Cepa da alma. Este é o significado etimológico do nome dado à bebida obtida da fervura das plantas Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis, a ayahuasca, ou hoasca, também conhecida como chá do Santo Daime. Permitida apenas em cerimônias religiosas, o composto tem sido alvo de pesquisas e pode vir a ser útil para o tratamento da depressão e até da dependência quÃmica.
O psiquiatra Jaime Hallak, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) – Ribeirão Preto afirma que, apesar desse grande potencial, o que existe de concreto no momento são estudos preliminares que evidenciam alguns benefÃcios à saúde. “Os modelos experimentais com animais e os relatos esporádicos com humanos sugerem indicações como antidepressivo e ansiolÃtico”.
Hallak coordena pesquisas que investigam os princÃpios ativos da ayahuasca, além dos seus eventuais usos clÃnicos. Parte desses trabalhos prevê a observação de neuroimagens funcionais para identificar as áreas cerebrais estimuladas pela substância.
“Para pesquisadores em neurociências, a ayahuasca é um instrumento poderoso. Como psiquiatra, entendo que ela é uma rica fonte de estudos, especialmente por sua capacidade de provocar alterações nos estados da consciência”, diz.
“A meta é aprender mais sobre a mecânica biológica que permite ao cérebro criar ou modificar seu funcionamento, dando oportunidade ao surgimento dessas alterações”, acrescenta.
Na opinião do médico Wilson Gonzaga, psiquiatra integrante do grupo multidisciplinar do Conselho Nacional de PolÃticas sobre Drogas (Conad), responsável pela resolução que regulamentou o uso religioso da ayahuasca no Brasil, essa é uma importante distinção a ser feita. “Ampliar a consciência não significa ter alucinação em seu sentido pejorativo”, explica.
Segundo ele, ampliar a consciência é alcançar um estado mental que permite uma reflexão profunda, semelhante à meditação. Já a alucinação é uma percepção alterada da realidade.
Um estudo dirigido pelo especialista em ciências botânicas Dennis J. Mackeena, da Universidade de Minnesota (EUA), que contou com a colaboração de pesquisadores europeus, brasileiros e americanos, foi um dos primeiros e maiores trabalhos a mensurar os efeitos fÃsicos e psicológicos da ayahuasca em humanos. Em 2004, época de sua publicação, relatou-se que a possibilidade de ampliação da consciência já tinha sido observada pelo antropólogo Michael Winkelman, ex-professor da Universidade do Arizona, que definiu essa propriedade como “psicointegradora”.
Essa pesquisa, publicada pela revista cientÃfica Pharmacologics&Therapeutics em 2004, mostrou que o uso da ayahuasca em comunidades religiosas visava também o tratamento de alcoolismo e abuso de drogas. Consta do estudo que a maioria das pessoas com histórico de dependência e recuperação, atribuÃa ao consumo do chá essa mudança comportamental.
Naquela ocasião, o pesquisador foi prudente em ressaltar que o fato poderia ser resultado do apoio social e do ambiente psicológico oferecidos pelas comunidades. Entretanto, um detalhe não escapou à sua observação: nos quadros de alcoolismo severo, há alterações nos nÃveis de serotonina. Concluiu-se, então, que fatores bioquÃmicos ligados à ayahuasca estariam envolvidos na modificação da qualidade de vida dos usuários. Para ilustrar o assunto, Mackeena referenciou uma notÃcia veiculada pela BBC News, que citava a ayahuasca como coadjuvante da psicoterapia no tratamento de dependências quÃmicas numa clÃnica do Peru.
As pesquisas em curso hoje buscam saber como os componentes do chá atuam no organismo, qual é o perfil de seus consumidores, e quais são seus efeitos no comportamento e nas habilidades intelectuais e cognitivas, como diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). “Sem resposta para essas questões, é impossÃvel reconhecer a existência efetiva desses poderes curativos”, pondera. Apesar dessa convicção, o médico admite que diversas pessoas abandonaram um quadro de dependência quÃmica ao ingressar nessas seitas daimistas.
Os especialistas são unânimes sobre o fato de que a bebida não deve ser consumida de forma deliberada. “Não é porque uma substância é natural que o abuso está autorizado. Exemplos disso são a maconha e o álcool”, observa Silveira. Como não se conhecem os possÃveis efeitos tóxicos da ayahuasca, nem sua ação sobre o sistema nervoso central em formação, a bebida é contraindicada para crianças e grávidas.
