Algumas reflexões a respeito dessa viagem que é organizar a Marcha da Maconha
Por Coletivo DAR
“si es dura la batalla tranqui más dulce la victoria fumamos de la kaya tranqui estamos sabemos hacia donde vamos” Zona GanjahNa primeira Marcha da Maconha feita em SP éramos cinquenta. Proibidos, censurados. Um pouco perdidos, um pouco isolados. Em 2011 saímos do Ibirapuera, que se foda, vamo pra Paulista. Umas quatro marchas em um mês e as ruas finalmente nossas. “Vamos fumar a hipocrisia”, dizia uma faixa. “Vencemos, canalhas”, dizia outra, e as duas resumem bem: não é que vencemos a Polícia Militar dos capitães Delvechio e a Justiça dosTeodomiro Mendez?
Em 2012 e 2013, a Marcha floresceu, cresceu muito e tomou o banho de diversidade de bandeiras e pessoas que 2014 mostrou que veio pra ficar. E ficará acompanhado de uma boa dose de desobediência civil e de autonomia, graças à rebeldia contracultural presente no movimento canábico e ao apoio constante que nossos parceiros do movimento autônomo têm aportado desde as primeiras bombas que recebemos.
Se no ano passado fomos uma fagulha a mais naquele começo de junho, em 2014 legalizamos as ruas numa zona autônoma canábica temporária deixando bem claro que não é mesmo coincidência que quando há pouca polícia há pouca ou nenhuma violência. Organizados, os manifestantes fazem sua segurança melhor do que ninguém: ficamos felizes de reforçar esse recado.
O Coletivo DAR surgiu em 2009, de dentro da Marcha, querendo ir além da organização anual do evento e da discussão apenas sobre maconha. Depois de 2011, naturalmente nos vimos recebendo do campo mais autônomo o apoio que esperávamos (e pedíamos) que viesse dos movimentos sociais mais tradicionais e dos partidos de esquerda. Com a chegada posterior destes últimos, convencidos tanto por nossos argumentos quanto, talvez principalmente, por nossa projeção, felizmente a Marcha caminhou para ser o que é hoje, essa frente, essa rede, esse fluxo (no sentido utilizado na “cracolândia”) diverso, amplo e horizontal, trabalhando na base do consenso para dar conta do tanto de responsa que organizar o evento&movimento passou a ter. Muito mais do que o DAR poderia imaginar (e querer, e poder) segurar.
Esse fluxo tem o desafio de manter a crítica permanente do significado de cada ação, de cada palavra construída coletivamente. A projeção da Marcha como uma chama pode atrair a atenção em volta da fogueira; para não deixar queimar é sempre bom mexer na brasa, virar, colocar mais lenha, abanar.
Se em 2010, por exemplo, o DAR organizava a Marcha praticamente sozinho, hoje em 2014 ele é uma pequena parte desse movimento, que está muito mais forte, respeitado e maduro. Este texto é uma tentativa de olhar para esse processo a partir de nosso ponto de vista e atuação, sem querer falar em nome de ninguém já que felizmente somos, cada vez mais, uma marcha onde cabem muitas marchas, e cada uma delas fala por si, sem disputas por uma voz única (obrigado, MPL, pela crítica da inutilidade de carros de som e posturas assim!).
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Como já apontado nacarta aberta sobre autonomia e segurança da Marcha da Maconha SP, o movimento tem um caráter diferente de outros atos de rua, igualmente legítimos. Não se trata de reverter uma medida recém implementada, como é o caso do aumento das tarifas, por exemplo, ou pressionar por alguma ação estatal imediata. Nesse caso, a ideia de literalmente parar a cidade por vários protestos seguidos, até que os governantes já não consigam mais fechar os olhos e os ouvidos à demanda da população, faz sentido. O incrível sucesso de junho passado dispensa defesas.
