COLETIVO DAR
Na mesma semana em que o governo brasileiro tentou para livrar Marco Archer Cardoso Moreira da pena de morte por tráfico de drogas na Indonésia, Patrick Ferreira de Queiroz, que completaria 12 anos no próximo sábado, foi assassinado pela polícia no Brasil. ATÉ QUANDO?
Uma semana trágica. Na Indonésia, Marco Moreira, preso há 10 anos por tráfico de drogas, teve que escolher se queria ser fuzilado em pé, sentado ou ajoelhado – só sabemos que foi morto por um disparo de um entre 12 atiradores no último sábado. Enquanto isso, na quinta-feira, o garoto Patrick Ferreira de Queiroz foi julgado, condenado e executado pelo braço armado do Estado brasileiro e caiu com tiros de fuzil, assim como Marco. O crime aconteceu no Méier, área de UPP, no Rio de Janeiro.
Ao contrário de Marco, Patrick não teve o direito a um último desejo, por mais mórbido que pudesse ter sido. Instintivamente, o garoto apenas teve tempo para tentar salvar sua própria vida, mas foi detido por disparos da polícia. As balas penetraram as costas da criança, rasgando sua pele negra e acabando com as alegrias presentes e sonhos futuros, que deviam voar tão alto quanto a pipa que costumava soltar em sua quebrada. Ele sopraria 12 velinhas no próximo sábado.
“O sentimento é de tristeza, só isso. A gente tava preparando uma festa para ele, comprei pipa, linha, tudo”, disse Daniel Pinheiro de Queiroz, pai da criança.
Tanto Marco quanto Patrick foram mortos pela chamada “Guerra às Drogas“, que em episódios como esses mostra seu verdadeiro caráter de ser uma guerra contra as pessoas. Se Marco estava preso por entrar com 13 quilos de cocaína na Indonésia e foi morto por uma lei absurda apesar de alguns esforços do governo brasileiro, Patrick sentiu toda a perversidade desse mesmo Estado que tentou aliviar a pena de Marco do outro lado do mundo. Nem ele nem ninguém nos morros Brasil afora, sob o gatilho do Estado, já teve um pedido de clemência “como presidente e como mãe”, como fez a Dilma. Aqui, o pai foi impedido de reconhecer o corpo do próprio filho. O governo em todas as suas inatingíveis esferas, é claro, se calou diante das balas que cantaram alto como sempre no Rio de Janeiro.
Em tempos de comoção com o lamentável massacre no jornal francês Charlie Hebdo, fica escancarada a ridícula indignação seletiva dos políticos e da imprensa, em todo lugar do mundo. Da mesma forma que nossos governos não movem uma palha a respeito das penas de morte aplicadas diariamente em solo brasileiro, na massiva manifestação “Je suis Charlie” que houve em Paris, o foco midiático estava nos 21 chefes de Estado que, de braços dados, marchavam enquanto confortavelmente deixavam de lado as atrocidades que praticam em suas terras. A lista seria enorme, então basta citar a presença do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que há pouquíssimo tempo atrás esteve a frente dos bombardeios que mataram mais de duas mil pessoas em Gaza.
“Eu só escutei os tiros e foram quatro tiros de fuzil. Depois de três ou quatro tiros vieram me chamar. Peguei meus documentos e quando eu cheguei no local falei: ‘falaram que meu filho ta baleado aí’. E os policiais cercaram o local e não deixaram eu subir e ficavam falando entre eles assim ‘e aí? Já acabou? Já foi?’. Meu filho tava correndo atrás de pipa, não ta envolvido no crime”, disse o pai de Patrick.
Acusado de portar uma pistola e drogas em sua mochila, que teriam sido forjadas pela polícia para justificar o “auto de resistência” (a licença pra matar da polícia brasileira), o menino de 11 anos virou estatística, entrando para a lista fúnebre de um país que, segundo o mapa da violência de 2014, registrou 56 mil homicídios em 2012, dos quais 30 mil foram de jovens, sendo que 77% desses são negros como Patrick.
Ao noticiar a tragédia, a grande mídia deteve-se ao debate se Patrick estava ou não associado ao varejo de drogas, como se a morte de um “traficante” fosse justificada, enquanto a morte de uma criança não associada ao “tráfico” constitui uma verdadeira tragédia. Segundo a família de Patrick, ele “era de brincar na comunidade” e jamais esteve envolvido com a venda de drogas ilícitas, mas isso é o de menos. Estamos diante de uma tragédia imensurável, que revela o caráter perverso de nossos governantes e seus Robocops frios que sentem apenas ódio e riem como hienas diante dos corpos que empilham nas quebradas.
As mortes de Marco e Patrick também escancaram a perversidade de uma sociedade que acha justificável o Estado tirar a vida de uma pessoa que se enquadre na terrível e seletiva classificação de “traficante”. Basta ler os comentários nas notícias sobre as mortes de Patrick e Marco para sentir o tom perverso com que tais episódios são tratados na esfera pública. Por essas e outras, a nossa luta também passa pela anti-classificação. Afinal, quem é o “traficante”?: o aviãozinho do morro, o “falcão”, o varejista, o atacadista, o endolador (que embala as drogas), o gerente da boca, o “mula”, o cultivador, o usuário que passa drogas aos amigos, o policial que molha a mão com propina, o soldado que forja flagrantes, o delegado corrupto, o padeiro que lava parte da grana, o banqueiro que lava o grosso da grana? Quem tem as mãos sujas de sangue: a polícia que tomba corpos nas quebradas, os governantes que mantêm uma lei de drogas insensata e assassina, a população, que em sua maioria abaixa a cabeça e aplaude essa espiral de violência sem sentido enquanto o medo entorpece a sua razão?
Ao constatar o grau de entorpecimento da razão da maioria, nós, do Coletivo DAR, temos ainda mais certeza de que construímos nosso caminho mirando o rumo certo – ainda que paremos e perguntemos a cada novo passo. Ao invés de focar nossa luta em uma mudança de lei, optamos por dar as costas ao Estado e virar de frente para as pessoas, buscando uma mudança de mentalidade na sociedade em relação às drogas. Só uma mudança de mentalidade pode por um fim nas mortes de nossos Patricks, Marcos, Amarildos, Douglas e tantos e tantos mais.
Tod@s somos atingid@s pela Guerra às Drogas. Desde os 43 estudantes de Ayotzinapa, desaparecidos pelas mãos da polícia a mando do prefeito de Iguala, no México, a Patrick e Marco, passando pela tiazinha que tem medo de sair na rua depois das 22h e pelo pesquisador impedido de desenvolver seus estudos – e por nós e por você. Por isso, te convidamos a refletir sobre nosso atual momento, onde a violência tem dado o tom nas periferias e nas ruas do centro – o MPL que o diga – e a tomar uma atitude no sentido de construir um novo mundo onde tragédias sejam apenas ficções.
Fortaleça a Marcha da Maconha de sua cidade, construa o seu coletivo com os chegados, leve o debate ao seu bairro, pois só assim deixaremos pra trás as causas da dor que hoje nos faz derrubar lágrimas por nossos mortos, presos e desaparecidos. Só a luta muda a vida. Luto.