Coluna da Isa Bentes*
Na madrugada do dia 19/7, a cidade de São Paulo registrou a noite mais fria desde que iniciou-se o inverno deste ano: 7ºC. A preocupação maior quando a temperatura cai nesses níveis é com a população que vive em situação de rua. Pessoas morrem de frio, são internadas com hipotermias e outros choques viram notícias diariamente na mídia em geral.
A esta população alguns grupos da sociedade civil entregam kits com cobertores, roupas, empreendem campanhas para arrecadação de agasalhos e sapatos, distribuem sopão, chocolate quente e comidas para aquecer o corpo. Essas pessoas se viram como podem: catam papelão para ajudar a aliviar o frio, dormem em lugares com fluxo de carros permanente para que o trânsito as aqueça. Nessas noites, até mesmo as saídas de ar quente do metrô se tornam um colchão térmico. As possibilidade são oferecidas pelos equipamentos da cidade gratuitamente, sem segurança e com um alto custo social.
Na maior cidade da América Latina existem hoje cerca de 15.905 pessoas em situação de rua, segundo o relatório de uma pesquisa censitária realizada pela Prefeitura da Cidade de São Paulo em parceria com a Fundação Instituto de Pesquisas econômicas, publicado em 2015. Uma das práticas recorrentes do poder público, principalmente do governo municipal, é distribuir cobertores para esta população durante o inverno para, depois, retirar não só os cobertores doados, mas também os colchões, os abrigos improvisados, tomar-lhe os documentos, as roupas, os pertences, e esquentar seus corpos com bala de revólver ou de fuzil.
Essas histórias não são inventadas. Elas ocorreram durante uma semana apenas na cidade de São Paulo, onde no último dia 13 um PM atirou em um carroceiro que estava desesperado de fome. Na semana passada, nos arredores da Catedral da Sé, moradores de rua foram acordados às 7h com jatos de água depois de São Paulo registrar 7ºC na madrugada de frio intenso. Ainda no dia 19, um homem de 50 anos foi encontrado morto na rua, vítima do frio. Os abrigos simplesmente não comportam a população em situação de rua, não há cama nem teto para todos, restando a rua e o que é possível fazer nela em busca de sobrevivência nessa estação que registra quedas abruptas de temperatura.
Os operadores da guerra às drogas, que se traduz na realidade em uma guerra aos povos preto e pobre, utilizam das estratégias mais hediondas para levar esta população a sucumbir. Retiram-lhes a dignidade, o documento e o cobertor. Oferecem-lhes às ruas e o calor do fogo da guerra que é disparada de uma arma todo dia. Para aquecer esses corpos abjetos, somente a ira ao se ver proibido de portar um cobertor e um colchão, proibido de sentir fome, sede, frio, proibido de viver. Nos dias e noites, álcool e crack são utilizados para aliviar os arrepios frenéticos do inverno, da pobreza e da frieza do Estado que desassiste, oprime, extermina.
Como diria o dramaturgo Bertold Brecht: “Estranhem o que não for estranho. Tomem por inexplicável o habitual. Sintam-se perplexos ante o cotidiano. Tratem de achar um remédio para o abuso, mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.”
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com
As fotos que ilustram este texto são de autoria de André Porto.