E, ainda bem, nem todas as pautas e manifestações são iguais: dispomos de uma diversidade de táticas. Pra reverter a política de guerra às drogas, acreditamos que o caminho é a mudança de mentalidade, que vai além de um ordenamento jurídico ou de uma posição de governo A ou B, mas precisa permear a sociedade desde baixo, afinal é ela que referenda o proibicionismo para além das leis: na educação dos filhos, nas igrejas, no trato com os amigos, nas empresas, na mídia. Pra isso, construímos uma manifestação pacífica, colorida, com uma transversalidade de temas (expressa, por exemplo, nos blocos), que reforça o quanto a questão das drogas se refere a todos os âmbitos sociais, não dizendo respeito só aos usuários mas a todos que buscam um mundo mais justo e humano. A partir daí, botamo fé que a proibição se desmonta.
Por isso: não, capitã Sheila.Não venha dizer que o quase inexistente policiamento na nossa Marcha foi por que não havia black blocks. Nem tentem alimentar a dicotomia entre bons e maus manifestantes, que já não cola, tamo junto e misturado, queiram ou não. O sucesso de uma Marcha sem incidentes, com a segurança feita por nós mesmos, não está a serviço desse discurso. “Dono da dor dos outros, eu sou povo, e cê não faz nóis de bobo”, né, Ba Kimbuta.
Quem usa da tática black block tá na rua há milianos, bem antes de junho. E compõe, como todos que vem tomando as ruas por outro mundo, diferentes tipos de manifestações, inclusive a Marcha da Maconha. Esse ano, qualquer um que tivesse a disposição pra percorrer a Marcha do início ao fim (teria que estar em forma), veria feministas, skatistas, gays, pacientes, religiosos, mascarados de preto, rolê da quebrada, rolê da universidade, hippies, punks, moradores de rua, cultivadores, curiosos, acadêmicos, e tantos outros.
Frisamos o peso que o movimento deu à segurança esse ano, e o avanço, nesse sentido, da construção da autonomia do nosso protesto. Foi um passo importante e que precisa seguir melhorando. Mas não se pode ignorar que a falta de polícia na Marcha não foi simplesmente um atendimento deles ao nosso desconvite público, foi uma decisão política do Estado, e o seu discurso (hipócrita) tenta explicá-la no fato de a Marcha supostamente ser uma manifestação “diferenciada”, ou pra falar português claro, uma manifestação sem vândalos, terroristas. Não cola.
Terrorista é o Estado, e quando ele não está, não tem violência. Fumamos maconha mas não perdemos a memória não, capitã, da chuva de bombas que tomamos em 2011, dos presos injustamente, das cassetadas nas mulheres em 2013. Não perdemos a memória de que morre pobre todo dia (já que no Brasil a expressão mágica “combate ao tráfico” institucionaliza a pena de morte) e de que nossas cadeias são o navio negreiro dos nossos tempos. Não perdemos a memória dos que foram mortos, presos ou investigados, por serem militantes, não perdemos de vistaa letra que a mãe do DG, mais um novo Amarildo, nos deu: no Brasil de hoje parece que só a polícia é cidadã.
Nada mais simbólico que uma marcha pelo fim da guerra se organize de forma que os que fazem o trabalho sujo desse combate estejam longe. E já que não lutamos por um mundo injusto em que as drogas sejam legalizadas, mas por um outro mundo, estamos lado a lado com quem caminha nesse sentido, e faremos de tudo pra que os próximos atos de rua também assim sejam.
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Nessa caminhada, a Marcha da Maconha tem avançado em trocas com outros movimentos. O sucesso da ideia dos blocos nos dá alegria e já se espalha por outrasmarchas, e destacamos aqui um esforço que tem reverberado em muitos cantos do Brasil: o feminismo e o antiproibicionismo colando junto. Em São Paulo, o bloco feminista é um dos mais fortes da manifestação, e vem de um trabalho de formiguinha, conversas e aprendizados entre guerreiras de ambos os campos, que perceberam e tentam chamar a atenção pra como essas lutas são irmãs.
