Edson Barros, João Vitor Salgado, Ricardo dos Reis Santos e Yan Soares dos Santos. Em comum, o fato de serem jovens, negros, pobres e moradores das periferias de São Paulo mortos pela polÃcia em episódios classificados nos boletins de ocorrência como “resistência seguida de morteâ€. Mas suas histórias têm outra semelhança: em algum momento a Justiça falhou em seus processos. Promotores ignoraram evidências que poderiam inocentá-los da acusação de terem disparado nos PMs, ou juÃzes fizeram vista grossa a laudos e perÃcias técnicas, o que terminou com a absolvição sumária dos policiais. Existem várias maneiras pelas quais o Estado, além de matar, falha com os jovens da periferia. De acordo com dados do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de SP, mais de 90% dos casos classificados como resistência seguida de morte são arquivados sem nem mesmo ir a julgamento, o que aumenta a impunidade e dá carta branca para que os maus policiais continuem a agir.
Edson Barros, por exemplo, foi acusado, junto com um grupo de quatro amigos, de trocar tiros com a polÃcia após roubar um carro na zona norte de São Paulo, em 2009. Ele foi morto, e seus colegas acusados de tentativa de homicÃdio dos PMs. Laudos técnicos apontaram a ausência de resÃduos de pólvora nas mãos de todos os suspeitos, um forte indÃcio de que não dispararam contra a tropa. O promotor Norberto Joia, que pediu a condenação dos amigos de Edson, não apenas ignorou essa prova – e praticamente passou batido pela morte do jovem, que sequer foi investigada – como também não pediu que fosse feito exame de impressão digital nas armas atribuÃdas pela PM aos envolvidos. De resto, o caso seguiu um script repetido à exaustão nas cortes do paÃs: nenhum policial foi ferido e nenhuma bala disparada pelos suspeitos foi localizada em lugar algum. No final, os quatro amigos de Edson foram condenados a penas que variam de 4 a 10 anos de prisão em regime fechado. Procurado pela reportagem, o promotor Joia afirmou que o laudo que detecta resÃduos de pólvora “não é tecnicamente confiável”, e que o exame de impressões digitais nas armas é falho, “já que após a ocorrência os policiais desarmam os suspeitos e contaminam a evidência”.
Muitos promotores, por sua vez, optam por pedir o arquivamento do inquérito sem apresentar denúncia contra os policiais envolvidos no homicÃdio. Neste caso, não há nada que a famÃlia da vÃtima possa fazer, independentemente da existência de provas que poderiam condenar a tropa. Quando isso ocorre, o juiz pode pedir a troca do promotor, para que outro assuma o processo e desse andamento ao caso. Mas isso raramente ocorre. “Existe uma cultura do compadrio muito forte no sistema de Justiçaâ€, explica Daniela Skromov, coordenadora do Núcleo. Segundo ela, trata-se de uma série de relações pessoais e profissionais, que acabam comprometendo, muitas vezes, a isenção das partes. “Policiais militares fazem a escolta de juÃzes e promotores. Os promotores por sua vez, precisam da investigação da policia para realizar o seu trabalhoâ€, afirma a defensora. “RarÃssimas vezes o juiz pede outro promotor. JuÃzes, promotores e defensores convivem diariamente entre si. Já ouvi de juÃzes: ‘Nossa, já tive uma briga séria com aquele promotor, agora não posso me indispor com ele, convivo todo dia com eleâ€.
Foi o que aconteceu com João Vitor Salgado, morto por PMs em julho de 2012 no Jardim Iporanga, em Franca, São Paulo, quando tinha 16 anos. Ele foi atingido por seis tiros, sendo quatro em regiões vitais – três no tórax e um no abdômen. Os policiais envolvidos na ocorrência afirmaram que ele foi baleado ao disparar contra eles durante perseguição a pé, e apresentaram como evidência um revólver calibre 38 apreendido supostamente com o jovem. Assim como no caso de Edson, os exames que detectariam se João disparou a arma deram negativo, e não foram colhidas impressões digitais do revólver que seria seu. “A prova dos autos indica que a ação dos policiais era totalmente necessária para conter a injusta agressãoâ€, escreveu o promotor Alfredo Coimbra no pedido de arquivamento, ignorando solenemente o laudo residuográfico. Novamente, as únicas testemunhas ouvidas no caso foram os PMs que dispararam contra o adolescente. Procurado pelo EL PAÃS para comentar o processo, o MP informou que o caso está “sob segredo de Justiça”, e que o promotor não poderia se manifestar.
