Por Centro de Convivência É de Lei e Coletivo DAR
“E quem eu sou eu não sei
Não importa
O que importa é o respeito
Você chegou, respeitou
Se fumou eu não sei
Mas eu respeito”
RZO
Começo de ano na cracolândia pode ser tudo, menos sossegado. Na agenda do poder, depois de pular sete ondinhas já vem logo embaixo: pau nos nóia. Nesse ano, vislumbrou-se uma forma diferente de intervenção estatal naqueles território e população, com a divulgação do programa De Braços Abertos, da prefeitura paulistana. Refletir sobre o que muda e o que permanece, e em meio a qual cenário e problemas, é o que DAR e É de Lei têm buscado fazer e que agora gostariam de socializar com esse texto-pergunta, que por sua vez nasce querendo caminhar, a partir do diálogo.
Por mais que ainda seja divulgado sob o guarda-chuva proibicionista do “combate ao crack”, talvez a maior novidade do programa De Braços Abertos seja a chegada de uma intervenção na cracolândia que não se baseie apenas na repressão pura e simples e que tenha alguns princípios da redução de danos como premissa. O entendimento de que o problema social explicitado naquela região vai muito além do consumo, abusivo ou não, de uma substância, e a busca de abordagens que não primem necessariamente pela abstinência ou pela internação, e que sejam de baixa exigência para adesão, podem parecer pouco, mas são bastante relevantes para essas pessoas que estavam fugindo de bombas e sendo obrigadas a caminhar em círculos há dois anos, durante a Operação Dor e Sofrimento, dos governos estadual e municipal.
As estratégias de tratamento – quando assim podem ser chamadas, já que muitas vezes são apenas confinamento e ou evangelização – que partem da busca e da exigência da abstinência surgem da mesma lógica fracassada do proibicionismo em seus aspectos mais gerais. São autoritárias, impositivas, e além de tudo ineficientes, já que ignoram a realidade em prol da utopia/distopia de um impossível mundo sem drogas (ilícitas, já que não ligam muito para a diferença entre legal e justo). Partir do óbvio fato de que as pessoas usam drogas, querem fazê-lo e que o uso abusivo é que deve ter seus danos minimizados deveria ser o mínimo para uma política pública sensata mas, como vivemos no Brasil de Felicianos e Telhadas no poder, isso deve ser destacado.
A ausência de pré-requisitos burocráticos para que a população da região participe e se mantenha no programa é fundamental para atender às especificidades daquelas pessoas, em suas condições de extrema vulnerabilidade e incerteza, e o programa parece ter dado atenção a isso quando não busca impor tratamento, abstinência e nem trabalho diário aos que assim não desejam.
Há ainda outro aspecto fundamental, que é a expansão da mirada, que não se foca (apenas) nas “demoníacas” pedrinhas e percebe a vulnerabilidade da população da cracolândia como resultante de muito mais condicionantes do que um slogan como “crack, é preciso vencer” pode dar conta. Sempre ressaltamos que o consumo de crack, abusivo ou não, permeia todos os setores sociais e, se é visto como dramático na região da Luz, é por conta de uma série de outros problemas aos quais aquelas pessoas estão submetidas, a começar pela falta de moradia e trabalho, pontos que o programa da prefeitura busca observar, mesmo que propondo soluções explicitamente paliativas. Também não podemos perder de vista o valor simbólico e fundiário daquela região, que aproxima holofotes, chamarizes, câmeras e construtoras.
Pulgas atrás da orelha
No entanto, se destacamos as virtudes, não podemos deixar de avaliar os problemas e as pulgas que os braços abertos da prefeitura deixam em nossas orelhas. Em primeiro lugar, é incontestável que o programa nasce não de uma avaliação criteriosa do cenário e do consumo de drogas na cidade – existe um Grupo Executivo Municipal, com representantes de secretarias e da sociedade civil, que em tese serviria para discutir as políticas do Programa de Enfrentamento ao Crack, mas nem ele participou da elaboração do De Braços Abertos – e sim de uma demanda bastante objetiva e pouco nobre: retirar os barracos da “favelinha” que foi montada ali na cracolândia e imediatamente atacada pela mídia.
