por Gabriela Moncau (Coletivo DAR)
Zilda Maria de Paula, empregada doméstica de 63 anos e moradora da periferia de Osasco, viu na TV a notícia que mostrou o assassinato de um policial militar num posto de gasolina perto da sua casa. “Nossa Fernando, que covardia, né?”, comentou com seu único filho. Fernando, pintor de 34 anos, ganhou o apelido de Abuse por causa dos seus dois metros de altura que lembravam o bailarino Sebastian das propagandas da C&A. “É mãe, o negócio foi feio mesmo”. Dez dias depois, numa quinta-feira 13, Abuse tomava uma cerveja num bar quando foi uma das vítimas da maior chacina da história recente do estado de São Paulo: na mesma noite 15 mortos em Osasco e 3 em Barueri. Desse agosto de 2015 para cá, apesar de ninguém ter sido responsabilizado e do bondoso governador Alckmin ter, midiaticamente, oferecido prêmio para quem desse informações sobre os que puxaram os gatilhos, não tinha ninguém que andasse por aquelas ruas que não soubesse que a retaliação tinha sido feita pela força armada do Estado. “A morte dele eu estou aceitando. Mas não aceito como aconteceu”, Zilda falou aos jornais.
Valquíria Oliveira* tem 20 anos e vive na região da Luz, centro paulistano. Fugiu de casa ainda criança – era abusada por seu padrasto – e fez das ruas de São Paulo sua morada. Usuária de crack e extremamente articulada, Valquíria contou que passou por “muitos constrangimentos”: “Vi várias pessoas sendo humilhadas por sua cor ou pelo uso de drogas. Vi várias pessoas sendo presas por serem negras. Hoje o que me deixa com tranquilidade é saber que para mim ainda tem mudança, e ao mesmo tempo o que me deixa triste é saber que existem histórias piores do que a minha”. Dentro do sistema penitenciário Valquíria pariu um dos seus filhos. Deu à luz algemada.
Além de serem ambas mulheres, negras, pobres e mães, Zilda e Valquíria têm em comum o fato de suas histórias serem diretamente atravessadas pela guerra do Estado contra os pobres, que na contemporaneidade veste a roupa de guerra às drogas.
Dina Alves nasceu em Ipiaú, na Bahia. “Mas foi em São Paulo, como empregada doméstica nas mansões do jardim Virginia e como balconista no Pão de Açúcar, que descobri minha cor provinda da senzala – a cor Preta”, relata em entrevista para Iniciativa Negra. Atriz, ativista do Comitê contra o Genocídio da População Negra e do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas – Adelinas, Dina fala sobre sua tese de mestrado: Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe da punição em uma prisão paulistana. Das dez mulheres cumprindo pena na penitenciária de Sant”Ana entrevistadas na sua pesquisa, todas eram negras, todas estavam privadas de liberdade antes de serem julgadas, todas moradoras da periferia, todas mães e todas com ensino fundamental incompleto. Apesar de terem sido pegas com uma quantidade ínfima de drogas, na sentença são classificadas como “traficantes perigosas com personalidades voltadas para o crime”.
“Me lembro dos encontros com uma das entrevistadas, que foi condenada a 8 anos por tráfico de drogas e a sua fala na frente do juiz, na ocasião da audiência: “se eu fosse traficante não estaria banguela””, descreve Dina Alves: “Ela é uma mulher negra, sem dentes, homossexual, carroceira, em situação de rua, usuária de drogas e foi presa com 18 pedras de crack”.
Pelo fim das grades
As cerca de 30 mil pessoas que compuseram a Marcha da Maconha de São Paulo de 2016, com o eixo “Fogo na bomba e paz na quebrada”, já tinham feito uma das maiores ações diretas de desobediência civil em massa do ano com o maconhaço e estavam na rua Augusta quando passaram pela faixa do Bloco Feminista que caía da janela de um prédio. “Pelo fim das grades”.
Nossa luta é por liberdade, pelo direito de exercer plenamente a autonomia sobre o que fazemos ou deixamos de fazer com nosso próprio corpo. E assim, nossa luta é também pelo fim das muitas formas de prisões a que somos submetidas, enquanto mulheres, todos os dias.