“Me parece que o MP em muitos casos não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele estabelece uma cruzadaâ€, afirma Daniela. Segundo ela, neste tipo de caso é “como se existissem cartas marcadasâ€. Promotores como Rogério Zagallo, que em 2013 provocou polêmica ao pedir no twitter, enquanto estava preso no trânsito provocado por um protesto do MPL, que “alguém pode avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial”, não seriam a exceção. Para a defensora, Zagallo “é um sÃmbolo de um órgão que não cumpre com seu papel fundamentalÃssimo que seria realizar um controle externo sério, independente e imparcial da atividade da polÃciaâ€.
A prova dos autos indica que a ação dos policiais era totalmente necessária para conter a injusta agressão
Mas nem só de alguns promotores é a culpa. O juiz Alberto Anderson Filho, por exemplo, optou por absolver sumariamente dois PMs que mataram Ricardo dos Reis Santos com 15 tiros em 2009, na zona sul de São Paulo. Neste caso, o Ministério Público ofereceu denuncia contra os policiais e pediu que o caso fosse a julgamento. Novamente a mesma história: a vÃtima fatal foi flagrada pelos soldados enquanto praticava um roubo, recebeu ordem de prisão, disparou contra a tropa e foi morto. O laudo residuográfico que detecta vestÃgios de pólvora, no entanto, derruba a versão dos PMs. A perÃcia feita no estabelecimento que Ricardo teria tentado assaltar também não encontrou nenhum indÃcio de disparo feito por ele – nenhuma bala nas paredes ou no chão. A defensoria alegou ainda que, de acordo com a necropsia, os “tiros foram de cima para baixo, ou seja, em trajetória descendente, tÃpicos de execução sumáriaâ€. Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo informou que “Pela Lei Organica da Magistratura o juiz não pode comentar sobre processo”.
Para o ouvidor da PolÃcia, Júlio Cesar Fernandes Neves, existem bons promotores no MP, mas parte da instituição “acha que bandido bom é bandido mortoâ€. “Em alguns casos de resistência seguida de morte os promotores acreditam que quem morreu era bandidoâ€, explica. Como consequência, esse entrave ideológico “faz com que eles trabalhem com uma pré-disposição a não penalizar o autor daquele crime. Isso existe, infelizmenteâ€. Neves ressalta também que, mesmo quando um caso vai para o tribunal o júri, existe outro cenário perverso: jurados e testemunhas com medo de condenar ou depor contra um policial. “Fica muito difÃcil condenar um policial matador. Existe um sentimento de medo, a população sabe do que eles são capazes, e aà a impunidade e consequentemente os crimes aumentamâ€, diz.
Para Luciane Frugiuele, promotora do Grupo Externo de Controle da Atividade Policial do MP (Gecep), “existe uma permissividade” no tribunal do júri. “A sociedade permite hoje que exista essa violência policial, principalmente porque entende que o Judiciário está fraco, que a lei está fraca”, afirma. Segundo ela, “se num tribunal você tem um caso de policial militar que matou um criminoso em confronto, e mesmo que fique comprovado que houve excesso, caso o advogado do PM consiga provar que o morto tinha um histórico de crimes, a chamada ‘passagem’, a tendência é que os jurados absolvam o policial”.
Daniela Skromov, da Defensoria Pública, afirma que os advogados da tropa vencem os casos explorando o medo e a ideologia dos jurados, que é permissiva com matanças. “Eles falam para o júri: ‘E depois, quem vai salvar vocês? Quando o bandido chegar vocês vão chamar quem? O Batman?’. É um discurso alterado, inflamado em tom de voz. Esses advogados despertam um medo profundo nas pessoas”, afirma.
Todos os casos citados acima ainda estão em aberto, na medida em que a Defensoria Pública entrou com ações contra o Estado, e alguns estão em segredo de Justiça.
