Coluna da Isa Bentes*
Todo ano no Brasil, o mês de maio é marcado pelas datas que acontecem a Marcha da Maconha. A cada ano que passa, mais cidades vão às ruas, com suas particularidades e pluralidades regionais, levantar a bandeira pela legalização da maconha e denunciar a letalidade da guerra às drogas.
Este ano é minha terceira Marcha da Maconha na cidade de São Paulo, que aconteceu dia 6 de maio, no vão do MASP, às 16h20. A Marcha da Maconha SP de 2017 foi como atirar-se ao mar de gente que mergulhamos sem receio. Seguiu sentido contrário aos demais anos, indo em direção à Praça da Sé, na região central da cidade. Uma multidão como nunca tinha visto me fez pensar que naquele momento havia tranquilamente cem mil pessoas. Depois vi que a minha contagem não estava tão fora da realidade. Me emociono bastante em todas as marchas que vou. Nesse ano a emoção foi maior quando me dei conta de que essa seria minha última Marcha no Brasil, já que em setembro estarei me mudando para o doutorado em terras cabralinas.
Chego na Paulista procurando todos e todas aqueles e aquelas que tenho o máximo respeito porque, sem dúvidas, os abraços são os melhores. A primeira pessoa que encontrei, a Ju, me fez atravessar aquela multidão quando a vi, e fui em sua direção e recebi o abraço mais acalentador, mais verdadeiro, que podia ter tido para iniciar aquela Marcha rumo ao fim da guerra às drogas. Não me contive com poucas lágrimas, as mulheres estavam levando a Marcha, bem na frente, vanguarda, empoderadas, guerreiras, encantadas pelo lilás da luta. Na sequência encontrei a Talula, aquela companheira que foi embora para Salvador e trouxe axé na alma para espalhar entre nós pelos beijos e abraços. Vi a Gabi de longe, ali na frente, bradando na voz as palavras que vencerão a guerra, só tive coragem de contemplar aquela imagem e registrar nas fotos do meu celular, que fora subtraído na Marcha. Fiquei só com os registros na lembrança da minha memória.
Enquanto respirava o amor aspirando a liberdade assisti aos blocos que se organizaram a partir de suas pautas específicas. Tinha o bloco da maconha medicinal com crianças, mães, pais, trazendo na comissão de frente aqueles e aquelas que a indústria farmacêutica, através do seu lobby, tenta negar-lhes o direito ao próprio tratamento. Áqueles que estão abrindo fendas na estrutura de concreto da proibição através do uso da maconha medicinal importada com o aval do estado brasileiro. Outros que mesmo sem o aval legalista fazem uso deste medicamento e reforçam o coro de que é necessário salvar vidas. Sempre lembro da Juliana Molás, uma companheira feminista, guerreira, que lutou até o fim e o quanto pôde para poder ter direito ao uso da maconha medicinal, mas que infelizmente tombou, e encantou-se.
Pela primeira vez teve bloco organizado dos usuários e usuárias de crack, e dos militantes envolvidos na luta pela resistência da cracolândia, e da necessidade de visibilizar aqueles e aquelas que estão sendo constantemente excluídos do direito de ter direitos. Expressivamente, expôs sua bandeira e o seu cachimbo para reafirmar sua luta, e a necessidade do seu protagonismo. Perto, estava o bloco do Rafael Braga, mais uma vítima da guerra às drogas condenado à prisão após ser preso em flagrante que lhe fora armado. Rafael Braga foi preso em 2013 por porte de pinho sol durante as manifestações de junho, e sim, ele é preto, pobre e da periferia do Brasil. O caso de Rafael Braga representa o que há de mais retrógrado e violento na política sobre drogas brasileira que, mesmo com toda a crise do sistema penitenciário, nega-se a rever as estruturas apodrecidas que sustentam a guerra aos pobres no país.
Após a marcha veio o V Seminário Internacional Maconha Outros saberes, organizado por CEBRID e Maconhabrás, que aconteceu na Unifesp. Foi um evento importante para agregar a militância acadêmica e a militância expressa nas ruas, e romper as barreiras nem sempre invisíveis nestes espaços. O encontro destas pessoas renovam nossos ânimos, a felicidade de nos vermos, de sairmos do conhecimento virtualizado de quem somos para nos tocarmos, nos sentirmos, conversar e tentar encontrar fendas de resistência na luta contra o proibicionismo.
Veio 18 de maio e é Dia da Luta Antimanicomial, luta que não abro mão desde os meus 15 anos, por todos e por mim. Estou em tratamento para depressão e ansiedade desde 2015, e o primeiro lugar que busquei foi o CAPS Itapeva, o primeiro CAPS do Brasil, que era pra ser referência de administração de um novo momento da psiquiatria, mas no Tucanistão as coisas não acontecem assim. Lá conheci meu psiquiatra, Alexandre Valverde, que saiu poucos meses depois de ter iniciado meu tratamento. Nunca esqueço o dia em que chorei feito criança com a notícia de que íamos nos separar e eu precisaria começar do zero de novo. Para alguém em tratamento com depressão e ansiedade, isso é uma lástima e uma dor sem precedentes, é como ver a esperança de uma vida melhor dando tchau. Liguei para ele, marcamos uma consulta no seu consultório, onde me disse que eu pagasse quanto pudesse por aquelas consultas, e se não pudesse pagar também não tinha problema. Perguntei a razão do afastamento dele do CAPS e a resposta condizia com as práticas do Tucanistão na gestão da saúde mental do Estado de São Paulo.
