Deve-se tratar usuários de drogas como humanos, diz Liz Evans, consultora do Viva Rio e fundadora do Portland Hotel Society, projeto inovador de combate às drogas em Vancouver, Canadá. Há 23 anos, Liz criou abrigos com salas de consumo supervisionado, e viu despencarem as infecções por HIV e mortes por overdose.
Como começou o seu trabalho com a chamada redução de danos?
Quando comecei este trabalho, era óbvio para mim que existia um problema gigante. Andava na rua para ir ao trabalho e via pessoas morrendo de overdose, pessoas abertamente injetando drogas na calçada, havia um sofrimento inacreditável. Aquelas pessoas eram pobres, invisÃveis, frequentemente sem teto. Comecei a ouvir essas pessoas, suas histórias de trauma, abusos, violência. Era muito óbvio para mim que aquelas eram pessoas bonitas que foram jogadas fora pela sociedade. Trazê-las para abrigos, dar acesso a suprimentos limpos, como agulhas, abrir salas de uso supervisionado de drogas evita que elas morram. E faz com que cerca de 800 entrem em tratamento a cada ano. Por meio de uma combinação de pesquisa, educação da comunidade e mudança de estratégias da polÃcia, percebemos que podÃamos tratar as pessoas de uma forma diferente e conseguir resultados melhores. Minha luta foi tentar humanizar a situação dessas pessoas.
Isso foi há 23 anos. Na época, era difÃcil explicar à comunidade local o que vocês estavam fazendo. Como essas pessoas veem o trabalho de vocês hoje?
Mostramos, com pesquisas feitas na nossa cidade, que quase erradicamos o HIV, e reduzimos dramaticamente o número de pessoas usando drogas injetáveis nas calçadas. Então, empresários e vizinhos que estavam céticos em relação à ideia de ter lugares de uso de drogas injetáveis sob supervisão passaram a nos dar suporte.
Acolhemos pessoas independentemente do estágio de vÃcio em que estejam. Se, no momento, a pessoa vive em uma vida caótica e está viciada em um número significativo de coisas diferentes, isso não significa que não possamos encontrar um jeito para que receba cuidados básicos.
E o que mudou na abordagem das autoridades locais?
A maneira como profissionais de saúde olham para pessoas viciadas em drogas é diferente, a forma como os abrigos são desenhados é diferente, as estratégias da polÃcia são diferentes. A polÃcia não se preocupa em prender pessoas por porte de drogas porque não está interessada em prender usuários. Está interessada em prender os traficantes.
Qual o papel das salas de uso de drogas sob supervisão?
Havia uma situação desesperadora quando lutamos para abrir as salas de injeção supervisionada, pois estávamos experimentando altas taxas de infecção de HIV. Vimos o que era feito em cidades europeias, na Alemanha, na SuÃça. A luta para abrir esses lugares foi para salvar vidas. E salvamos. Em 11 anos de funcionamento das salas, tivemos 18 mil pessoas inscritas. São 200 pessoas por dia. Nas salas, trabalham pessoas conectadas à comunidade, que podem ser músicos, acadêmicos ou ter outras profissões. E há sempre duas enfermeiras e uma pessoa dedicada a aconselhamento, que conecta as pessoas a serviços, vendo se querem ir para a desintoxicação ou tratamento, se precisam de abrigo ou algo relacionado a bem-estar. Vimos uma queda significante em práticas de risco de compartilhamento de drogas ou hábitos ligados ao seu uso. Ter este espaço significa ser tratado com respeito, começar a sentir que alguém se importa com você — e, lentamente, essas pessoas começam a se importar com elas mesmas. Começam tomar decisões diferentes sobre que drogas usar e quando usar. Com frequência, tomam decisões mais radicais e vão para tratamento ficar limpas, mas essa não é uma trajetória única e não é a única trajetória que exigimos.
Vocês começaram com apenas 70 pessoas. Qual o tamanho do projeto hoje?
A abordagem acabou crescendo para toda a cidade. Hoje Vancouver tem mais de 30 hotéis para abrigo. Então há milhares de unidades de alojamento. O trabalho pelo qual fui diretamente responsável tem 1.200 unidades, todas para pessoas viciadas em drogas. Equilibrar as condições de moradia dessas pessoas é equilibrar a vida dessas pessoas, o que leva tempo. Essa é uma jornada complicada para todos nós. Por exemplo, há o caso de uma mulher que foi particularmente importante para a minha vida. Ela era viciada em remédios, álcool, cocaÃna. Quando a conheci, tinha cerca de 38, e eu, 25. Ela foi estuprada e numa noite voltou para o abrigo onde eu estava trabalhando. Tinha sido agredida, mas não queria que eu chamasse a polÃcia. Eu a segurei como uma criança, e ela ficava repetindo “É minha culpa, mereço isso, sou uma pessoa ruimâ€. Naquele momento pensei “agora entendo o vÃcioâ€. Essa mulher foi molestada sexualmente, agredida fisicamente quando era criança, teve uma vida realmente difÃcil e, mesmo se sentindo tão violada, continuava repetindo que era sua culpa. Nós não olhamos para quem usa drogas como pessoas que estão lutando para se encontrarem, que não se sentem aceitas. Focamos tanto na questão da droga que perdemos o foco na questão humana.
Como você acha que o Brasil está lidando com esse assunto?
Acho que vocês estão no inÃcio de um longo caminho de remodelação dos seus serviços de saúde. Vejo mudanças significantes na polÃticas de saúde para usuários de drogas, particularmente com o Casa Viva, os Centro de Atenção Psicossocial Ãlcool e Drogas (CAPS AD) e também com o projeto São Paulo de Braços Abertos. Mas me entristece ver aqui, como em muitos lugares do mundo, pessoas nas ruas maltratadas como resultado das leis que regulam as drogas, que não consideram que o usuário de drogas é a vÃtima do problema, não a causa.