Vivemos a prisão cultural que nos nega o direito ao prazer. Prazer no sexo, no consumo de drogas, na escolha dxs nossxs parceirxs sexuais, no andar pela rua com a roupa que quisermos a qualquer hora, no autoconhecimento do nosso próprio corpo e do prazer que ele pode nos dar (de acordo com o Projeto de Sexualidade da USP, cerca de 50% das mulheres brasileiras não atingem o orgasmo).
Em tempos em que o chocante caso do estupro coletivo da garota de 16 anos no Rio de Janeiro traz à tona comentários capazes, de alguma forma (não me pergunte como), de culpabilizar a vítima, vale lembrar da música cantada pela Ala Feminista da Marcha da Maconha RJ: “Eu só quero é ser feliz / chapar tranquilamente com a droga que escolhi / e poder me assegurar / que careta ou doidona ninguém vai me assediar”. Escuta-se: “Ah, ela estava drogada”, “Ela fazia sexo grupal”, “Ela foi no funk”… A lógica da guerra às drogas que produz estereótipos do criminoso e faz do traficante (ou do “suspeito”) uma vida matável é a mesma lógica que faz da mulher que altera sua consciência um corpo assediável.
Vivemos a prisão das visões morais que sustentam as leis proibicionistas do aborto e das drogas (redigidas e implementadas por homens brancos, diga-se de passagem). Essas duas proibições, além de serem o Estado se metendo na decisão das pessoas sobre seus corpos, não impedem essas condutas de acontecerem. Cerca de 1 milhão de abortos são praticados por ano no Brasil e 250 mil internações são feitas em decorrência de abortos inseguros. No mundo, estima-se que 166 milhões de pessoas fumam maconha (o número deve ser maior, já que nem todo mundo tem coragem de responder a verdade às pesquisas). Não é todo mundo que sofre na pele os piores efeitos das proibições. O dinheiro e a cor da pele, claro, definem quem sofre mais ou menos com mortes e prisões.
(Será que algum dia a intenção tenha sido mesmo a de extinguir da face da terra a prática do aborto ou a existência das plantas e drogas ilícitas? Seriam tão ingênuos? Ou seriam tão espertos? A ponto de disseminar mundo afora a política de uma guerra invencível e portanto sem fim, que finge ser contra substâncias e condutas e não contra pessoas, uma guerra aceita socialmente por se apoiar, dia após dia, em narrativas de pânico, de moralidade e de uma suposta defesa da saúde? Existe hoje algum pretexto mais perfeito para o Estado, por exemplo, ocupar militarmente um território?)
Vivemos a prisão que tenta nos reduzir, mesmo dentro do nosso próprio movimento antiproibicionista, a uma voz supostamente menos legítima ou menos levada a sério, a espaços de menos protagonismo ou até mesmo a objetos de desejo (como algo a ser consumido prazerosamente como a planta que se quer legalizar).
Vivemos a prisão do papel social imposto às mulheres. O tal do “bela, recatada e do lar”, ou da dicotomia da figura de santa e puta. Em uma apresentação de stand-up do comediante estadunidense Chris Rock sobre a política de drogas ele lembra: “Eles não querem que você use as suas drogas, eles querem que você use as drogas deles“. No caso das mulheres, isso é evidente. Se ainda hoje, por exemplo, uma mulher que chapa numa festa é vista como disponível ou uma mulher que é mãe e usa alguma substância ilícita é vista como desviante do seu papel “puro” de cuidadora; por outro lado, são muito estimuladas as drogas farmacêuticas para emagrecer, para se acalmar e não ser a “louca” ou a “histérica”, para dormir, para não deprimir, para rejuvenescer, entre tantas outras.
Vivemos a prisão das prisões. Nada mais concreto que o controle dos corpos do que o próprio encarceramento. Um sequestro feito pelo Estado que mantém as pessoas (pretas e pobres, uma vez mais) confinadas dentro de uma máquina de gerar sofrimentos. Faço um salve, inclusive, a todos os movimentos antissistêmicos para refletirmos juntos a respeito de qualquer demanda por cadeia – ainda que contra pessoas responsáveis por atrocidades – ser, em última instância, uma demanda por tortura.
