Em agosto de 2015, o Ministério da Justiça regulamentou o funcionamento das chamadas comunidades terapêuticas (CTs) como parte do Sistema Nacional de PolÃticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). No papel, essas entidades oferecem tratamento, de modo voluntário, aos efeitos nocivos do vÃcio em álcool e drogas e serviriam para ajudar as pessoas a reconstruir suas vidas. Na prática, há muitas denúncias de que as comunidades terapêuticas funcionam como manicômios disfarçados.
Uma fiscalização do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRPSP) realizada em 43 comunidades terapêuticas e clÃnicas para usuários de drogas no estado entre 2013 e 2015 mostrou que as crÃticas são, ao menos parte, baseadas em fatos.
Publicados em maio em forma de um dossiê, os resultados trazem à tona graves violações de direitos humanos nas CTs, que vão desde trabalho forçado e participação compulsiva em cultos religiosos a,medicalização excessiva, homofobia, transfobia e estupros. Há também relatos de mortes – quatro nas instituições inspecionadas durante as internações, sendo dois suicÃdios.
A equipe do Conselho afirma no dossiê que, apesar do mapeamento realizado, outras violações podem não ter sido narradas pelos usuários e psicólogos, nem foram passÃveis de observação, porque muitos entrevistados se sentiram constrangidos e amedrontados de revelar maus tratos.
Em quase todos os relatos coletados surgem denúncias de monitoramento de correspondências, de visitas e de telefonemas, impedindo denúncias de maus tratos ou pedidos para deixar o tratamento.
CartaCapital procurou integrantes do CRPSP, mas a entidade preferiu não se pronunciar, pois responde a processos abertos após a publicação do dossiê pelos donos e responsáveis pelas comunidades terapêuticas denunciadas
SemÃramis Vedovatto, coordenadora da Comissão de Saúde do Conselho Federal de Psicologia e representante da Autarquia no Conselho Nacional de Saúde, contextualiza o surgimento das Comunidades Terapêuticas: “A primeira foi instalada em Goiás, no ano de 1968, já imersa em uma lógica que prevalece até hoje, em que a drogadição é vista como um problema individual e moral, e não da sociedade, com a ideia proibicionista, punitiva e eugenista, de que ‘precisa higienizar’â€.
A maioria dessas instituições de atendimento a usuários de álcool e drogas funciona em um ambiente isolado da sociedade, normalmente em chácaras, e recebem internações de usuários que decidiram parar de consumir drogas. O tratamento seria focado em um fortalecimento fÃsico, psÃquico e espiritual, na libertação pelo trabalho e na terapia coletiva, com orientação técnica e profissional, por um tempo que varia de 3 a 11 meses, e o objetivo final seria a cura.
Vedovatto contraria toda essa descrição, começando pela internação voluntária: “algumas CTs inclusive mantêm uma equipe de remoção, que põe camisa de força, dá uma injeção e a pessoa acorda três dias depois já na comunidade. E outras vezes a famÃlia obriga, faz chantagem e ameaça. Também há quem aceite a internação para fugir de dÃvidas com traficantesâ€.
Além disso, algumas CTs mudam os internos de estado, causando dificuldades de adaptação, e os profissionais que os acompanham nem sempre são qualificados.
A legislação estabelece que deve haver um técnico de nÃvel médio ou superior, mas não diz que técnico é esse, podendo ser de qualquer curso. Algumas comunidades também mantêm vÃnculos religiosos, principalmente de cunho católico e evangélico, e obrigam os internos a participar de cultos e outros rituais.
Para Vedovatto, um dos maiores problemas das comunidades está no fato de serem projetadas como um mundo falso em que não há um trabalho de reabilitação. “As CT são como um spa. Você até emagrece, mas não aprende a manter o peso quando voltar para a vida normal. O processo de reestabelecimento acontece em um mundo artificial, onde ninguém usa droga e todo mundo reza, mas a vida real não é assim, e alguns só conseguem viver em abstinência nesse modelo, tanto é que tem gente que passa a vida inteira indo e vindo de CTâ€.