De um modo geral, os especialistas contraindicam a bebida para pessoas com transtornos psiquiátricos. “A atenção deve ser redobrada se a pessoa é portadora de esquizofrenia ou transtorno bipolar, pelo risco potencial de agudização do quadro”, completa Hallak.
A ayahuasca também não deve ser consumida por quem usa antidepressivos. O psiquiatra LuÃs Fernando Tófoli, professor adjunto da Universidade Federal do Ceará (Ufce), e coordenador da Comissão de Saúde Mental da União do Vegetal, declara que existe um estudo que alerta sobre o risco potencial de uma reação grave, potencialmente letal, na interação entre a ayahuasca e certos inibidores de recaptação de serotonina, como o Prozac. Tófoli acredita que a advertência é exagerada, pois nunca se teve notÃcia de quadros graves. Por outro lado, faz uma recomendação especÃfica: “A bebida jamais deve ser consumida com medicamento conhecido por tranilcipromina, um antidepressivo pouco utilizado, mas disponÃvel no mercado”.
“Pessoas com doenças fÃsicas graves devem receber quantidades reduzidas ou muito reduzidas, porque pode ocorrer aumento leve dos batimentos cardÃacos e da pressão, além da ocorrência de vômitos ou, mais raramente, diarreia”, previne, ainda, Tófoli.
Outra precaução apontada por Hallak é evitar a bebida após o consumo de alimentos que contenham tiramina (queijos, chocolates, carnes em conserva, salsichas, bebidas alcoólicas, lentilha, amendoim etc.). A combinação das substâncias pode resultar no aumento da pressão sanguÃnea arterial. Quanto aos possÃveis efeitos colaterais, o psiquiatra diz que as reações mais comuns são náuseas, vômitos e diarreia.
Indagado sobre quanto tempo ainda seria necessário para a conclusão dos estudos e da eventual comercialização de medicamentos à base da ayahuasca, o especialista declara: “É importante que a população entenda que um dos objetivos mais importantes das pesquisas é conferir segurança ao uso dessa substância. Como todos os estudos ainda estão em sua fase preliminar, estimo que ainda deveremos esperar ao menos 10 anos até que os princÃpios ativos da ayahuasca possam ser comercializados”, avisa.
SAIBA MAIS SOBRE A AYAHUASCA
O que é – A bebida é obtida através da combinação da planta Banisteriopsis caapi (mariri) e outras ervas que são maceradas ou aferventadas, como a Psychotria viridis (chacrona ou rainha) |
Como funciona – A atividade farmacológica da ayahuasca é única, pois depende da interação das substâncias contidas nas plantas. A B. caapi contém os alcaloides harmina, tetra-hidro-harmina (THH) e, em menor quantidade, harmalina. A P. viridis, por sua vez, fornece a triptamina alucinógena de ação ultrarrápida, a N-dimetiltriptamina (DMT). A modulação da DMT é promovida pelos efeitos ativos da B. caapi). E essas substâncias têm como função mais conhecida bloquear a enzima monoaminooxidase (MAO), permitindo que o DMT seja absorvido pelo sistema digestivo. Como elas são psicoativas, possuem efeito sedativo semelhante ao harmano (também conhecido como passiflorina, alcaloide presente em uma outra trepadeira da ordem do B. caapi, o maracujá) |
Efeitos – O consumidor do chá pode vivenciar percepções sensoriais sem estÃmulos externos. Na maioria das vezes, a pessoa permanece consciente de que está sob efeito da ayahuasca, e mantém controle de suas ações. IndivÃduos que fazem uso da bebida regularmente descrevem capacidade de maior compreensão de aspectos espirituais de sua própria vida |
Tempo de ação – o consumo de 100ml da bebida requer 30 minutos para entrar na corrente sanguÃnea e atuar sobre o cérebro. Esse efeito pode durar até quatro horas. Já a sensação de bem-estar e tranquilidade costuma se prolongar, segundo usuários
Fontes: Jaime Hallak, professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto (FMUSP-RP) e LuÃs Fernando Tófoli, médico psiquiatra e professor adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará (Ufce). |