Por volta das 17h30 de 5 de agosto de 2009 Maria Aparecida Silva, 52, entrou no Hospital Geral Vila Nova Cachoeirinha. Tinha o rosto pardo inchado após horas de choro. “Vim identificar um corpoâ€, disse na recepção. Em alguns minutos um funcionário apareceu e a levou até o necrotério, onde abriu um saco preto. “É uma cena que eu já tinha visto em filme. Mas quando quem está lá deitado cheio de furo é seu filho… É um pesadeloâ€, afirma a faxineira. Deitado sobre uma mesa de ferro estava o corpo de Edson Lima Barros, 20, conhecido como Dedê, seu filho do meio, que havia passado a manhã inteira como ‘não identificado’ no local. Mesmo abalada, Maria pôde observar que ele recebeu quatro tiros. Mas foi outro ponto que chamou sua atenção: o jovem havia sido alvejado na testa das duas tatuagens de palhaço que tinha em seu corpo, no lado esquerdo do peito e no abdômen. Além disso um dos disparos havia destruÃdo seu órgão genital. Veio à sua cabeça a frase dita por policiais em tom alegre momentos antes no saguão do hospital: “a caça foi boa, um foi pro saco, dois tá baleado e dois tá aqui em cima presoâ€.
Os fatos que levaram Edson para a mesa do legista começaram horas antes. Às 9h30 ele estava no banco do passageiro de um Peugeot Escapade prata. No volante, o amigo Daniel Souza, 21. Os dois estavam desde a noite anterior “virados na baladaâ€, e dirigiam pela zona norte de São Paulo em direção à Freguesia do Ó para “pegar umas minasâ€. O veÃculo, que havia sido roubado por eles na noite anterior – segundo Daniel afirmou em depoimento à Justiça -, parou em frente à casa de um amigo, e outros três jovens se juntaram à comitiva: Leônidas Ribeiro de Melo, Renato Garcicas Vieira e Francinaldo dos Santos Feitosa.
Por volta das 10h20 daquele dia, o soldado da PM Antônio Tragino da Silva estava em patrulhamento dentro da viatura 91214 da Rota, a temida tropa de elite da PM de São Paulo. No total, cinco militares estavam dentro do veÃculo, que cruzava as ruas da zona norte. Pelo rádio, chega a informação de que perto dali policiais do 9º Batalhão perseguiam uma Peugeot Escapade prata, roubada no dia anterior em Osasco, com cinco suspeitos dentro. Instantes depois, também pelo rádio, os PMs ficam sabendo que na rua Manoel Correa o veÃculo se chocou contra outros carros parados na via, e que seus ocupantes saÃram disparando contra os policiais, que revidaram. Na troca de tiros, dois suspeitos foram feridos e posteriormente presos, dois se renderam e um fugiu. Era Edson. E agora a Rota estava em seu encalço.
Nas imediações da rua Antônio Pires, a equipe de Tragino avista um suspeito cuja descrição bate com a do fugitivo da Escapade. De acordo com o soldado, Edson recebe ordem para se render, mas responde com tiros e corre para um barranco. Tragino e o soldado Alessandro Bueno vão atrás, enquanto os outros policiais na viatura dão a volta no quarteirão para barrar sua passagem na parte baixa do morro. Quando o carro para na rua de trás, Edson já está morto – se passaram cerca de quatro minutos sem que ninguém, com exceção dos policiais que o perseguiam, tenha visto o que ocorreu no matagal. De acordo com eles, Dedê foi baleado ao resistir à voz de prisão e disparar contra a tropa. Esta foi a quinta ocorrência seguida de morte da qual Tragino participou (mais duas viriam nos anos seguintes, em 2010 e 2011), e a quarta de Bueno. Os policiais então colocam o corpo de Edson na viatura e o levam para o hospital sob o pretexto de socorrê-lo.
As investigações do ocorrido se estendem por alguns meses. A PM disse ter apreendido três armas com os jovens da Escapade: um revólver Taurus calibre 38, uma pistola Taurus 380, e um revólver Rossi 38, todos com numeração raspada, o que impede o rastreamento. As três, segundo depoimentos dos policiais, foram usadas pelos suspeitos para tentar alvejá-los. No entanto, os exames residuográficos feitos pela PolÃcia CientÃfica concluiram que não havia vestÃgio algum de disparos nas mãos de Edson ou dos outros jovens que estavam no carro. Soma-se a isso o fato de que não foi feita perÃcia alguma para determinar se as impressões digitais dos suspeitos estavam de fato nas armas, o que levanta a possibilidade de que elas possam ter sido plantadas no local para incriminar os suspeitos – o chamado “kit-velaâ€, usado por alguns PMs.