O direito ao prazer, a proibição das drogas como principal encarceradora das mulheres no Brasil (47% das detidas são acusadas de tráfico), a autonomia pra decidir o que fazer com o próprio corpo, o enfrentamento ao preconceito e estigma, à caretice e ao moralismo, são alguns dos pontos trazidos à tona pelo bloco feminista, em meio a um movimento que segue (ainda que bem menos que antes) hegemonizado por cuecas. Foi lindo ver a frente de ato protagonizada por mulheres (herança que vem da marcha da liberdade em 2011, e que se repete já em outros atos, como o 15M puxado pelo Comitê Popular da Copa SP). Este certamente é um debate que irá se consolidar na Marcha de SP e pautar também a articulação horizontal dos ativistas de outras Marchas para os próximos períodos, processo que já está em curso.
Se a relação com o feminismo é o nosso “case” de sucesso, como dizem os moderninhos, também em relação a outros setores, como o antimanicomial, o movimento negro, o hip hop, o LGBT, a academia, a turma da redução de danos e o movimento a favor da desmilitarização das polícias, a troca de experiências tem se consolidado e servido pra fortalecer ambos os lados, apontando pra uma mudança de olhar, de escuta e de composição da Marcha, e também ajudando que a discussão sobre drogas seja colocada em outro patamar em diversas esferas que ainda eram refratárias a nossa forma de lutar.
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Do ponto de vista organizativo, apesar dos diversos pesares de um grupo pequeno que tem diante de si um desafio tão grande, a Marcha da Maconha é um sucesso. Jornalista experiente, com anos de cobertura de rua,Laura Capriglione qualificou o evento em si como um “show de organização”. Bruno Paes Mansoresenhoucomo um dos eventos políticos mais importantes para o país e Leonardo Sakamoto(apanhamos juntos!) mantém a cobertura analítica anos após ano. Acreditamos que não seria forçado extender essa avaliação positiva para o Coletivo SP da Marcha, que mesmo reunindo gente de origens e concepções políticas bastante amplas – e muitas vezes conflitantes – e tendo tarefas tão desgastantes pra tocar, soube trabalhar com base no consenso e na horizontalidade a fim de garantir o objetivo comum a todos, que era a relização de uma marcha o mais diversa e impactante possível – e o fez sem grandes atritos ou estresses.
Se o DAR em 2009 era um coletivo mais amplo do que é hoje, em relação a suas definições políticas, que eram mais vagas na defesa apenas do antiproibicionismo e que hoje estão aliadas a concepções mais definidas de nosso lugar nessa luta – a partir do anticapitalismo e do movimento autônomo -, por outro lado a Marcha da Maconha passou nesses anos por um processo de abertura e consolidação da horizontalidade bastante interessante e rico, levando ao seu contexto atual.
Esse processo surge a partir da forma como a própria Marcha da Maconha nasceu e se desenvolveu nacionalmente: não como uma entidade ou organização mas como uma rede, onde cada coletivo tem autonomia pra definir a sua marcha e as suas ferramentas organizativas. Não por acaso, em seu novo livro O novo tempo do mundo o filósofo Paulo Arantes cita, de passagem, a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias como “herdeiras diretas dos protestos antiglobalização de 2000”: fazemos parte dessa nova onda de movimentos sociais, surgidos por influência dos protestos antiglobalização e do levante zapatista de 1994, que tiveram em junho sua máxima expressão e que rejeitam velhas, hierárquicas e burocratizadas formas de organização, refuando de lambuja o viés institucional e eleitoral da luta.
Consolidada nacionalmente com estes princípios, a Marcha permite que coletivos locais como o nosso possam aprofundar essa concepção experimentando possibilidades práticas de efetivação da horizontalidade, se distanciando de discussões pretensamente nacionais que buscam subjugar a diversidade a posicionamentos unitários, se tornando mais abstrações úteis para a disputa de projeção e de militantes do que armas para a transformação social.
