por Rodrigo Vinagre (Coletivo DAR)
A DDD (dica do DAR) desta semana é o excelente documentário “13ª emenda”, que aborda a criminalização dos negros nos EUA desde a escravidão até os dias atuais. Disponível naNetflix, o longa dirigido por Ava DuVernay (Selma) conta essa história de sangue e suor com imagens de arquivo, composições digitais, uma trilha sonora pesadona e entrevistas com acadêmicos, políticos, ativistas (como Deborah Small) e ex-prisioneiros.
O título faz referência à emenda constitucional que teria garantido a liberdade do povo preto em 1865: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias”
A escravidão nos EUA foi oficialmente abolida há mais de 150 anos, mas, conforme retratado no filme, o que vem ocorrendo desde então são apenas reformas no modo perverso com que o Estado americano gere os corpos da população preta, que é criminalizada, massacrada e jogada nas cadeias. Presos, os pretos seguiram sendo mão de obra gratuita, fazendo trabalho braçal para o Estado com condições como as de antes da abolição. Isso tudo dentro da lei. Afinal, segundo a 13ª emenda, a escravidão pode existir como punição de um crime. E não faltam dados e relatos para embasar a argumentação. Parte dessa cultura criminalizadora, os linchamentos públicos e a lei Jim Crow de segregação racial cumpriram o papel de manter uma escravidão velada, classificando o povo preto como cidadãos de segunda classe, tendo sido removidos das senzalas e jogados em celas ou mortos por agentes do Estado ou pela própria população branca, sobretudo nos estados sulistas.
Não por acaso, homens pretos hoje representam 6,6% da população dos EUA, mas são cerca de 40% da população carcerária do país. Extinta a lei Jim Crow após o movimento por direitos civis em fins dos anos 60 e começo dos 70, a reforma do processo de controle da população negra assume a roupagem da “guerra às drogas”. Historicamente promovida para controlar as chamadas “populações indesejadas” pelo Estado e seus gestores, a política anti-drogas tem um papel preponderante no alto índice de encarceramento dos pretos. Em 1970, quando Nixon lançou sua cruzada contra as drogas, a população carcerária total era de 357 mil pessoas; em 2014 o número chegou a 2,3 milhões, colocando a “Terra da Liberdade” como o país que mais prende em todo o mundo.
Se Nixon lançou a cruzada, o presidente Reagan, famoso por implementar uma agenda neoliberal na década de 80 nos EUA, recrudesceu ainda mais a ofensiva contra sua própria população, fazendo o índice de encarceramento subir vertiginosamente. No entanto, foi Bill Clinton quem mais investiu no aparato de (in)segurança do Estado, levando equipes da SWAT e armamentos pesados até mesmo para cidadezinhas pacatas no interior, ao passo que leis como a “Three Strikes Law” contribuíam para o aumento da população carcerária. O resultado não poderia ser mais desastroso: milhares de mortos e presos para justificar o investimento.
De um lado, a população carcerária gigantesca motiva protestos contra o sistema de segurança, por outro, grandes corporações não poderiam estar mais satisfeitas. Afinal, usam a mão de obra gratuita dos presidiários para confeccionar os mais diversos produtos, de roupas e outros bens de consumo a sistemas de mísseis de longo alcance, escancarando o fato de que a escravidão não acabou, apenas se rearranjou.
No momento em que vivemos uma nova reforma no sistema de controle da população preta, onde um aparato de vigilância aos poucos assume o papel da cadeia tradicional, o filme ’13ª emenda’ ganha ainda mais relevância. Se esse sistema de controle de cerceamento de liberdade se readequa, a política de extermínio mantém o mesmo ritmo atroz de 150 atrás. Quem também luta pelo fim do genocídio do povo preto e pelo fim do controle sobre corpos e liberdades, não pode deixar de dedicar algumas horas a esse puta filme e às reflexões por ele apresentadas. Black lives matter.