Renato Garcias Vieira, um dos sobreviventes, afirmou à Justiça que quando a viatura da polÃcia pediu para que eles encostassem o carro, Edson anunciou para os demais passageiros que o veÃculo era roubado, e disse estar armado: “Não para! Acelera!â€, teria gritado para o motorista Leônidas, que assustado acabou batendo poucos metros à frente. Todos os jovens que estavam no carro afirmaram à Justiça que a polÃcia “chegou atirandoâ€. “O Dedê saiu para se render com o revólver e foi ai que veio a rajada. Ele foi atingido na hora que saiu para se render. Em nenhum momento ele tinha atiradoâ€, disse Francinaldo.
Apesar do tiroteio ter ocorrido à luz do dia, as únicas testemunhas do processo são os policiais e o casal que teve o carro roubado por Edson e Daniel no dia anterior – que evidentemente não presenciaram a ocorrência que terminou com a morte do jovem. Nenhum PM foi ferido, e uma viatura foi alvo de disparo, mas a munição encontrada nela não foi periciada, não se sabe de que arma partiu. Os supostos tiros disparados contra os policiais nunca foram encontrados em paredes, viaturas, asfalto, etc. As únicas balas periciadas foram as retiradas do corpo de Edson e da Escapade, alvejada mais de 18 vezes pelos policiais.
Apesar das evidências de que algum abuso por parte da PM possa ter ocorrido – e culminado na morte de Edson –, e mesmo com a ausência de provas concretas de que os jovens dispararam contra a tropa, o promotor Norberto Joia, do Ministério Público de São Paulo, tomou uma decisão curiosa: apresentou denúncia contra todos os sobreviventes por tentativa de homicÃdio dos policiais, posse de arma e resistência à prisão. Os PMs que participaram da ação que terminou com um morto e dois feridos a bala são tratados, nos autos, como vÃtimas.
Na denúncia de 11 páginas assinada por Joia, na qual ele pede que os sobreviventes sejam processados, as condições suspeitas da morte de Edson são praticamente ignoradas. Ele cita o exame residuográfico que atestou a ausência de pólvora nas mãos dos jovens, mas ignora as conclusões do laudo: “Neste momento processual, impossÃvel afirmar que os acusados não efetuaram disparos de arma de fogoâ€. As contradições nos depoimentos dos policiais da Rota – que divergiram sobre o momento em que dispararam contra Edson – foram ignoradas. Ele conclui, dizendo que “ainda que não haja prova plena da materialidade criminosa; os demais elementos produzidos sugerem a ocorrência de crime contra a vidaâ€.
Em seu depoimento perante a Justiça, o sobrevivente Daniel Souza afirmou que “essas acusações [tentativa de homicÃdio dos PMs] são falsas. A única acusação verdadeira é a do roubo do carro. Eu e o comparsa Édson roubamos um carro na noite anteriorâ€.
Na denúncia de 11 páginas assinada por Joia, na qual ele pede que os sobreviventes da ocorrência sejam julgados pelo júri popular, as condições suspeitas da morte de Edson são praticamente ignoradas
Para o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, que move ação indenizatória contra o Estado pela morte de Edson em nome dos parentes da vÃtima, soma-se a essas evidências de irregularidades o laudo necroscópico do morto. De acordo com o documento, os tiros “três em regiões vitais, sendo todos descendentes, são compatÃveis com a possibilidade de terem atingido Edson quando este já estava caÃdo no solo em posição de inferioridade, após ter sido gravemente ferido por um primeiro disparoâ€. De acordo com a ação, assinada pela defensora pública Daniela Skromov, “tiros de cima para baixo, ou seja, em trajetória descendente, são tÃpicos de execução sumária, segundo especialistas, tal como aponta Philip Alston, Relator Especial de Execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias da ONUâ€.
Procurado pela reportagem, o promotor Norberto Joia, responsável pelo caso de Édson e de seus amigos, afirma que o laudo residuográfico – que poderia inocentar os suspeitos – é “de baixa confiabilidade técnica, e não pode ser visto de forma isolada”. De acordo com ele, “frequentemente ele aponta falsos positivos ou negativos, como no caso de um frentista, que por lidar com combustÃveis fica com resÃduo de chumbo nas mãos mesmo sem nunca ter tocado em uma arma de fogo”. Quanto ao fato de não ter solicitado exame de impressões digitais nas armas supostamente apreendidas pela PM com os jovens, Joia diz que “normalmente não se tem campo [possibilidade] para a pesquisa, uma vez que a arma é manuseada desde o princÃpioâ€. Segundo o promotor, após uma situação de confronto, “o PM vai desarmar o suspeito, e nessa hora ele não vai colocar uma luva ou pegar a arma com uma pinça para evitar contaminar a evidênciaâ€.