Melhor pensar caminhando pelas instigações levantadas por exemplo por John Holloway, que vê uma desobediência contida em cada obediência e propõe a luta a partir do particular, de onde estamos, do aqui e agora: “Criemos espaços ou momentos de alteridade, espaços ou momentos que caminham na direção oposta, que não se adequam. Façamos aberturas na nossa própria criação reiterada do capitalismo. Criemos fissuras e deixemos que se expandam, deixemos que se multipliquem, deixemos que ressoem, que fluam juntas”.
Nascido a partir de ativistas da Marcha da Maconha mas também juntando gente com alguma experiência em lutas estudantis e sociais, boa parte delas com uma bela dose de decepção com estes contextos, o DAR tem aversão ao clima de disputa presente em algumas articulações e espaços de militância, e consolidou seu posicionamento antiproibicionista-anticapitalista-autônomo exatamente querendo manter sua especificidade frente à diversidade de causas e formas de atuação presentes no movimento antiproibicionista.
Com o tempo e com a prática, critério da verdade como diz a citação que já virou clichê, percebemos que às vezes pode ser grande a diferença entre o que queremos e o que outros possíveis parceiros querem, entre o que entendemos como a melhor forma de atuar coletivamente (distante da cooptação do Estado e do mercado, sem envolvimento financeiro, sem relação com partidos, sem lideranças, sem falar em nome de ninguém, sem perder de vista as outras causas e lutas, cultivando nossas relações internas, etc.) e o que outros entendem, entre os nossos objetivos e os de outros grupos e pessoas também antiproibicionistas. Sem gerar uma disposição para o enfrentamento ou para o isolamento, esse entendimento nos leva a uma busca por uma atuação que conjugue e equilibre a proteção dos nossos princípios com as necessidades da política concreta, que requer alianças e sabedoria pra saber trabalhar com os diferentes e com a diferença.
Nesse sentido nos parece que a forma consensual e horizontal com que a Marcha trabalha é bastante interessante para garantir tanto a pluralidade das ideias presentes no movimento quanto sua viabilidade. Afinal, precisamos ter claro até onde podemos caminhar juntos, e pra isso temos que discutir bastante, mas não podemos nos imobilizar nesse processo e passarmos mais tempo olhando pra dentro do que agindo pra fora.
Ao invés de querer convencer grupo a ou b de coisas que eles já estão bem convencidos do contrário, o exercício no nosso caso tem sido o de discutir até que ponto, e de que forma, podemos caminhar juntos. O que não cabe não gera motivo pra briga, só deve ser executado individualmente pelos que não conseguiram gerar o consenso.
Simples, não? Nem um pouco! Não podemos nos gabar de termos evitado discussões inúteis ou papos tortos de interesses nem sempre declarados, mas certamente podemos vivenciar nessa forma organizativa uma maior abertura para o diálogo e para novos participantes. Figura roots na história da Marcha, o autoproclamado Profeta Verde nos trouxe, a partir de sua participação no ativismo em defesa do Parque Augusta, uma regra deles que nos serve como inspiração: se você propôs algo, tem que ajudar a fazer. Pode ser sozinho ou arrumando mais pessoas, mas não pode haver espaço para os vetos que não constroem ou para a famosa cagação de regra.
Se dizemos que estamos abertos, temos que estar para a diferença, para o olhar específico daquele que chega, que nunca é igual ao do que já estava. Ok, esse é um lado. Mas o outro é que isso só rola de fato – e o ideal pra todos é que role – se o que chega tem o empenho e a disposição de consolidar suas ideias. A definição inicial de ninguém falar em nome dos outros evita disputas, mas também traz em si a mensagem de que ninguém fará valer as vontades suas ou de seu grupo. Se você propôs algo, pra que aconteça você tem que fazer – e o coletivo precisa criar condições pra acolher, estimular e aprofundar isso, não limitar. Não se trata de uma regra levada ao pé da letra, já que também não queremos limitar o espaço de quem por algum motivo simplesmente não pode tocar aquela ideia mas quer expressá-la, e tampouco queremos abrir brecha para uma hierarquia baseada na disponibilidade de cada um. Mas é, na real, uma ideia que, se enquadrando mais no âmbito do bom senso do que de uma regra, tem permeado essa forma de funcionar da Marcha.