Aquilo foi o fim do mundo para mim. Liguei pra ele e contei que não queria trocar de médico porque estava, enfim, quebrando meus paradigmas e preconceitos contra a psiquiatria. Ele, filho de psiquiatra que trabalhou por anos no Hospital Psiquiátrico Juqueri, com mestrado em filosofia e de esquerda, abriu as portas do seu consultório como se fossem as portas do SUS. Até hoje faço tratamento com ele. Quando comecei meu quadro depressivo, era algo extremamente delicado, me impossibilitava de seguir adiante na vida, a cidade nova me engolia os sonhos, eu só dormia e chorava, todos os dias. Resistente ao uso de medicamentos, tive que começar a aceitá-los, da mesma forma que tive que aceitar minha doença, que tem tantos altos e baixos. Compreendi que é necessário saber lidar com ela, conhecer seus truques químicos e sociais, às vezes sucumbir, às vezes resistir.
Tive um processo intenso de auto conhecimento, de reconhecimento de erros e acertos, de apagar rancores, de me sentir liberta para os abraços que um dia neguei. Hoje, fazendo desmame de alguns medicamentos, penso que se tivesse que passar por tudo de novo para me entender do jeito que sou hoje – das opções que fiz para ser a pessoa que sou -, eu passaria. O sofrimento é necessário, ele nos reinventa, mas viver na sua escuridão não. Sofrimento é passagem e caminho, da mesma forma que é escuridão, tempestade e calmaria. 18 de maio é também mais um dia meu, um dia que desejo que a psiquiatria compreenda a dimensão social da saúde mental.
E maio, que foi verde, que foi lilás, termina cinza de guerra, com a virada da cultura do fascismo atuando na cracolândia como rolo compressor por cima de vidas que resistem aos ditames excludentes e exterminadores do capital na cidade de São Paulo. De vários atentados, dia 21 de maio foi o estopim do absurdo, do que há de mais tenebroso na violação de direitos com prisões arbitrárias, internações forçadas, espancamentos, arrasadores de quarteirão demolindo barracos e barracos, em tempos frios e chuvosos, para que suas vidas estejam desprotegidas o quanto puderem estar, despidos de dignidade, com seus corpos ameaçados, que para a ordem são ameaçadores aos negócios e ao bem estar da ordem.
A Polícia Militar seguiu como de costume, e Geraldo Alckmin e João Doria unidos para ocultar o quanto puderem a crise política do governo deles próprios, que é cíclica e que repete os mesmos remédios sociais para que o povo pague por isso. Desde que a lógica epidêmica de crack foi o subterfúgio garantido do capital especulativo imobiliário para conquistar territórios com o aval do poder público. Em nome da epidemia, do mal que assola as cidades e que arrasa com a juventude, que conduz o indivíduo à pobreza (invertendo a relação de causa e consequência de consumo de drogas e condição de classe), as políticas emergenciais são elaboradas a partir de operações militarizadas com suas infinidades de nomenclaturas que reproduzem expressões associadas a práticas de sofrimento, de tormento, de tortura, com o intuito de esfacelar socialmente aquele tipo de indivíduo, aquele tipo de corpo.
Nesse cenário, emergem as vozes necessárias para denunciar e protestar contra essa usurpação do direito a vida, e o grupo A Craco Resiste é uma delas. Voz que surge das ruas como resistência contra toda forma de opressão àquela população massacrada pelo capital, e alvo das políticas de higienização social. Levanta sua bandeira laranja, seu cachimbo prata. É possível ver um grupo capaz de articular lutas que estiveram por algum tempo distanciadas, mas nunca dissociadas, que é a luta da população em situação de rua, do movimento antiproibicionista, do movimento antimanicomial e do movimento de moradias populares.
Igualmente como surgiram as Mães de Maio, em 2006, quando a resistência da periferia organizou a dor e o sofrimento em luta para denunciar os abusos da polícia, a violência do Estado e o projeto de extermínio da juventude negra e pobre do país. Nesses tempos, as ruas estão sendo tomadas, falamos novamente em Diretas Já, temos outro dia do “Fico”, uma crise institucional, política, econômica e social sem precedentes na história, e um cenário desolador onde nossas esperanças tentam encontrar forças para construir uma sociedade democrática, mais justa e igualitária.
Em tempos sombrios, o que nos resta é entender que o que transforma o velho no novo bendito fruto do povo, e a única forma que pode ser norma, é nenhuma regra ter. É nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer. Nunca reverenciar.
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com