Joia reafirma o compromisso de “chegar o mais próximo da verdadeâ€, mas ressalta que nos casos de resistência seguida de morte envolvendo PMs “é difÃcil convencer as pessoas a contar o que viramâ€. “É uma questão tormentosaâ€, diz. Ele alega também que o MP não foi buscar eventuais testemunhas devido “à exiguidade do prazoâ€, que impediria que isso fosse feito. “Com os elementos que tÃnhamos, a versão dada pelos policiais era a mais próxima da realidade, e os jurados assim reconheceramâ€, afirma, fazendo a ressalva de que caso surjam novos elementos no caso da morte de Edson ele pode ser reaberto.
O promotor disse não ter sido informado pelos laudos que dois dos disparos atingiram as cabeças das tatuagens de Edson. “Não tenho nenhuma foto disso. Posso imaginar que a famÃlia viu na hora de reconhecer o corpoâ€, diz. Joia disse que mantêm a isenção neste e em todos os casos nos quais atua. “Da mesma forma que quando ouço alguém que é indiciado por um crime eu ouço sem preconceito, eu ouço um policial sem preconceito. Não tenho ideia preconcebidaâ€. Ele menciona também o fato de que Edson e Daniel haviam roubado um carro na noite anterior: “Você precisa fazer o cotejo das provas. Dois deles teriam roubado um carro…â€. Sobre a trajetória descendente dos disparos que mataram Edson, ele afirma que isso nem sempre é um indicativo de execução, já que dependendo da posição em que o suspeito está os tiros contra ele penetram no corpo de cima para baixo.
Existe uma história que Daniela Skromov já ouviu centenas de vezes. O mesmo começo, meio, fim e os mesmos personagens, as mesmas vÃtimas. São os autos de resistência, nome dado à s mortes provocadas por policiais em serviço. “Chegamos, fomos recebidos a tiros e obrigados a revidar. Atiramos, o suspeito foi a óbito, nenhum policial foi ferido e nenhuma viatura atingidaâ€, relembra a coordenadora do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo. Acostumada a ajudar as famÃlias das vÃtimas de abusos da polÃcia a buscar reparação do Estado, Daniela questiona o roteiro contado pelos PMs para justificar as mortes praticadas.
“Uma realidade tão complexa comportaria a mesma narrativa sempre? Nos outros crimes de homicÃdio existem mil dinâmicas: arranhão, crime passional, jurou de morte…â€, afirma a defensora. “Essa é sempre uma narrativa faroeste padrão que desafia a inteligênciaâ€. De acordo com ela, se os bandidos atiraram primeiro nesses casos, era natural que fossem bem sucedidos na maioria das vezes, já que têm o elemento surpresa a seu favor. “Mas não é o que ocorre. Ou a bandidagem é ruim de pontaria, de estratégia ou então a narrativa está erradaâ€, diz. “Talvez todas as opções estejam corretasâ€.
Pergunta. Por que é aceitável socialmente que o morador de periferia tenha um tratamento injusto nas mãos do Estado?
Resposta. Tem uma coisa que é tÃpica de democracias de baixa densidade, sem consolidação, comum em paÃses muito desiguais e com forte herança autoritária, que é o caso do Brasil. Existe uma modulação da percepção de ilegalidade. Não é a violação em si que causa espanto à sociedade, é a qualidade da vÃtima. É mais ou menos assim: conforme a hierarquia social da vÃtima me causa mais ou menos espanto a violação do direito dela. Ou melhor, identifico como violação de direito na medida em que a pessoa tem uma posição social mais alta. Se ela tem uma posição social mais baixa, não identifico como uma violação de direito.