A orientação da psicóloga é para que se tenha consciência de que nem todo uso de droga necessita de internação. “Um baseado na mochila do filho não significa que ele é viciadoâ€.
Ela explica que a internação é recomendada quando a pessoa não consegue mais cuidar de si ou coloca a vida em risco. “É preciso também uma avaliação médica, e a maioria das CTs não fazem isso, como a rede Caps faz, eles não têm um critério e uma atenção para o tipo de tratamento que cada um precisa, além de não ter um plano pós-internaçãoâ€.
A fiscalização das CTs é de responsabilidade do municÃpio, explica Vedovatto. Ocorre que muitas delas não permitem interação e, sem uma legislação apropriada, os municÃpios nem sempre conseguem fazer a fiscalização como deveriam a ponto de descobrir maus tratos.
“Precisamos tirar as comunidades do campo das práticas sociais invisÃveis, porque acessar esses lugares não é uma tarefa simples. As denúncias só costumam surgir quando algum interno sai ou em casos de mortes estranhas, como ocorreu em São Paulo, Goiás e Minas Geraisâ€, afirma.
A especialista reforça que o Conselho Federal de Psicologia é totalmente contrário ao financiamento de comunidades terapêuticas e ressalta a necessidade de debate. “Enquanto estivermos nesse sistema proibicionista e punitivo, não vamos avançar com esse problema, que é multifatorial e de toda a sociedadeâ€, diz.
Estupros, salmo 119 e trabalhos forçados, até para polÃticos
O dossiê do CRPSP traz diversos exemplos de violações cometidos dentro das comunidades terapêuticas visitadas. Em Artur Nogueira, a Comunidade Terapêutica Sunshine, abrigava, em 2013, 11 adolescentes, 17 mulheres e aproximadamente 60 homens. Lá foram colhidos relatos de violência sexual contra internas, o que ocorria após serem fortemente medicadas.
O Conselho Regional também recebeu a informação sobre uma ocasião em que a parede do quarto de contenção teve de ser pintada para esconder manchas de sangue decorrentes de violência fÃsica contra as pessoas internadas, que chegavam a ficar até 20 dias sem contato externo. Trabalho forçado e escrever o Salmo 119 de BÃblia estavam entre as punições.
Na Nova Vida ClÃnica Médica, em Piracicaba, que tinha convênio com prefeituras, o relato de 2013 colhido pela equipe do CRPSP conta que um interno foi enforcado por um funcionário ao tentar fugir e ficou preso durante dez dias em seu quarto. “…te tratam como bicho..â€, diz no relatório.
Em Cajamar, o Centro Decisão Voltar a Viver, entidade privada que hoje não existe mais, recebeu a visita da equipe em 2013 na unidade masculina e na feminina. As informações coletadas mostram que internos ficavam trancados em quartos de contenção por quase um dia inteiro e, em alguns casos, foram “amarrados igual Jesusâ€. Foram relatados casos de punição coletiva e agressões fÃsicas que levavam os internos a desmaiar.
Se a pessoa internada se recusasse a ingerir algum medicamento, era amarrada e forçada a tomá-lo, além de ser punida e trancada no quarto de contenção. Medicamentos eram pagos pela famÃlia, mesmo os fornecidos pelo SUS. Houve relatos de que houve falecimento por excesso de medicamento e de agressão fÃsica durante resgates: ter pés e braços amarrados para serem colocados no carro, no banco traseiro ou no porta-malas, e já houve situação de apanhar durante horas dentro do veÃculo.
Em Limeira, 2014, relatos da Comunidade Terapêutica Passos para Liberdade da unidade feminina, que tem convênio com prefeituras, apontavam para ausência de notificação ao Ministério Público sobre internações involuntárias e que cinco das seis adolescentes internadas não estavam matriculadas na rede de ensino.
Em um episódio descrito, uma das mulheres foi obrigada a escrever cinco mil vezes a frase “não devo agredir minha companheira†após uma briga no local. Um conjunto de medicação era usado quando havia agitação, brigas, ou para resgates.
