O belo prédio do Solar da Viscondessa foi palco para a quarta edição do Prosa, uma série de debates públicos realizados por um coletivo homônimo de Taubaté, no interior de São Paulo. Sob o tema “Antiproibicionismo e a Guerra às Drogas”, a discussão foi quente e permeou temas como política de drogas, encarceramento, crianças que trabalham no tráfico, redução de danos e mudança de mentalidade.
O Coletivo DAR foi um dos convidados da roda de conversa, que rolou à céu aberto e também teve a presença da psicóloga Claudia Fabiana de Jesus, professora da Universidade de Taubaté (Unitau) com experiência em tratamento e prevenção de dependência de drogas no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) da cidade.
Após a apresentação de uma banda local – a DesReal – um café com pão de queijo e bolos foi a senha para matar a larica e começar a conversa. Enquanto o sol caía e revoadas de pássaros faziam daquele anoitecer um momento raro, a história das drogas e sua proibição era dividida com um público de umas 50 pessoas.
Foi seguidamente desconstruída a política de drogas que faz do Estado brasileiro um dos que mais mata e mais prende seus cidadãos. Desde a aprovação da Lei das Drogas, dez anos atrás, a população carcerária saltou 111%, para mais de 620 mil presos. Em 2005, 11% dessas pessoas estavam incriminadas por tráfico de drogas; hoje são 27%. Se forem consideradas apenas mulheres, fodeu: 64% das presas no Brasil respondem por tráfico.
O alvo preferido desse aparato de repressão cruel e mortífero não foi esquecido: o perfil geral da população carcerária no Brasil é de maioria negra (62%) e de baixa escolaridade (oito em cada dez estudaram no máximo até o Fundamental). Quem tá livre não tem muito o que comemorar, já que essa mesma população está diariamente na mira da polícia. No estado de SP, o índice de negros mortos em decorrência de ações policiais é quase três vezes o número registrado para a população branca – 97% são homens e 77% tem de 15 a 29 anos. A taxa de prisões em flagrante de corpos negros também é duas vezes e meia a que acomete os brancos.
A realidade local de Taubaté também foi discutida. Afinal, a cidade viu ao menos 10 jovens que tinham entre 16 e 17 anos morrerem assassinados entre 2011 e 2013 (número devidamente contestado por uma professora que assistia o debate: “Só nesse último mês, dois alunos meus foram mortos”). A maioria das mortes tinham ligação com o tráfico.
Se levarmos em conta a população masculina taubateana que tem entre 15 e 19 anos (11.578), chegamos ao terrível número de 100 homicídios a cada 100 mil habitantes – ou um a cada mil, pra ter uma ideia de que a carnificina promovida pelos agentes públicos de segurança não é exclusiva das grandes metrópoles. A taxa de homicídios no Brasil está em torno de 30 assassinatos a cada 100 mil habitantes.
Foi ficando claro que a proibição das drogas foi talhada por décadas como justificativa para o Estado controlar territórios e populações indesejadas para os senhores de cima.
Claudia trouxe para o debate toda a sua experiência não só no mundo acadêmico, mas também no trabalho que exerce no CAPS-AD de Taubaté, onde se especializou em redução de danos. A psicóloga falou sobre as dificuldades de se trabalhar sob uma perspectiva antiproibicionista em um equipamento público que prevê o tratamento de consumo problemático, dominado por uma prática conservadora e punitivista.
Uma pesquisa realizada em 2015 pelo Núcleo de Pesquisas Econômico-Sociais (NUPES), vinculado à Unitau, realizada em casa 100 casas de Taubaté, indicou que em 47 há consumo de drogas lícitas ou ilícitas. Um número alto de entrevistados (74%) lembrou que os usuários não recebem nenhum tipo de ajuda para lidar com as drogas, e um número ainda maior (85%) afirmou que não há ações de prevenção ao consumo problemático em seus bairros.
Mais uma estatística que mostra não apenas a crueldade do Estado, mas sua total estupidez. Como ignorar uma realidade em que as drogas já estão espalhadas, sendo fumadas e cheiradas e injetadas e dropadas, não disseminar a informação necessária e ainda desejar erradicar o seu uso? A gente que se droga, eles que tão doidos.
O papo foi tão reto que as perguntas rolaram soltas e o debate durou quase três horas. Teve tempo pra tudo: dados contestados, experiências internacionais, perguntas difíceis, teve até usuária que pegou o microfone para sair do armário. Foi citado que a maioria da população brasileira (70%) vive em pequenas e médias cidades (com até 500 mil habitantes), ou seja: a mudança de mentalidade referente às drogas deve extrapolar os grandes centros urbanos e também se espalhar pelo interior do país.