P. Como isso se reflete no Judiciário?
R. Essa modulação está presente na leitura dos aplicadores da lei e do sistema de Justiça como um todo: começa com a polÃcia e acaba com o Judiciário. É como se vários tipos de óculos fossem utilizados para enxergar e detectar se aquilo é uma violação de direitos ou não. Tome como exemplo crimes sexuais. Neles basta a palavra da vitima para condenar o acusado. Isso é muito comum. Costuma se dizer que este tipo de crime acontece na calada, por isso fica difÃcil ter testemunha. Logo basta a palavra da vÃtima, mesmo que seja criança, para ser aceita pelas autoridades. Agora veja como é em um caso de tortura de um suspeito, ou de alguém que não tenha a ficha limpa: pode existir um laudo dizendo que ele sofreu lesão, e a palavra dele afirmando que sofreu lesão. Aà o argumento do juiz é: ‘a palavra da vÃtima restou isolada nos autos’. São dois casos em que a palavra da vÃtima é encarada de forma diversa. Em um dos casos a palavra serve para condenar, e no outro ela não tem força suficiente nem para dar inÃcio a um processo criminal por tortura. Porque não só a vÃtima é uma pessoa considerada exterminável, alguém cuja palavra vale menos, como os acusados são agentes estatais.
P. Qual a relação que o Ministério Público tem com os suspeitos apresentados pela PolÃcia?
R. A cadeia é cheia de gente azarada e fisicamente débil. Porque eu digo isso: todo processo que gera uma cadeia é geralmente uma prisão em flagrante, que ocorre na rua ou no barraco. É um vulnerável que é capturado, seja porque tropeçou, não tem amigos, está fraco fisicamente, ou porque mora em um barraco onde ninguém pede licença para entrar, é passÃvel de invasão. É deste tipo de gente que a cadeia está cheia. Quem coloca elas lá é a policia, e quem as mantêm lá é o MP e o Judiciário. O MP vê nessas pessoas a grande criminalidade, e tem a necessidade de isolá-las do convÃvio social. Quando na verdade, na maior parte, essas pessoas fazem integram uma criminalidade banal, seja tráfico de pouca quantidade de drogas, sejam crimes sem violência. O MP em São Paulo tem como clientela indesejada – mas que ele detesta e vê como isolável – essa parcela da população, capturada pela polÃcia e pobre. E no final ele acaba agindo como o braço jurÃdico da PM. E o público que lota as prisões é em geral esse mesmo público que é morto pela polÃcia. E aÃ, me parece que o MP não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele próprio estabelece uma cruzada.
Há uma mistura de apoio ideológico valorativo à cultura da matança, com o medo, com a cultura do compadrio, com uma cultura burocrática
P. O promotor Rogério Zaggalo, que em 2013 disse que se a Tropa de Choque matasse manifestantes ele arquivaria o processo, não é exceção?
R. Não. Com a diferença que ele tem menos freios inibitórios. Se bem que agora ele tem moderado suas declarações, talvez por ter sido punido. Mas ele continua sendo um sÃmbolo de um órgão que não cumpre com seu papel fundamental, que seria realizar um controle externo sério, independente e imparcial da atividade da polÃcia. O que implicaria em assumir investigações.
P. Além de pedir o arquivamento do processo, de que outras maneiras um promotor colabora para inocentar policiais que matam?
R. Às vezes é normal denunciarem policiais para dar uma satisfação social, quando é um caso de muita pressão, e depois pedem a soltura ou fazem uma acusação de baixa qualidade em termos de veemência. É importante lembrar que o tribunal do júri é um pouco como um teatro. Já vi um promotor, durante os júris dos highlanders, [apelido dado a um grupo de extermÃnio da PM que agia na zona sul de São Paulo], que cortavam as mãos e cabeça da vÃtima, o promotor fazia a acusação lendo ‘bláblábláblá’, e os jurados dormindo. E aà chega o advogado de defesa e faz um espetáculo. No júri, o teatro é meio caminho andado, e à s vezes é como se formalmente o promotor trabalhasse na acusação, mas materialmente trabalhasse na absolvição.
P. Os jurados que inocentam policiais mesmo com provas contundentes contra a tropa, o fazem por ideologia?
R. Acho que a resposta transita entre um apoio social, na crença de que essas pessoas [supostos bandidos] devem morrer, porque não valem nada, e o medo. Acho que esses advogados de defesa ganham os casos por instigar algo que é a sÃntese desses dois discursos. Eles falam para o júri: ‘E depois, quem vai salvar vocês? Quando o bandido chegar vocês vão chamar quem? O Batman?’. É um discurso alterado, inflamado em tom de voz. Os advogados despertam um medo profundo nas pessoas, o que é natural com qualquer um que lida com a polÃcia quando a polÃcia está no banco dos réus. JuÃzes, promotores, defensores… É normal lidar com esse medo, é humano. Você não está falando apenas com uma pessoa armada, mas sim com cem mil pessoas armadas. Existe um espÃrito de corpo fortÃssimo na PolÃcia.
