterÃsticas. Qualquer polÃcia do mundo tem tendência a extrapolar. A polÃcia da Inglaterra mata menos em três anos do que matamos em duas semanas em São Paulo. Se você disser para ela: ‘se for um terrorista, atire na cabeça antes de ele explodir uma bomba’, eles matam um brasileiro que está correndo com uma mochila nas costas para pegar o trem do metrô [Jean Charles de Menezes foi morto por engano pela polÃcia londrina em 2005]. Se isso acontece na polÃcia londrina, imagina na polÃcia brasileira que não tem nenhum tipo do controle centenário que existe lá.
ABr: Tivemos o Carandiru, em 1992, com 111 detentos mortos, e os Crimes de Maio, em 2006, com mais de 400 mortos…
Mingardi: Esse já é outro momento. Aquele controle [policial, logo após o Massacre do Carandiru] já estava caindo. Em 2006, já era a segunda gestão do Alckmin e já havia mudado a estrutura da Secretaria de Segurança. Aà ocorreram os ataques do PCC [Primeiro Comando da Capital] e o que acontece em seguida? Você aumenta a liberdade da polÃcia e a polÃcia volta a fazer bobagem porque é sempre mais fácil trabalhar com violência. Aà foi crescendo. Quando o governador diz ‘quem não resistiu está vivo’ [frase do governador Geraldo Alckmin, dita logo após uma operação realizada pela Rota, em setembro deste ano, na cidade de Várzea Paulista, em que nove pessoas morreram e nenhum policial ficou ferido], antes de saber exatamente o que ocorreu, ele já está dizendo que [a polÃcia] pode fazer o que quiser. Tenho dúvidas se o governador sabia das implicações do que estava dizendo. Depois de 2006, isso foi crescendo porque, por exemplo, foi colocada [no comando] da Rota gente com passado complexo, conhecida como policial violento. O último que saiu da Rota [o tenente-coronel Salvador Madia foi substituÃdo esta semana no comando por Nivaldo Cesar Restivo] esteve no Carandiru [os dois são réus no processo que investiga os culpados pelo massacre]. E você acaba promovendo essa pessoa para comandante da Rota? É a mensagem errada.
ABr: Você fala em controle. Como fazê-lo? Esse controle sobre a polÃcia é possÃvel?
Mingardi: Tivemos, no ano do Carandiru, 1.490 mortos pela polÃcia. Um recorde paulista e talvez brasileiro. Dois anos depois, havia caÃdo para 400 [mortes], diminuindo para menos de um terço. Se você consegue diminuir, em pouco tempo, para menos de um terço, em um trabalho de médio prazo se conseguiria diminuir muito mais e manter a segurança. Quando os homicÃdios começaram a cair, na década de 1990, em São Paulo, já havia uma polÃtica de controle das polÃcias. E continuou durante um tempo. Então, é possÃvel controlar a criminalidade mesmo com a polÃcia matando menos. E há outra vantagem para a polÃcia em matar menos: matando menos, morrem menos policiais. Este ano, quando aumentou o número de pessoas mortas pela polÃcia, ocorreu um recorde de policiais mortos em São Paulo. A maioria em folga e muitos deles em execução. Deve estar ocorrendo represália de alguns grupos criminosos ligados ao PCC.
ABr: O que acontece hoje em São Paulo então é revanchismo?
Mingardi: Em princÃpio, há [revanchismo]. A polÃcia mata, os criminosos vão se vingar de determinado policial e a coisa vai crescendo. AÃ, quando se mata um policial, a polÃcia vai lá e mata mais. Inclusive porque existe uma falha no nosso sistema. Policial morto deve ser prioridade um ou prioridade zero, se você preferir. Tem que ser a maior das prioridades porque quando não se resolve o caso do policial morto e não se prende logo os criminosos, cria-se uma ideia de revanchismo na polÃcia. A regra básica do trabalho policial naquele tempo, agora e em qualquer parte do mundo, é uma só: no fim do dia, o criminoso tem que ir para a cadeia, e o policial tem que voltar inteiro para casa. Quando se entra em uma espiral de violência, nem o criminoso vai para a cadeia, porque morre, nem o policial volta inteiro para casa porque a probabilidade de ele morrer é maior.
ABr: Mas há quem defenda que segurança é ter mais policiais na rua e matando criminosos. Essas pessoas têm consciência da onda de violência que isso pode gerar?
Mingardi: A maior parte das pessoas não pensa nisso. Se a pessoa foi roubada uma vez, ela está com raiva e quer que qualquer criminoso, não necessariamente aquele, pague por isso. Então tem a resposta emocional da população. E aquela história de que ‘vagabundo bom é vagabundo morto’ é uma coisa corrente na nossa população. O que as pessoas não percebem é uma coisa muito simples: isso não diminui a criminalidade. O que diminui a criminalidade é trabalho policial benfeito: boa prevenção da PolÃcia Militar para evitar que o crime aconteça e investigação da PolÃcia Civil, o que normalmente não ocorre. Muitos roubos não chegam a ser investigados. Em 30% dos homicÃdios na capital se chega à autoria. Matar na rua é bom para lavar a alma: ‘fui roubado ontem e mataram o criminoso – joia, me vinguei’. Mas não resolve o problema. Segurança pública não é para vingar. Resolver o problema não significa acabar com a criminalidade porque isso não existe em sociedade nenhuma nem vai existir. Mas significa diminuir muito a criminalidade e fazer com que o criminoso tenha a certeza de que será punido.
ABr: O senhor fala que é preciso resolver o maior número de caso de roubos e de homicÃdios. Como isso aconteceria? Não é preciso aumentar o número de policiais?
Mingardi: [Isso se resolve] com a polÃcia trabalhando melhor. Talvez até seja bom mais policiais. Mas não adianta colocar mais fazendo o mesmo. É preciso ter gente trabalhando de forma melhor. E trabalhar melhor é criar condição de trabalho, é o policial saber o que está fazendo, ser treinado e ter disposição. Não adianta ter um policial muito bem treinado e muito bem pago, mas sem ânimo de investigar. É preciso ter essa gente motivada, o que passa por [melhores] salários, treinamento… Mas passa também por uma mudança de mentalidade em determinados setores policiais.
ABr: Tivemos 111 mortos no Carandiru e, em 2006, tivemos as mortes nos crimes de maio, atribuÃdos a confrontos entre policiais e membros do PCC, grupo que dizem ter sido criado exatamente como resposta ao Massacre do Carandiru. O caso de 2006 é consequência do que aconteceu no Carandiru?
Mingardi: Isso é certeza absoluta. O PCC não existiria como tal, não teria o poder que tem se não tivesse havido o Carandiru.
ABr: Como combater os excessos policiais?
Mingardi: Combater excesso da polÃcia é controle. É controle e mandar a mensagem certa, que é avisar: passou desta linha será processado. E tem que ter apoio de cima, apoio polÃtico para isso. Tem que trabalhar junto com o Ministério Público e dar condições para o policial trabalhar. Se ele simplesmente achar que tem que resolver com violência e que não tem outro jeito, a coisa fica complicada. Dar condições para ele trabalhar significa equipamento, treinamento, salário, organização. PolÃcia sem controle é polÃcia totalitária.
*Matéria originalmente publicada na Agência Brasil