De acordo com o Infopen Mulheres de 2014, a população carcerária feminina cresceu 567% entre 2000 e 2014. No mesmo período o número de presos de modo geral aumentou 119%. Das 37.380 mulheres atrás das grades, 68% delas é acusada de tráfico de drogas. A maioria não tinha antecedente criminal e cerca de 30% ainda aguarda julgamento. O Brasil já tem a quinta maior população carcerária feminina do mundo, ficando atrás só dos Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia. Das mulheres presas no Brasil, 68% são negras.
O “crime” de ser mulher
Em um infográfico sobre mulheres e tráfico de drogas o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) mostra que 81% das mulheres presas têm filhos. Majoritariamente a motivação para o trabalho no tráfico está ligada a uma estratégia de acesso à renda que a economia formal muitas vezes não dá. “É o emprego em pequenas atividades de transporte nacional e internacional de drogas que permite que muitas delas cumpram com as expectativas sociais de cuidado dos filhos e da casa que lhes são impostas. Não por acaso, é comum ouvir de mulheres presas que a remuneração que buscavam tinha como objetivo o pagamento de tratamentos médicos para filhos ou outros familiares”, aponta o ITTC.
E aí entra mais uma vez o peso moral da mulher que é mãe e que usa drogas ou que trabalha no mercado ilegal delas. Existe a pena pelo crime e existe a pena por ser mulher, mãe e ter cometido o crime.
Ironicamente, a cultura machista que coloca sobre os ombros das mulheres a responsabilidade total pelo cuidado dos filhos e que muitas vezes faz com que elas tenham que se virar sozinhas, ainda que fora da lei, para botar o leite dentro de casa, é a mesma cultura que as pune por fazê-lo fora dos insuficientes caminhos que a elas são reservados. Dados do IBGE apontam que as mulheres negras recebem habitualmente salários 172% mais baixos que homens brancos. Homens brancos que estão, inclusive, dando a canetada de sua sentença.
Na tese de doutorado “Prisioneiras de uma mesma história: o amor materno atrás das grades”, Rosalice Lopes salienta o relato de uma psicóloga da Secretaria de Administração Penitenciária: “As mulheres presas eram apresentadas como verdadeiras bruxas, espectros do feminino destruidor. Mulheres que haviam abandonado a condição passiva e receptiva e tinham literalmente desafiado e se contraposto à lei dos homens”.
Em entrevista a respeito de um estudo feito junto com Luciana Boiteux sobre mães e cárcere no presídio Talavera Bruce no Rio de Janeiro, a pesquisadora Maíra Fernandes diz que “quando o homem é preso, as mulheres mantêm a família e dão a ele todo o suporte para o cumprimento da pena. Mas quando a mulher é presa, a família se desfaz”: “Quando inspecionamos unidades masculinas, os homens em geral perguntam sobre seus processos. Já nas unidades femininas, a primeira pergunta é “como está meu filho?”. E no caso das grávidas as perguntas são ainda mais dolorosas: “Quanto tempo poderei ficar com meu filho?””. Apesar do Código Penal determinar que o juiz pode substituir a prisão preventiva pela domiciliar em caso de mulheres grávidas, decisões como essa são exceção.
Construindo nossos caminhos
Essas opressões, as muitas formas de prisões contra as quais lutamos acontecem, portanto, em inúmeras dimensões. Mas tem de ser quebráveis. Tem de ser… Umas são menos difíceis, outras parecem quase impossíveis.
