No dia 30 de abril de 1962, o célebre assaltante José Miranda Rosa teve atrás de si um cerco de aproximadamente 300 policiais. Mineirinho, como era conhecido, acabou sendo executado com 13 tiros de metralhadora pela polÃcia carioca numa emboscada. Como era de se esperar, o assassinato e a alteração da cena do crime foram encarados pela imprensa da época com normalidade.
No mês seguinte, Clarice Lispector escreveria sobre o caso numa crônica publicada pela revista Senhor: “Há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alÃvio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”
É um exercÃcio de crueldade imaginar o que diria Clarice do décimo quarto até o centésimo décimo primeiro tiro dos que foram dados pela PolÃcia Militar do Estado do Rio de Janeiro ao executar Wilton Esteves Domingos Júnior, 20 anos, Wesley Castro Rodrigues, 25, Cleiton Corrêa de Souza, 18, Carlos Eduardo da Silva de Souza, 16 e Roberto de Souza Penha, 16, no final de semana passado em Costa Barros, Zona Norte do Rio.
Se Mineirinho era um criminoso que tinha escapado do manicômio judiciário, os cinco jovens no carro cravejado de balas de fuzil não estavam fugindo da polÃcia. Não eram bandidos. Iam fazer um lanche após uma comemoração até que encontraram uma patrulha da PM carioca disposta a cumprir com eficácia sua missão histórica desde 1809 – oprimir, aprisionar e eliminar negros. (Nota que se faz necessária no paÃs dos autos de resistência onde a imprensa automaticamente levanta antecedentes de cidadãos executados pela polÃcia: mesmo em fuga, mesmo sendo bandido, Mineirinho deveria ter sido preso e julgado, e não assassinado.)
O caso dos cinco jovens fuzilados por policiais do 41º BPM (Irajá) é tudo menos isolado. Trata-se de corriqueiro episódio, parte de uma polÃtica de extermÃnio que perpetua-se num caldo de impunidade e indiferença. Impunidade, escrevo, mas talvez o termo não faça sentido por aqui. A máquina oficial é azeitada justamente para matar: o genocÃdio é uma polÃtica de Estado tão velha quanto o Brasil.
Aqui, num transe solipsista, desviamos o olhar e o pensamento até que certos odores e imagens incômodas deixem de existir. Nada poderia contrapor-se mais ao desejo de alteridade da escritora como antÃdoto à banalidade do mal – querer ser o outro, ser o outro varado de balas.
Apesar de breves episódios de comoção pública, quando um ou outro órgão de imprensa decide jogar luz a casos que sempre terminam esquecidos e irresolutos –e com homicidas fardados em liberdade– a única certeza é a de que logo haverá outra chacina ainda pior. Sob a violenta compaixão da revolta, compartilhamos vÃdeos e reportagens em redes sociais na internet e nos perguntamos: “O que falta acontecer?” Pergunta errada, idiota. Não falta nada: está acontecendo há séculos. Não vai parar. Não haverá o centésimo décimo segundo tiro, o de misericórdia, nessa sociedade implacável enquanto não acordarmos. E não o faremos por pura conveniência: “se eu não for sonsa, minha casa estremece.”
Clarice segue: “O que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. Porque quem entende desorganiza.”
Os cento e onze tiros não vão nos acordar enquanto não estivermos dispostos a abraçar o caos. Pois a ordem que conhecemos é pura barbárie. Uma barbárie que nos veste muito bem.