Uma mulher afirma ter revivido todas as overdoses que teve na vida, um homem diz ter visualizado a própria morte, outras pessoas relatam reviver traumas de infância esquecidos. Esses são depoimentos de pacientes com problema de dependência quÃmica, que experimentaram ibogaÃna. A maioria descreve a experiência como assustadora, mas também transformadora. Entre os 75 pacientes com dependência de diferentes drogas, como cocaÃna, crack e álcool, 55% dos homens e 100% das mulheres ficaram livres do vÃcio por um ano ou mais.
Conduzido pela Unifesp (Universidade Federal de S. Paulo), o estudo inédito fez uso da ibogaÃna, substância alucinógena, extraÃda de uma planta africana. A pesquisa chegou a ser noticiada pela Royal Pharmaceutical Society, do Reino Unido e publicada pelo britânico The Journal of Psychopharmacology. Entre 2005 e 2013, os pesquisadores administraram o cloridrato de ibogaÃna, importado do Canadá, e ministrado em cápsulas. No total, 62% permaneceram abstinentes. “É um resultado extraordinário neste campo”, diz Eduardo Schenberg, doutor em Neurociências (USP), que participou do estudo, juntamente com o psiquiatra Dartiu Xavier. Segundo ele, a maioria dos tratamentos convencionais não chega a 30% de sucesso. “Alguns ficam abaixo dos 10%”, diz.
Dados mostraram que 72% dos pacientes eram “poliusuários”, ou seja, faziam uso de álcool, cigarros, maconha, cocaÃna e crack. “Este é um dos pontos mais inovadores, pois revela eficiência e segurança do uso clÃnico, médico e hospitalar da ibogaÃna no tratamento de usuários abusivos destas substâncias”, comenta Schemberg.
Parte dos pacientes tomaram ibogaÃna há mais de dois anos, outros há poucos meses. De acordo com o neurocientista, 25% dos pacientes tomaram ibogaÃna apenas uma vez, 44% tomaram duas vezes, 19% tomaram 3 vezes e uma parcela muito pequena tomou mais de três vezes.
Os intervalos entre as sessões foram, sempre, de ao menos um mês, sendo frequentemente mais longos que isso. “Dez pacientes procuraram, depois da ibogaÃna, outros tratamentos psicológicos”, afirma Schemberg.
Um dos pacientes que participou da pesquisa da Unifesp é Felipe Cruz, 31. Usuário de crack desde os 17 anos, ele continuou consumindo a droga até a idade de 25. Durante esse tempo foi internado em clÃnicas e comunidades terapêuticas 19 vezes. “Não conseguia vencer a fissura do crack”, diz. “Às vezes, eu ficava duas ou três semanas sem usar, mas logo recaÃa novamente”.
Há seis anos, Felipe usou ibogaÃna pela primeira vez. “A experiência foi bem intensa”, diz. “Tive visões da minha infância que eu havia esquecido, momentos marcantes da minha vida e até coisas que nunca aconteceram. A visão que mais me impactou foi da minha mãe chorando ao lado do meu caixão”.
Segundo ele, depois de algumas horas da dose, o efeito foi ficando mais fraco. “É quando começa uma fase importante de perguntas e respostas em que vários questionamentos vêm à tona. É quando a pessoa se pergunta: o que estou fazendo da minha vida?”. Hoje, ele coordena um trabalho com dependentes quÃmicos, adolescentes e crianças em uma comunidade terapêutica, no interior de São Paulo.
Embora o interesse em investigar os efeitos da ibogaÃna existisse desde o inÃcio da década de 90, o psiquiatra Dartiu Xavier, principal autor do estudo, conta que tomou a decisão ao observar o crescimento no Brasil o uso da substância em tratamentos para dependência em clÃnicas brasileiras. “Soube de muitas pessoas que estavam utilizando sem critérios cientÃficos, não sabemos dos riscos desse uso”, afirma.
Dezenas de clÃnicas oferecem o tratamento que, geralmente, dura entre três e sete dias, e pode custar de R$ 3,5 mil a R$ 8 mil. Uma das clÃnicas ouvidas pela reportagem do UOL, localizada no interior de São Paulo, afirma usar o medicamento importado da Ãfrica.
Lá, quem aplica a substância é uma dependente quÃmica, que se diz curada com a ibogaÃna. “Após dez internações conheci a ibogaÃna”, diz Camila Patah. “Fiquei impressionada por não sentir mais vontade de usar e quis trabalhar com isso”. Ela conta que não usa drogas há dois anos e meio. E há seis meses aplica a ibogaÃna.
Ela garante que é feita um triagem antes do paciente passar pelo tratamento. “Não podem prescrever para pessoas que têm quadro de esquizofrenia e é preciso fazer um eletrocardiograma”, afirma. Segundo ela, 16 pessoas já passaram pelo tratamento com ela.
Apesar do uso na recuperação de dependentes quÃmicos, a iboga, arbusto conhecido por botânicos como Tabernanthe iboga, cujo principal alcaloide é a ibogaÃna, é usada secularmente em rituais xamânicos, principalmente no Gabão e em Camarões, na Ãfrica Central. A planta pertence à categoria dos alucinógenos clássicos, entre eles, o peiote, a ayahuasca e o LSD.
No Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a ibogaÃna não é proibida nem consta na lista de substâncias controladas, e pode ser importada para uso pessoal. Entretanto, a agência informou por meio de sua assessoria que, como até o momento não há medicamento registrado no paÃs, o uso terapêutico comercial é considerado clandestino e ilegal.
Os pesquisadores são otimistas com o potencial terapêutico da planta africana, mas advertem que os estudos ainda não são conclusivos sobre a extensão dos seus efeitos, e que o uso da ibogaÃna deve ser feito com supervisão clÃnica rigorosa. Há registros de mortes no tratamento não-controlado de dependentes com ibogaÃna na Holanda, França e SuÃça. Nos casos estudados no Brasil não foi observado nenhum caso de efeito colateral grave, nem de mortes. Para Eduardo Schenberg, doutor em Neurociências (USP), isso corrobora a importância do tratamento não ser ilegal.
Segundo o pesquisador, a proibição gera más práticas e riscos aos pacientes. “É fundamental que haja apoio médico profissional em ambiente hospitalar, com substância de boa procedência, dosagem conhecida e bem determinada e triagem adequada dos pacientes”, afirma.
Como em qualquer outra prática médica, há contra indicações no uso da ibogaÃna. A principal é para pacientes com problemas cardÃacos. “O eletrocardiograma é um exame que deve ser incluÃdo na triagem de qualquer paciente antes do uso da ibogaÃna”, afirma o médico.
Schemberg diz que o Brasil pode assumir um papel de liderança no campo das pesquisas de psicodélicos. “O Brasil encontra-se em situação favorável para se tornar lÃder nesta linha pioneira que pode ajudar muito num problema de grande dimensão”. Ele destaca que atualmente não há tratamento farmacológico para dependência de drogas, em especial para os estimulantes como cocaÃna e crack. “A ibogaÃna é uma via que deve ser explorada”, diz. O especialista, que reside em Londres, planeja realizar um ensaio clÃnico com a substância nos próximos anos.