Por Juliana Paula*
Publicado originalmente no Portal Geledés
Algumas semanas atrás publicamos um texto que tratava sobre a Cracolândia, o racismo e o genocídio das pessoas pretas, e também não pretas, que são pobres. Esse texto teve alguns comentários de pessoas contrariadas, como já se esperava. Algumas delas me perguntavam:
“Tá, então tá tudo errado né moça, mas você propõe o quê?”
Já no momento que li essas palavras fiquei pensando na importância da contra narrativa nesse momento e nesse tema. Em geral as pessoas estão muito ocupadas para pensar maneiras de tentar solucionar ou ainda reduzir os danos de problemas sociais complexos tais como a dependência de drogas e a questão da moradia, por exemplo. Sendo assim, a sociedade demanda solução. Que venha de cima, que venha do lado, que venha de baixo, isso não importa muito. Eis a palavra de ordem: que se resolva!
Essa demanda por solução rápida e terceirizada pode ajudar a explicar, por exemplo, a eleição, em primeiro turno, de João Dória Jr. para a prefeitura da maior cidade do país.
Um sujeito nada simpático, rico, empresário, distante da realidade da maior parte da população de São Paulo, inclusive da classe média. Um homem que apresentou um reality show de espírito totalmente capitalista, oportunidade em que pôde demonstrar o quanto é possível passar por cima de pessoas como se fosse um trator e o quanto está disposto a ser desumano em busca do que considera sucesso.
João foi eleito em São Paulo. Foi eleito porque é um gestor e porque aprendemos muito bem a lição de casa: tudo que é privado é melhor do que o que é público. Se ele é patrão, então trará uma solução. E rápida.
Solucionar e solucionar logo. É isso que a prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado têm feito com a complexa questão da Cracolândia. Aliás é o que vem sendo feito há muitos anos. As ações recentes, muitas delas, têm mesmo agradado as pessoas. Pessoas de várias classes e espaços sociais, pessoas diferentes em suas vidas e realidades, mas que tem em comum esse desejo de resolver logo a tal “epidemia do crack”, custe o que custar.
É para essas pessoas, para as que me perguntaram “e você propõe o quê?”, para as que elegeram João Dória, as que acreditam em justiça com as próprias mãos, violência e internação compulsória como cuidado, é principalmente para elas que escrevo esse texto.
Vamos falar desse videozinho ma-ra-vi-lho-so que explica de maneira muito acessível a questão da dependência e a forma de cuidado que temos proposto. Seria lindo o mundo todo assistir!
Espero que essa minha introdução tenha feito você assistir o vídeo, pois vamos falar sobre ele agora.
O vídeo inicia declarando “quase tudo o que pensamos sobre vício está errado”. De fato, o senso comum, quando se fala em dependência química, se baseia numa teoria bem positivista que reduz a dependência química a processos exclusivamente orgânicos e neuroquímicos, ou seja, a dependência se estabelece pela frequência de uso, associada ao efeito e à duração desse efeito, apenas. No dizer do povo, o crack vicia ao primeiro contato – basta um trago, ou uma “paulada”, como dizem as mais familiarizadas com ele, e pronto: vício instantâneo.
Permita-me decepcionar você. Conforme vemos no vídeo e também segundo o neurocientista Carl Hart, a dependência química (e ele está falando especialmente sobre o crack) se estabelece principalmente por fatores sociais. Não são as drogas; é a vida, é o trabalho, é a sociedade, é a falta de alternativa e o repertório escasso. E não são essas coisas por si só, mas as relações que estabelecemos com elas.
Hoje sobram dados que apontam para o nível de adoecimento que o trabalho nos causa. O mercado e o Estado nos massacram. Não sobra tempo para a subjetividade, para existirmos complexamente, para sermos criativas, capazes. Pra quem nasce pobre e preto, então, morando na quebrada, que só pra chegar ao trabalho todos os dias no horário enfrenta uma batalha de pelo menos uma hora e meia no transporte público lotado, no transito, em pé, com sono, com dor, com fome, como for…
E vivendo numa angústia e numa ansiedade tão grandes, sob tanta pressão, com tão pouca qualidade de vida e tão pouco espaço social para existir de fato, é natural que cada pessoa busque formas de aliviar-se. Sim, estou falando de sentir prazer, gozar, deleitar-se com algo na dureza dessa vida e, quando encontramos esse algo, só conseguimos pensar em uma coisa: excesso. O prazer é tão escasso, a satisfação anda tão sumida, que quando encontramos algo que nos dá prazer, geralmente não queremos parar. Acessamos aquele prazer enquanto pudermos, enquanto conseguirmos e enquanto aguentarmos.