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É verdade que a abertura e a horizontalidade da Marcha traz dificuldades. Além de algumas ações ou discussões que queríamos fazer terem sido atravancadas, podemos citar aqui um nó que não conseguimos desatar muito bem esse ano, o equilíbrio entre segurança e horizontalidade. As reuniões da Marcha são abertas, qualquer um cola. E a partir daí, as comissões também estão abertas pra quem quiser. Entre elas, a da segurança. Como fazer da comissão de segurança (que, aliás, precisa de bastante gente pra ser efetiva) um espaço aberto e horizontal para a participação de todos interessados e ao mesmo tempo garantir que todos que estão ali são de confiança? Em tempos de inquéritos, prisões, proibição de máscaras e vinagre, mandados de busca e apreensão na casa de militantes, etc., não é paranoia querer debater as nossas questões de segurança entre rostos conhecidos. Taí uma dificuldade que não soubemos resolver direito.
Por outro lado, essa concepção de horizontalidade e autonomia para os diferentes grupos que compõem a Marcha expressarem suas atividades e discursos se mostrou bem sucedida não só na realização do nosso objetivo principal, a Marcha do dia 26, mas também na construção da Semana pela legalização da maconha que realizamos entre 18 e 24 de abril e na efetivação dos blocos durante a manifestação. Transbordou também para que deixássemos de designar pessoas específicas pra falar com a imprensa ou pra nos representar em debates: para todos tudo, nada para nós. Cada um fala por si, todos são a Marcha.
Pensados desde o ano passado como forma de incluir diferentes visões e contribuições auto-organizadas na Marcha, os blocos espalharam sua lógica pra Semana, que teve inscrições abertas para qualquer um que quisesse realizar um evento e também foi organizada no interior da Marcha dessa mesma forma dos blocos e do “propôs, realiza”.
Assim, tivemos eventos em diversos lugares da cidade e com diversos enfoques, do Grajaú à Praça Roosevelt, da Casa Fora do Eixo à Tattoo Circus (feira de tatuagem anarquista), da academia ao feminismo e à desmilitarização, do auditório da Cásper Libero com 400 pessoas à conversa com o pessoal da cracolândia. Se você compõe a Marcha e não está satisfeito com uma atividade anarquista, do Fora do Eixo ou do Psol, melhor que ficar tentando fazer com que eles façam algo como você queria, o que certamente não vão, é você se mexer e se articular de outra forma para garantir o seu ponto de vista, a sua concepção de ativismo e de luta política, e no fim das contas isso não só é mais saudável, pois poupa brigas intermináveis, como também mais efetivo, já que o resultado final em geral é melhor, mais potente e diverso.
Ensinamentos como os que aprendemos em nossas ações e articulações na cracolândia ou na defesa da desmilitarização da polícia também nos são fundamentais nesse sentido. O Churrascão que ajudamos a organizar no começo de 2012 em protesto contra a “Operação Dor e Sofrimento” de Kassab e Alckmin foi um momento importante em nossa trajetória, afinal participamos durante aquele processo de duas mobilizações: uma pensada junto com os usuários e frequentadores da região, que foi o churrascão, e foi um sucesso; e outra feita com parcerias e negociações com movimentos mais tradicionais, com carro de som, palavras de ordem, discursos e pouca ou nenhuma efetividade. Percebemos a partir daí o quão importante é ouvir a voz daqueles que queremos defender e estar ao lado e o quão odioso é falar em nome dos outros – odioso e inútil, pois o churrascão teve impactos no desenrolar menos repressivo que as ações governamentais tiveram naquele momento, ao contrário do outro ato, que ninguém lembra mais.