A oferta para aderir ao programa da prefeitura foi feita exclusivamente aos moradores dos barracos – não a todos os usuários de crack da região, muito menos às outras pessoas em situação de rua. Só depois, quando não foram preenchidas as 400 vagas disponíveis para os que estavam na “favelinha” é que disponibilizaram os cerca de 120 lugares restantes a outros interessados. Além disso, estas vagas só podem ser preenchidas por usuários de crack: alcoolistas que também vivem pela região não poderiam se beneficiar do programa, mesmo compartilhando a mesma situação de rua.
Essa demanda – responder à mídia num ano de eleição – pode explicar a improvisação e a falta de objetivos de longo prazo no programa desde sua implementação. Os trabalhadores da prefeitura foram capacitados em redução de danos? Há distribuição de materiais e orientação aos usuários no sentido da redução de danos? Quanto tempo as pessoas podem ficar nos hotéis? A ideia de hotel social é bem melhor que os albergues-galpões-de-gente, mas por que só essa população, em meio a mais de quinze mil pessoas em situação de rua, recebe o auxílio? Por que ao mesmo tempo foram fechadas, ou estão abandonadas, as tendas da assistência social no Parque Dom Pedro e na Santa Cecília? Isso tem algo a ver com uma tal Copa do Mundo aí que estão tentando nos impor? Quinze reais por dia de trabalho de varrição de rua solucionam o problema do desemprego? Existe alguma proposta de inserção social a longo prazo? Quais os planos para quem não aderir ao programa: intervenção policial? Quanto de investimento é feito nesse programa? Quais os critérios da contratação e quem está por trás da ONG Brasil Gigante?
Uma das premissas centrais da redução de danos é tratar o sujeito como singular e entender que cada um precisa de cuidados diferentes e específicos em cada momento de vida. Isso não está acontecendo e mostra um dos maiores pontos de fragilidade do Programa.
A ausência de uma estratégia de longo prazo, ou no mínimo sua invisibilidade, é extremamente preocupante, não só pela perspectiva de êxito das intervenções como por possíveis interesses escusos que possam estar presentes nela – para além dos nada secretos, e evidentes, interesses eleitorais. Se o programa De Braços Abertos nasce de uma demanda de contenção da população que estava montando seus barracos e criando ali uma comunidade – e não diz para onde deseja caminhar no longo prazo -, ao mesmo tempo não deixa claro se o projeto se desvincula ou se faz parte do processo mais amplo de rapina pelo qual o centro da cidade tem passado nos últimos anos em prol da especulação imobiliária. Consciente ou inconscientemente, a contenção proposta pelo programa, se desvinculada de ações de médio e longo prazo, pode representar uma forma gentil de higienização, o que não seria nenhuma surpresa diante da história recente do partido que hoje comanda a prefeitura.
Além disso, há outro aspecto importante das intervenções estatais recentes que merece ser destacado: elas não deixaram de ser repressivas e policialescas, só não são mais apenas isso, o que é bastante diferente. Isso ficou explícito tanto na ação desastrosa e ridícula das polícias, no dia 23 de janeiro, como também nas constantes e ostensivas operações que ocorrem na região sob o pretexto de “prender traficantes”. Em coletiva dada em conjunto com o secretario de segurança do governo do Estado de São Paulo, Fernando Grella, o prefeito Fernando Haddad declarou: “O objetivo de combate ao narcotráfico sempre esteve no nosso horizonte”. O texto, de reportagem da Carta Capital, deixa bem claro o enfoque dado em tal coletiva:
Segundo Grella, o Denarc realiza ações na Cracolândia desde de dezembro de 2013, que já resultaram mais de 90 prisões. Haddad reafirmou que esteve em contato com o governador Geraldo Alckmin (PSDB) desde ação da Polícia Civil e disse haver um entendimento a respeito da necessidade de trabalho conjunto entre a prefeitura e o governo do Estado. Haddad reiterou que a filosofia da operação é permitir o direito de ir e vir dos comerciantes, dos agentes e dos dependentes, com exceção dos traficantes. “É uma questão complexa que exige a soma de esforços de vários segmentos”, disse Haddad. “Todo tipo de união de forças é válida no sentido de combater o tráfico de entorpecentes.”
