No papel, elas deveriam ser um modelo inovador de acolhimento e tratamento voluntário de usuários de drogas, sem medicamentos, grades ou estruturas de contenção.
Na prática, crescem denúncias de espaços voltados a internações involuntárias, com uso de medicações pesadas e, em alguns casos mais graves, até relatos de maus-tratos e tortura.
A diferença entre o papel das “comunidades terapêuticas” e desvios que culminaram no temor sobre o surgimento de “manicômios modernos” têm gerado debate entre grupos de direitos humanos e conselhos de polÃticas de drogas no paÃs.
Em meio ao impasse, o governo lança neste mês um novo marco regulatório para o setor. Até então, as únicas regras eram da Anvisa (agência de vigilância sanitária), restritas à área da saúde.
As novas medidas, elaboradas pelo Conad (Conselho Nacional de PolÃticas sobre Drogas), órgão do Ministério da Justiça, reforçam o papel inicial previsto para essas comunidades, com vetos à contenção fÃsica ou por medicamentos dos abrigados.
Também preveem liberdade de entrar, sair e receber visitas, e obrigam entidades a elaborarem um plano de atendimento especÃfico a cada acolhido, após avaliação prévia na rede de saúde.
“PercebÃamos que havia necessidade de estabelecer regras com foco no respeito à pessoa acolhida”, explica o presidente do Conad, Vitore Maximiano.
Ao mesmo tempo em que visam organizar o setor, as medidas também geram polêmica entre entidades e profissionais que atuam na área de saúde mental. Alguns temem que o documento seja inócuo. Outros, que agrave os problemas já existentes.
Um dos motivos é o tempo de acolhimento previsto nestes locais: para o Conad, é de até um ano completo. Para o CFP (Conselho Federal de Psicologia), o ideal seria no máximo três meses.
“Mais do que isso, acaba trazendo a institucionalização. É uma medida sem base cientÃfica”, diz o conselheiro Rogério Oliveira, para quem a norma contraria os princÃpios da lei da reforma psiquiátrica –que levou ao fechamento dos antigos hospitais psiquiátricos no paÃs.
QUESTÃO DE FÉ
Outro ponto em debate é que, pelas novas normas, há possibilidade de que as instituições façam atividades que propiciem o “desenvolvimento da espiritualidade”.
Segundo Raul Nin Ferreira, do núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública de São Paulo, a medida pode abrir brecha para que a fé seja imposta a dependentes em tratamento.
Hoje, boa parte dessas comunidades –são 1.800 no paÃs– são mantidas por grupos religiosos. Deste total, 371 mantêm convênio com o Ministério da Justiça e têm atendimento gratuito.
Outras chegam a cobrar R$ 2.000 mensais. “Em um Estado laico, recursos são gastos para doutrinação religiosa de pessoas”, critica Ferreira.
“Avançamos muito para reconhecer que drogas são um problema de saúde pública. Seria um retrocesso achar agora que é um problema de falta de fé”, diz o procurador de direitos do cidadão em São Paulo, Jefferson Dias.
HOMEM MÚLTIPLO
Presidente da Confenact, confederação que reúne as comunidades terapêuticas do paÃs, Célio Luiz Barbosa nega imposição religiosa e defende a espiritualidade como parte da recuperação.
“Não aprovamos nenhuma comunidade que trabalha buscando a religião. Mas Deus é importante na vida das pessoas. Não podemos abrir mão disso para aqueles que acreditam. O paÃs é laico, mas o homem é múltiplo.”
Para Barbosa, a regulamentação pode ajudar a separar “o joio do trigo”.
Segundo ele, há hoje “clÃnicas” irregulares, que não podem ser chamadas de comunidades terapêuticas.
“Onde tem tranca, tem grade, é manicômio. Nosso nome tem que ser diferenciado desses outros serviços.”
BRIGA NA JUSTIÇA
Entidades contrárias ao modelo das comunidades terapêuticas para dependentes de álcool e drogas afirmam que planejam recorrer à Justiça para evitar que a regulamentação entre em vigor.
A intenção é compartilhada por representantes do Ministério Público Federal e associações de profissionais, como o CFESS (Conselho Federal de Serviço Social).
“Faremos uma ação civil pública questionando a legalidade”, afirma o procurador Jefferson Dias, para quem as novas regras podem agravar a situação dos locais.
Além da espiritualidade, ele critica o fato de comunidades usarem o trabalho dos internos como forma de obter recursos. “Não há a figura do profissional de saúde. É enxadaterapia”, afirma. “Estamos correndo o risco de ter que falar em uma nova reforma psiquiátrica.”
Para Alessandra Souza, do CFESS, o modelo estabelecido nas regras representa uma polÃtica “higienista”.
“Ela difere da polÃtica de saúde vigente no paÃs e prega abstinência, enquanto a polÃtica atual lida com redução de danos”, diz. “É mais uma perspectiva de tirar as pessoas do convÃvio em sociedade, assim como ocorreu no passado com os manicômios, do que realmente prestar o serviço necessário.”
Questionado sobre o embate com as entidades, Vitor Maximiano, do Conad, diz que a resolução pode ter sido mal-interpretada e afirma que está a disposição para dialogar sobre os impasses.
“Não estamos falando de espaços de privação de liberdade, mas de locais para dar proteção social a quem necessita, de forma voluntária.”
“As pessoas se recuperam da dependência das mais variadas formas. Estamos tentando regular um serviço que muitas famÃlias têm como referência”, completa.