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Citado por Carl Hart em sua palestra na Unifesp, o escritor estadunidense James Baldwin dizia que ser negro ou ter consciência social em seu país significava passar grande parte do tempo com raiva. O Brasil-il-il de 2014, dos megaeventos, pós junho, com toda a merda relacionada à Copa do Mundo, toda a militarização das periferias e a estigmatização dos pobres que são a cara do país, é uma ilustração perfeita dessa afirmação. Você não precisa nem estar disposto a enfrentar nada, pode estar saindo do cinema e tomar uma bala de borracha na cara, por exemplo, ou querer fumar sua pedra como os bacanas tomam whisky e por isso te meterem num cercado a la Guantánamo.
Pra piorar, 2014 é ano eleitoral, nunca se sabe se determinados punhos fechados estão visando atacar o poder ou só se tornar ele. Se até aí é sem novidade, braços abertos pros investidores e punho fechado pra nós todos que temos tanto pra cobrar, não parece provável que nesse ano as coisas sejam as mesmas depois de tudo que rolou ano passado. Os ataques podem até estar mais pesados, mas certamente estão desorientados com o tamanho e a diversidade das ações.
Citando novamente Paulo Arantes, junho nos deixou uma “herança sem receita”, mas aqueles momentos explosivos levaram a esquerda autônoma a algumas conclusões e reflexões importantes que infelizmente parecem ter se efetivado apenas parcialmente, como por exemplo a compreensão da importância do chamado “trabalho de base” no sustento das mobilizações de rua, coisa que poucos movimentos podem bancar. Não por coincidência, os mais bem sucedidos deles, a propósito, como o MPL e o MTST.
Se a política das ruas e dos gabinetes mudou bastante depois de junho, com governos recuando e movimentos avançando por todas as partes, no cenário específico das políticas de drogas os avanços já se visualizavam desde outro mês também bastante importante pra gente, o maio – nesse caso de 2011, ano em que o STF julgou inconstitucional a repressão à livre expressão da Marcha da Maconha. De lá pra cá saímos da defensiva e fortalecemos o debate em escala nacional, debate este cada vez mais estimulado pela entrada em cena de novos atores e pelas mudanças internacionais em curso, das quais os processos de legalização da maconha nos EUA e no Uruguai constituem o carro chefe.
Essa decisão do Supremo teve uma importância que vai muito além da Marcha: a liberdade de manifestação que o STF reafirmou em 2011 está de novo ameaçada nesses tempos de “urgência” militarizada que a Copa impulsiona. Com uma canetada do Congresso, a ação política das ruas, dos movimentos populares, pode ser nomeada “terrorista”, e já não haverá “bons manifestantes” pra contar a história. Em relação a isso, podemos fazer pouco além de nos somar ao caldo, além de gritar que não vai ter Copa – sabendo que pros operários mortos, famílias despejadas e ambulantes proibidos, moradores de rua expulsos e mulheres exploradas, enfim, para manifestantes reprimidos e criminalizados o Mundial já aconteceu. Assim como também já está rolando pra tantos setores do trabalho popular e sindical que estão conseguindo suas vitórias.
Com cada vez mais eventos e espaço nas mídias e no cotidiano das pessoas, a discussão antiproibicionista está consolidada no cenário político brasileiro – e crescendo. Organizados e fazendo apelos emotivos à sociedade, os pacientes de maconha medicinal estão cada vez mais perto de, com apoio dos ativistas, forçarem a Anvisa a regulamentar o uso medicinal da erva muito em breve. Partidos políticos e personalidades cada vez mais defendem a legalização, e até no Congresso já tramitam projetos de lei sobre o assunto, o que era impensável há três ou cinco anos atrás.