Para além da diplomacia que resulta da parceria entre os governos estadual e municipal – o que por si só não deve ser ignorado, afinal, por que se aliar ao governo de Alckmin para o De Braços Abertos, sendo que em troca viriam inevitavelmente, como vieram, as relações com Comunidades Terapêuticas (500 vagas oferecidas pelo estado ao município) e a defesa da presença da polícia? – fica evidente que os avanços presentes na abordagem da prefeitura limitam-se ao olhar para o usuário de drogas nos barracos.
E para o “traficante”? Todos sabem a dificuldade dessa diferenciação, pela falta de objetividade da lei de drogas, que no território da cracolândia tem uma especificidade ainda maior pois a pedra é moeda de negociação para comprar e vender tudo o que circula naquele espaço, e neste sentido qualquer usuário pode ser visto como pequeno traficante, tenha aderido ou não ao programa. Em um mês de operação foram declarados mais de trinta pessoas presas como traficantes. Por que continua a sensação de que estão tentando “limpar a Cracolândia”? E isso apenas para os pequenos traficantes, claro, ninguém é louco de mexer muito para saber quais juízes, policiais, coronéis e congressistas estão envolvidos, não é mesmo?
Não é preciso muito esforço pra saber o que acontece quando a resposta para o fracasso da guerra é mais guerra, e neste sentido as ações de “combate ao tráfico” não só seguem a eterna e hipócrita lógica de “enxugar gelo”, mas agravam o problema ao ampliar o encarceramento dos pobres e expor aquelas populações à presença constante – e racista, violenta, corrupta e desgovernada – da polícia. Invertendo um tradicional argumento da direita virtual em seus sempre vigilantes comentários na Internet: se gostam tanto assim da polícia, por que não a levam para suas casas?
Mas e aí então o quê?
É necessário, portanto, observar e ressaltar os avanços presentes no enfoque dos braços abertos, assim como apontar em que momentos eles trazem também os sempre inaceitáveis punhos fechados que estão no DNA do Estado. Mas o que propomos nós, desse “pessoal dos direitos humanos que só sabe criticar”?
Em primeiro lugar, e talvez acima de tudo, é evidente que, se a situação das pessoas da cracolândia chegou a tamanho grau de vulnerabilidade e precariedade não apenas pelo consumo de uma substância ela não será resolvida, ou minimizada, com um enfoque apenas no tratamento do consumo abusivo. É preciso sim um investimento maciço em redução de danos em suas distintas abordagens e vertentes, mas isso não basta. Não podemos ter, como proposta para o grande fluxo de pessoas que vêm consumir e se sociabilizar na Cracolândia apenas o enxotamento e a prisão como pequenos traficantes. Como fazer com que o Centro seja das pessoas, de todas as pessoas, todos nós, incluindo os usuários e o resto da população? É preciso acolher e oferecer possibilidades de lazer, cultura, inclusão dessas pessoas, além de formas de aproximação destas com a população em geral, para reduzir o preconceito e o estigma.
A cracolândia não é uma questão individual, e, como mostra o experimento do parque dos ratos, as condições para a solução estão na reorganização social, na mudança dos paradigmas, na criação de uma cidade e de um centro para as pessoas e pelas pessoas. Onde viva vida, escolas, praças, moradia e opções de cultura e lazer. Onde se garantam direitos e as pessoas não precisem se exilar de seu território em direção ao centro.
Qual a saída para a cracolândia dentro de um contexto proibicionista e dessa sociedade? Eles são a renitência, o que não pode ser absorvido, o que é oculto, visível e se refaz, com uma organicidade espacial que transcende os espaços. São os consumidores da nova pedra de Sísifo, vivem uma recusa que em algum lugar questiona a lógica do trabalho brutal, alienado e indigno. Eles são, muitas vezes, justamente aqueles que se recusaram (em algum lugar) a fazer parte da lógica do trabalho, das paredes, das grades. O crack é um lugar e uma recusa.
Para de fato abrir os braços para os frequentadores da cracolândia poderíamos partir de um abrir de olhos que afaste o julgamento e a busca por erros que muitas vezes estão no olhar de quem os julga, e que almeje para aquelas (nós) pessoas o mesmo que para todas as (nós) pessoas: criar as condições para que floresçam da melhor maneira as pétalas internas das quais falava Kerouac. Fácil ninguém acha que será, mas, nas palavras do escritor Valter Hugo Mãe, quando se sonha tão grande a realidade aprende.
São Paulo, fevereiro de 2014