Me parece que o MP não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele próprio estabelece uma cruzada
P. Os promotores têm medo de peitar a policia?
R. Existem promotores e promotores. Tudo que dá errado é um caldeirão de variáveis, isso é um fenômeno complexo. Existe um apoio ideológico de alguns ao extermÃnio de indesejáveis. O Zagallo externou isso. Ele é um sÃmbolo de algo maior. Há uma mistura de apoio ideológico valorativo à cultura da matança, com o medo, com a cultura do compadrio, com uma cultura burocrática, que é muito comum, de fazer o trabalho nos estritos termos que você dá o mÃnimo de satisfação social, mas você não toma aquilo para si como algo fundamental. Enfim, tÃpica cultura do serviço público no pior sentido da palavra.
P. Você falou na cultura do compadrio…
R. Sim, ela existe no sistema de Justiça. Policiais militares fazem a escolta de juÃzes e promotores. Os promotores precisam da investigação da policia para realizar o seu trabalho, porque ao contrário do que os cidadãos pensam, os promotores não investigam. Eles têm poder para isso, mas não investigam em São Paulo. Em oito anos nunca vi uma investigação autônoma do MP. RarÃssimas vezes o juiz pede outro promotor quando discorda do pedido de arquivamento feito pelo MP. JuÃzes, promotores e defensores convivem diariamente entre si. Já ouvi de juÃzes: ‘nossa, tive uma briga com aquele promotor, agora não posso me indispor com ele, convivo todo dia com ele’. E pragmaticamente falando, isso acontece. Assim como já ouvi defensor falar: ‘Sei que o que o juiz faz é injusto, mas se eu levar a ferro e fogo todas as decisões dele, ele desconta nos meus réus, ele desconta em outros casos’. É algo pernicioso do hábito, da rotina.
P. As investigações são mal feitas?
A maioria dos condenados por tráfico são condenados tendo como base apenas a palavra dos policiais
R. Muito mal feitas, com muitas falhas. Não temos uma polÃcia investigativa estruturada, e isso não vale só para homicÃdios cometidos por policiais. Eu garanto que a imensa maioria dos presos é em flagrante, porque não existe investigação. Na maior parte dos casos que temos aqui, não tentaram nem ouvir testemunhas oculares dos crimes. Sabe aquela diligência de ir ao local e ouvir as pessoas? A imensa maioria dos casos é arquivado sem essa diligência. A maior parte é arquivado sem que se puxe a ficha do PM, sem que se veja em quantos casos com mortes ele já se envolveu. Estamos em uma média de 800 casos de auto de resistência por ano, e a maior parte arquivada sem a devida investigação. A PolÃcia Civil teria que entregar um produto mÃnimo, e o promotor, vendo que foi insatisfatório, teria que mandar de volta. Na maioria dos casos a Civil não faz e o MP não cobra nem investiga.
P. Qual o valor da palavra de um policial em um caso de tráfico ou em um auto de resistência?
R. Como não há investigação, a maioria das prisões são em flagrante, e a maioria dos condenados por tráfico são condenados tendo como base apenas a palavra dos policiais. Isso dá um poder de carta branca para os PMs, os juÃzes talvez não tenham a dimensão disso. Os policiais sabem que chegando lá no processo penal, eles têm o poder acima da lei, porque a palavra deles vale muito mais e vale por si. A maior parte dos autos de resistência é arquivado apenas com a palavra dos policiais como testemunhas, e pasmem, dos policiais envolvidos. Em mais de 90% dos casos isso acontece: o promotor pede arquivamento e o juiz aceita.
P. Como uma investigação precária prejudica o esclarecimento de um suposto auto de resistência?
R. Na maioria dos autos de resistência se diz que os bandidos atiraram primeiro. Não é nem sequer dito nem periciado onde esses tiros foram parar. É um nÃvel baixo, inaceitável do ponto de vista objetivo, seguindo o Código Penal. Em alguns casos os policiais plantam arma na mão do morto, para embasar a versão de que houve confronto. Uma perÃcia datiloscópica [que verifica impressões digitais], te desafio a encontrar um processo que tem isso. Se fizesse isso nas supostas armas encontradas com bandidos, iria encontrar digitais de policiais. Não se preserva cena do crime… É algo que é arquivado basicamente com base no discurso dos policiais e na desconstrução das vÃtimas enquanto pessoas. Não existe objetividade e racionalidade, como se esperaria em uma investigação.