Se em relação à maconha a discussão está mais para quando e como se dará a legalização do que se ela irá acontecer, em relação às outras drogas, sobretudo o crack, o cenário é menos animador no que diz respeito às discussões institucionais e às constantes – e legitimadas – violações dos direitos e da dignidade dos usuários pobres. Podemos encarar os ataques de bancadas evangélicas, da bala e similares como reação ao nosso crescimento, e também pensar na legalização da maconha como porta de entrada pra se pautar o fim do proibicionismo e da guerra às drogas de forma mais ampla, mas não é possível cairmos num discurso otimista e esquecermos de todo o obscurantismo que ainda ronda o tema, e do tamanho e da força dos nossos inimigos e de seus interesses.
Especificamente em relação ao debate de alternativas à proibição, também já em curso e que coloca na mesa opções bastante diferentes, como a legalização pelo livre mercado, a estatal ou a via cooperativas, este é igualmente um flanco bastante importante para amplificarmos o debate antiproibicionista para a sociedade e para qualificá-lo internamente, encarando dilemas táticos e estratégicos até hoje ainda não plenamente enfrentados. Certamente essa bagagem de articulação e busca por consensos nos ajudará a fazê-lo de forma construtiva, e talvez já tenhamos alguns elementos de onde partir, como a discussão própria da autonomia da qual tanto falamos e tendo em mente também mais uma das coisas que o MPL nos ensinou, a de que não cabe ao movimento social ser ou querer ser gestor público.
Avaliando o que classifica como “novas governabilidades” na América Latina, resultado da potência dos movimentos sociais e também da intenção das elites em reconstituírem a crise do modelo de dominação, Raul Zibechi descreve no artigo “A arte de governar os movimentos sociais” um cenário em que novas formas de controle buscam não mais tentar impedir, através da força, o crescimento dos movimentos populares, mas sim colocar em jogo outros elementos a fim de que o fenômeno que eles representam se anule em si mesmo. Neste contexto, o autor mostra a importância para o Estado das estratégias de diálogo e construção de políticas públicas junto aos movimentos sociais. Este “compartilhamento de espaço-tempos” geraria um duplo reconhecimento: por um lado está o Estado reconhecendo a importância e o peso dos movimentos, mas por outro, e não menos importante, estão os movimentos reconhecendo e legitimando as novas governabilidades estatais.
Investindo no Estado o poder de legislar sobre nossas condutas privadas, o poder de legislar sobre nossos corpos, não estamos agindo de forma análoga a este duplo reconhecimento? Reconhece o Estado nosso direito a ingerir o que bem entendermos, mas nós reconhecemos também o direito deste Estado a proceder desta forma, a dizer o que podemos ou não fazer, e como. Por outro lado, os exemplos da ultraliberalização presente no mercado de álcool atualmente não são dos melhores e apontam para a liberdade do dinheiro, não de pessoas.
Neste texto Zibechi esboça alguns pontos que parecem interessantes de serem aplicados aqui como pontos de partida para pensarmos o que vem pela frente. O uruguaio (tinha que ser!) propõe: 1) compreender as novas governabilidades em toda a sua complexidade. Como resultado de nossas lutas mas também como uma tentativa de nos destruir. 2) Proteger nossos espaços e territórios da atuação estatal. 3) Não nos somarmos à agenda do poder, criar nossa própria agenda. 4) Delimitar campos, a fim de deixar bem claro até que ponto iniciativas com outros setores podem ser benéficas. 5) Não tomar a unidade como horizonte fundamental, pensando nas resistências múltiplas como positivas e no risco da unidade surgir como imposição, como freio aos movimentos de abajo.
São pontos de partida, e exatamente por isso são úteis pra pensarmos a partir do nosso contexto específico de forte mobilização e discussão de alternativas, afinal nossa geração já percebeu há muito a falta de necessidade de fórmulas prontas só esperando a revolução chegar pra serem aplicadas e também os riscos da teia de aranha institucional sempre louca pra transformar nossa energia militante em corda pra nos enforcarmos. Conjugando sempre que possível o caminhar com o pensar e o perguntar, seguiremos: se disso saírem dias mais livres, que bom. Se sair um outro mundo, melhor ainda .
São Paulo, junho de 2014