Houve informação de que as mulheres internadas fizeram um trabalho para um candidato a deputado estadual, no qual tinham que colocar folhetos publicitários em envelopes, durante vários dias. O trabalho não foi remunerado.
Na Veredas Cheiro Da Terra, em Piedade, também privada, no ano de 2014 havia 62 internos homens entre 16 e 60 anos (1 interno de 16 anos). Internos relataram que a comunidade seguia a doutrina da Congregação Cristã do Brasil, sendo obrigados a cantar seus hinos e orações. Também descreveram que realizavam três horas de atividades de limpeza no local e que a manutenção da clÃnica era feita por eles, inclusive a pintura das paredes.
Lá, como relataram, quando havia tentativa de fuga, o residente ficava contido em um cômodo todo pintado de preto, com cama de concreto, só recebendo o colchonete e um cobertor entre 23h e 6h da manhã. Muitas vezes eram obrigados a ficar nesse espaço apenas com a roupa Ãntima, e sentiam frio porque a janela era um buraco com grade vazada.
Outro lado
A redação de CartaCapital tentou contato com todas as comunidades citadas. Até a publicação desta reportagem, somente a Passos para a Liberdade respondeu:
A princÃpio cabe no presente enfatizar que a correta identificação da Instituição não é Comunidade Terapêutica Passos para Liberdade [como designado no Dossiê], e sim, ClÃnica Terapêutica de Serviços Médicos Passos para Liberdade – LTDA, havendo tanto esta uma única unidade de atendimento a que foca o público feminino.
Quanto às informações relatadas sobre a prescrição e acompanhamento de ingestão de medicamentos, esclarecemos que contamos de médico e enfermeiro para administração destes desde a abertura da instituição, e que toda medicação administrada aos pacientes, é receitada pelo profissional médico e prescrita em prontuário, não havendo qualquer irregularidade diante tal tópico.
Destarte que a ClÃnica conta com corpo clÃnico completo em suas dependências o que enseja em uma psicóloga, um enfermeiro, uma psiquiatra, uma nutricionista, um assistente social, um professor de educação fÃsica, um professor de português e um terapeuta ocupacional, dispondo ainda de um professor de português que acompanha as adolescentes, durante o perÃodo de internação, desenvolvendo com as mesmas atividades enviadas pelas escolas da rede regular de ensino, visando assim atendimento eficiente e de qualidade, usando métodos clÃnicos aptos procurando atingir resultado satisfatório juntamente com o bem estar das mesmas, dispondo inclusive de várias atividades neste cronograma, sendo sua maioria de livre participação, sendo que nenhuma paciente de nossa instituição realizar atividades que possam ser caracterizadas como obrigatório ou mesmo comparado a qualquer tarefa que seja confundida como trabalho, por final deste acompanhamento as respectivas pacientes podem realizar ligações para seus familiares semanalmente, visando a manutenção do vÃnculo familiar e a progressão do tratamento.
Já ao que concerne as supostas violações de direitos humanos tomadas ao conhecimento por denúncias, serve a presente para refutar qualquer menção quanto a veracidade de tais informações, pois a tÃtulo de informação e esclarecimento todas as internações involuntárias são comunicadas ao Ministério Público, o que em ocasião equivocada fora comunicado de forma diversa em que a psicóloga encarregada haveria relatado contrário, por não se tratar de departamento e informação a que estar venha conter, onde também ocorreu a má interpretação por parte da mesma com relação ao questionamento atribuÃdo em ocasião, ficando assim por melhor esclarecimento que todas as internações involuntárias são sim comunicadas ao Ministério Público local, e procedidas de forma digna e respeitosa, sendo categoricamente todos os casos analisados e tratados diante suas particularidades.
Por último informa que a presente instituição nos últimos dois anos passou por diversas fiscalizações e que todas as adequações exigidas atendidas prontamente, buscando sempre a melhoria do atendimento prestado aos pacientes, a qual ratifica por meio da presente que tais denúncias não condizem com a verdade e realidade do serviço prestado, cujo mesmo reflete de significante sucesso.