Essas muitas prisões permeiam nossas relações, nossas organizações, o funcionamento dos espaços que habitamos; se manifestam num âmbito cultural bastante enraizado. É o que chamamos, por exemplo, de cultura proibicionista: aquela que faz com que a educação sobre drogas nas escolas públicas seja feita pela Polícia Militar, que pais que encontram drogas na gaveta do quarto do filho resolvam de cara expulsá-lo de casa ou interna-lo à força, que seja naturalizada a polícia matar “suspeitos” em “ações contra o tráfico”, que mulheres vítimas de assédio passem para a posição de culpadas pela violência que sofrem pelo simples fato de terem consumido alguma substância, que um vizinho caguete o outro por perceber que ele está cultivando uma planta proibida, etc. É também sobre esse aspecto da opressão enraizada culturalmente de que estão falando as manifestações feministas que se espalharam pelo Brasil em reação ao caso da violação sofrida pela menina no Rio de Janeiro, questionando a cultura do estupro.
No livro Microfísica do poder, Foucault defende que junto com os aparelhos de Estado desenvolvidos no século 18 – a polícia, o exército, as prisões, os manicômios – foi instaurada uma “nova economia do poder”. Procedimentos que capilarizam os efeitos do poder em todo o corpo social, atingindo os corpos, os gestos, os discursos, as relações, as hierarquias. “Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso”, caracteriza Foucault.
A desobediência tem aí uma caráter fundamental na nossa luta. Quando a paz é contra a lei, é um dever nosso desobedecê-la. Vale dizer também que já que a denúncia (o apontar aonde estão opressões que nos atingem) é parte do nosso processo de reflexão e desconstrução, sempre bom lembrar que não estamos construindo uma identidade vitimista. É verdade, as mulheres se fodem na sociedade machista que a gente vive. É verdade, as mulheres negras se fodem mais. É verdade, tem muito chão ainda a percorrer. Mas somos todas muito, muito, muito mais do que a opressão tenta nos reduzir. Juntas, então, nem se fale. Se o poder se exerce de forma múltipla, nossa resistência é também múltipla. Tentamos colocar em prática, dentro das limitações e contradições, o começo daquele mundo com o qual sonhamos.
Não aceitamos. Nossa desobediência aparece no não aceitar ter que depender de um homem para descolar a droga que se quer consumir ou para bolar seu baseado. No não aceitar a cultura competitiva que nossa sociedade forja entre as mulheres, e criar, ao invés disso, laços de solidariedade e companheirismo. No não aceitar não poder usar a droga que se quer numa festa e para isso criar uma rede de apoio e proteção entre as minas. No não aceitar a tentativa de nos silenciar e ocupar sim os espaços de protagonismo dos movimentos que construímos. No não se permitir intimidar pelas caras tortas, no conhecer nossos próprios corpos e nos permitir prazeres. No fazer um maconhaço com mais 30 mil pessoas e desacreditar ali, na hora, a lei proibicionista. No não aceitar os pesos morais e criminais que recaem sobre uma mulher que não quer levar adiante uma gravidez e, se assim decidir, encontrar meios seguros para realizar um aborto.
Existem também as dimensões estruturais dessas prisões, das grandes instituições. A prisão mesmo da grade de ferro, da bala que fura o corpo. O foda é quando não aceitamos o que não impedimos. Quando somos obrigadas a aceitar o inaceitável. Quando a dona Zilda não aceita a forma como seu filho lhe foi tirado, mas ainda assim, ele não está mais. Quando não aceitamos o cárcere, mas ainda assim, as cadeias brasileiras – os navios negreiros do século 21 – só enchem.
E é com as perguntas, o chamado à criatividade, que precisamos refletir sobre essas combinações que sustentam nossas lutas. Combinação da desobediência civil, do não se submeter e do construir aqui e agora aquilo que queremos colocar no lugar do que repudiamos; com ações que caminhem em direção ao desmantelamento das grandes estruturas de poder que inclusive são obstáculos às nossas experiências de autonomia. Que ações efetivas, diretas, reais, podemos fazer? Como transcender as denúncias que fazemos? Como agir, por exemplo, na direção do desencarceramento, sem cair nas burocráticas, injustas e masculinizadas tramas da institucionalidade e do âmbito jurídico? Com as perguntas, os erros, os acertos, a criatividade, vamos construindo nossos caminhos. Para derrubar cada uma dessas grades – as invisíveis e as visíveis. Até que não sobre nenhuma.
*Nome fictício por segurança e privacidade.