Essa relação se estabelece claramente numa sociedade cujo modelo econômico incentiva o consumo desenfreado. A opressão se torna ainda mais lucrativa quando força o oprimido a consumir o alívio. Quanto mais oprimido, mais consumirá. Isso acontece com a TV, com as redes sociais, com a gordura, o café, com a pornografia e com o sexo propriamente, acontece com as relações humanas e acontece com as drogas. Uma delas é o crack.
Parem o mundo! As pessoas usam crack e isso é um efeito, não uma causa dos problemas sociais. Um efeito, entre outras coisas, da necessidade desesperada de alívio para a vida. E você que lê esse texto, talvez nunca tenha feito uso de crack por medo, por receio de ele ser mesmo capaz de aliviar as suas dores.
As dores
Estas aproximam todas as pessoas, todas as realidades. Nos aproximam entre nós e tornam, inclusive, a sua realidade um tanto mais próxima da realidade do “zumbi da cracolândia” que você assiste pela TV. Como você, ele sente a dor que muitas vezes é viver.
Uma vez que compreendemos que o consumo de drogas é um consumo como qualquer outro, podemos superar a ideia de que o crack em si é um demônio, arqui-inimigo da família brasileira e capaz, sozinho, de conduzir uma pessoa a total degradação. Alguma sábia disse e o Fióti cantou que “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose que se usa”. Isso sintetiza a ideia de que, tal como o rivotril e a ritalina, o crack, o cigarro, o corote podem ser apenas mais um remédio que, por vezes, usamos em excesso.
Eu disse tudo isso pra poder responder àqueles que perguntaram, finalmente, que eu tenho uma proposta sim. A minha proposta é o vínculo.
O vídeo que mencionei encerra com a brilhante consideração: “O oposto do vício não é sobriedade. O oposto do vício é conexão“.
Algum tempo atrás estava no fluxo com uma amiga escorpiana querida, que é minha xará, e acabei encontrando com um rapaz que eu atendia no centro pop lá do Taboão. Encontrei, naquele mar de gente, o Emerson. Um cara da rua, com uma história complicada e também usuário de crack.
Eu sabia há um tempo que ele estava na craco e estava muito afim de encontra-lo. Até agora não acredito que a gente se achou.Quando ele ainda estava no Taboão, a gente estimulou e ele escreveu uma poesia pra uma atividade sobre o programa de erradicação do trabalho infantil, o PETI. O Emerson escreve muito bem! Durante as três horas que fiquei conversando com ele no fluxo, horas que nem vi passar, claro, ele me mostrou um calendário que a prefeitura fez com a poesia dele, que ele guarda numa bolsa onde tem tudo que mais importa e que não pode ser perdido. Ele deu o calendário pra mim. Chorei. A gente se abraçou longamente muitas vezes nessa noite.
O Emerson foi alertado das ações que estavam por vir e, como muitos, disse que não sai de lá, que só na craco ele é feliz. Me contou também que o “baguio tava tão louco” aquele último mês que ele não conseguiu mais tomar banho e a gente combinou de se encontrar no bom e velho centro pop do Taboão pra ele se cuidar e a gente conversar mais, naquele lugar que fez a nossa história existir. Ele falou que ia, ia só porque eu convidei. E ele foi mesmo. Isso não aconteceu porque eu sou tão da hora, mas porque existe um vínculo entre nós.
Nesse dia eu fui embora do fluxo com a Ju e eu estava extasiada com a força do vínculo. Eu dizia para ela que não me vejo trabalhando com algo que não o vínculo. Acredito que as pessoas precisam saber o que rola na rua, na craco, na quebrada. As pessoas precisam saber como é importante trabalhar com o vínculo, precisam saber que esse tipo de relação importa, muda vidas.
Na rua, no centropop e no CAPS trabalhamos com Redução de Danos (RD), que é uma proposta de cuidado que não ignora aquela pessoa que não consegue ou não deseja parar de consumir drogas, priorizando a pessoa e não a substância que ela usa, respeitando o direito de escolha e a capacidade de reflexão e decisão daquela pessoa.
*Juliana Paula é psicóloga, integrante da Craco Resiste e do Coletivo DAR.