Por Juliana Paula*
Publicado originalmente no Portal Geledés
Me chamo Juliana, tenho 30 anos, sou psicóloga e milito, entre outras coisas, pela causa antiproibicionista. Em minha vida profissional tive a alegria de trabalhar durante dois anos num Centro Pop – equipamento da assistência social que atende pessoas em situação de rua, geralmente no horário comercial e que tem a prerrogativa de possibilitar, entre outras coisas, atendimento às necessidades básicas como banho, alimentação, descanso e convivência (e sobrevivência) a essas pessoas. No Centro Pop a maioria das pessoas referenciadas tinha a pele escura.
Na minha atuação profissional e na militância convivo com a realidade do racismo brasileiro, onde todos os lugares em que consigo chegar com esforço e luta estão repletos de pessoas brancas que negam o racismo. Onde o status quo é branco e tem cabelos lisos, onde a beleza é branca, a riqueza é branca, a limpeza é branca, a gestão é branca. Cansa, e como cansa estar sempre rodeada de gente branca nos espaços sociais, no trabalho e na militância, sempre se perguntando “onde os pretos estão?”. Quando vamos aos presídios, às comunidades terapêuticas, às favelas e à Cracolândia, nós os vemos. Vemos suas dores e suas lutas, mas nós também vemos resistência!
Uma das primeiras respostas que foram dadas ao “Dia D” do prefeito e do governador na Cracolândia, no dia 21 de Maio de 2017, foi uma manifestação organizada pelas pessoas da região, por moradores e comerciantes. Um ato com tanta voz, que conseguiu calar as vozes desses dois homens autoritários e colocá-los para correr em frente às câmeras e microfones da grande mídia. A voz que os fez fugir é a voz pobre e preta de quem já se cansou de ser tratado como lixo.
Chamo de Dia D o dia do fim. Foi naquele domingo que teve fim a tensão imensa e persistente que esteve no fluxo durante todos os meses em que lá estivemos e que só aumentava à medida que outra matéria era colocada no ar no Cidade Alerta ou na Rede Globo, com âncoras de jornal criticando o fato de a Cracolândia “ainda estar lá, viva”, ou a cada nova ação policial violenta, a cada viatura que invadia o fluxo levando tudo à sua frente, a cada ameaça que sofremos das forças policiais presentes no fluxo, velada ou explícita. O dia 21 de Maio colocou um fim também à mentira, contada até para o Ministério Público, mas na qual nunca acreditamos: a mentira de que não haveria um “Dia D” na Cracolândia.
Desde janeiro estávamos nos preparando para aquilo. A Craco Resiste ” batizada assim pelas pessoas do fluxo – nasceu justamente do medo, do receio, da paranóia de que um prefeito que não gosta de gente pobre iria tentar dar um jeito da Cracolândia deixar de existir. Ele disse que faria, não tínhamos porque duvidar.
Dessa forma, a Craco Resiste vem ocupando a região conhecida como fluxo desde o primeiro dia útil desse ano com atividades culturais, música, esporte, capoeira, debates e alegria de viver (gostamos!). E também tem presenciado, registrado e denunciado as ações violentas do Estado contra os direitos e as vidas das pessoas que lá estão.
Estamos lá, registrando e denunciado que, desde o dia 21 de maio, centenas de policiais têm expulsado violentamente pessoas do lugar onde construíram sua história. Vimos lá tiro, porrada e bomba contra paus e pedras. Presenciamos uma parede ser derrubada sobre famílias, imóveis sendo lacrados com pessoas nele. Testemunhamos o desmonte da rede de atenção psicossocial e até uma tentativa insana de internar compulsoriamente centenas de pessoas.
Intitulei esse texto parafraseando algo que acabei de ouvir assistindo o fantástico documentário “Eu não sou seu negro”, de Raoul Peck, baseado no livro inacabado de James Baldwin. Onde ele fala sobre a questão do racismo estadunidense a partir de relatos sobre a vida e assassinatos de três importantes ativistas pretos dos EUA.
Sabemos que a mentira “racismo não existe” é uma das mais contadas em todos os tempos e no filme a frase “fizemos um massacre virar lenda” se refere justamente à essa contumaz e perversa negação histórica que, sendo realidade nos Estados Unidos, é muito mais real no Brasil.
É de negação em negação que o racismo se perpetua no Brasil. Vivemos como se racistas não fôssemos, racistas são os outros. Como se a esmagadora maioria dos corpos encarcerados não fosse preta, como se a maioria das pessoas pobres e miseráveis não fosse preta, como se a maioria das pessoas fazendo uso pesado de drogas e em situação de extrema vulnerabilidade não fosse também preta. O único destino que se dá a esses corpos, como nos tempos da escravidão, é a exploração sem limites e, para aqueles que se recusam a ser produtivos, os que não se permitem ser explorados, o cárcere, a internação ou a morte.
O mundo em que eu existo como mulher preta não preparou uma realidade para mim; Ele me nega, me exclui, me marginaliza; Me fere e também me mata. Apaga minha memória e reescreve minha história, porque para ele eu sou nada. Mas ele não faz isso às claras, ele não diz para mim, mulher preta, que me despreza. Ele não diz para as pessoas, que são a Cracolândia, que ele não quer ter que olhar para elas. Não quer sentir seus cheiros, nem lidar com seus problemas complexos.
Este texto é um convite à resistência. Não existe neutralidade na política, ficar inerte é permitir que um massacre vire lenda, assim como tentaram fazer com Carandiru, Candelária, Barbacena e com cada violência que se comete com cada corpo preto neste país. Uma série de outras ações vem sendo realizadas e a resistência não pretende parar. A maior garantia que tenho de que não pararemos é histórica: o povo preto nunca deixou de lutar e resistir, desde que o primeiro maldito navio negreiro chegou a essa terra.
Já dizia Criolo que o “mundo real não é o rancho da pamonha”, viu prefeito do carro de pamonha? Há tempos temos engolido muitas “verdades”, mas meu convite é para você enxergar a Cracolândia não como um lugar, mas como uma realidade social e enxergando isso, entender que, quando alguém diz que a Cracolândia vai acabar, está falando em acabar com pessoas, suas vidas e suas histórias, sem lhes dar a chance de uma escuta e uma atenção adequadas.
Se hoje vemos tantas pretas e pretos em situação de aparente passividade, essa culpa é do racismo estrutural e velado que faz o preto ter ódio e vergonha de si mesmo. Mas como eu disse, a história é nossa e o levante do povo preto tá aí nas periferias, nas comunidades quilombolas, nos terreiros, nas rodas de capoeira, nas universidades, nos movimentos sociais. E na Craco, porque a Craco resiste.
*Juliana Paula é psicóloga, integrante da Craco Resiste e do Coletivo DAR.