Coluna da Isa Bentes*
Em decorrência das minhas pesquisas de doutorado, tive que aprofundar os estudos sobre a formação de territórios de consumo de drogas, trazendo em especial a região da chamada Cracolândia, na cidade de São Paulo. O livro “Boca do Lixo”, de Hiroito de Moraes Joanides, é uma dessas obras realísticas recheada de floreios literários sobre as vivências e tramas no centro de São Paulo durante os anos 1950 e 1960. Inicialmente, a Boca do Lixo trazia essa alcunha em contraposição à chamada “Boca do Luxo” (região caracterizada pelas casas de prostituição de luxo que foi deslocada do Bom Retiro para Higienópolis). Era um centro de encontro de boêmios, malandros, prostitutas e personagens que marcaram a história da noite paulistana na metade do século XX, que fora gerado, segundo Hiroito de Moraes, do sêmen da injustiça social: o quadrilátero do pecado. Essa região, posteriormente, a partir do fim dos anos 1960 e 1970, foi demarcada pela produção cinematográfica, principalmente o que ficou conhecido como a “pornochanchada”, tendo como obra mais expressiva “O bandido da luz vermelha” (1968), dirigido por Rogério Sganzerla.
Hiroito de Moraes começa dizendo que o “baixo-mundo, ou submundo do crime, não é necessariamente designação de determinado local de uma qualquer cidade. Designa, isso sim, o conjunto de seres humanos que nela vivem, à margem da lei ou dos bons costumes, bem como a ambiência dentro da qual os seus destinos se arrastam. É pois designativo mais de classe, digamos assim, que propriamente de local, já que os lugares frequentados por aqueles que a ela pertencem, onde se reúnem, residem ou exercem os seus místeres ilícitos, pode que sejam vários e dispersos, espalhados por toda a extensão de uma cidade grande”, e remonta as histórias que ocorreram nas ruas Santa Ifigênia, dos Andradas, dos Protestantes, dos Gusmões, lembrando as dinâmicas ilícitas da cidade em consonância com as ondas migratórias para a cidade, resgatando as memórias históricas desta região paulistana.
Dentre as memórias de prostituição, roubos, furtos, homicídios, agressões, as relações de poder dentro da “malandragem” paulistana fundava-se na figura do imigrante como os personagens icônicos de Quinzinho, Brandãozinho, Nelsinho da 45 e o próprio Hiroito. As negociações da polícia para ordenar socialmente o chamado “quadrilátero do pecado” paulistano e a mediação de conflitos a partir deste cenário, sem dúvidas, retrata a dimensão do mercado ilegal de drogas quando esta ainda operava a partir de mecanismos menos complexos, e a dimensão de guerra ainda não tinha tomado proporções globais. Não à toa, esta economia não era a principal alternativa de “ganhos fáceis” para a população que ali forjavam relações sociais baseadas nas afetividades prostituídas, no poder baseado na figura do homem temido, na malandragem que se envolviam com jogatinas, roubos, furtos (o chamado punguista), contrabando e cafetinagem como fonte de renda.
O consumo de drogas é uma dimensão presente no texto, fazendo com que nós possamos dialogar com o passado e conhecer os padrões de consumo existentes na época, e que hoje, devido aos surtos epidêmicos de HIV, hepatites, etc., não são mais recorrentes nas cenas de consumo de drogas no local retratado no livro. Hiroito relembra nas páginas a fase da “degenerescência moral” atribuída ao período de aumento de consumo das “picadas” (ampolas de anfetamina) como o novo vício da moda. Na sua opinião, Hiroito coloca que os vícios das picadas, em suas causas, deveria merecer o mais acurado estudo por parte de psiquiatras e psicólogos, porém desde um outro prisma que não simplesmente o do aspecto tóxico. Com as picadas se passa algo de extraordinário e, presumo, de terrível. É no seu próprio uso em si, no ato mesmo de usá-las, que se esconde esse algo de terrível, de psicótico por certo, apresentando implicações masoquistas a par de sensação morbidamente voluptuosa de ver o próprio sangue em movimento dentro de um tubo de vidro. É o quadro visual do ato de picar-se, formado pela veia intumescida, pulsante de vida, sendo penetrada pela agulha hipodérmica, depois o sangue passando para a seringa, misturando-se ao líquido tóxico, voltando com este para dentro da veia, depois o sangue sendo puxado novamente para seringa (procedimento típico de viciado, que repete esse vaivém do sangue vezes seguidas), para no fim ser injetado até a última gota, é esse quadro, a visão dessa cena, para o viciado, tanto ou mais importante que os efeitos que a substância injetada lhe trará. Isso em noventa por cento dos casos de viciados, tanto que, os desse número, na falta de ampolas de picada se conseguem bolinhas nãos as ingere por via oral, mas sim destilam-nas, como dizem, ou seja, dissolvem-nas em alguns centímetros cúbicos de água, coam a mistura em algodão e, então, a injetam na veia. As bolinhas, se tomadas pela boca, claro que produziriam os mesmos efeitos tóxicos, com o atraso de minutos” [p.166].
Com uma experiência de consumo suficiente para apropriar-se de sentimentos e descrições fiéis, Hiroito de Morais diz que “o que o viciado quer, acima de tudo, é picar-se. Em um grande número deles percebe-se ainda que, sem que o percebam, inconscientemente, evitam acertar a veia com a agulha logo na primeira furada, para que possam ficar procurando a veia com a agulha enfiada na carte. Após dar uma procurada, retiram a agulha e enfiam-na mais acima, ou abaixo, ou ainda ao lado, para nova procura, e assim sucessivamente, furando, e ferindo o braço todo sujo de sangue” [p.167]. Sobre o efeito psicoativo das anfetaminas injetadas, diz que após vários dias de vigílias sob o efeito das drogas é que as alucinações acometem àquele que faz uso prologado, provocando efeitos danosos ao organismo, mas estabelecendo que num período não maior do que de 48h usando, estabelecendo horas de sono e alimentação como fundamental para manutenção da saúde mental. Mas Hiroito ainda aponta que os danos do drogado, mesmo depois de abandonar o uso, permanecem, e que a dimensão moral do consumo de drogas é onde reside o maior dano físico e mental devido à “perda do amor-próprio, que com o tempo chega o viciado a apresentar uma como que bronca de si mesmo, incluindo-se, e até com relevância, no desprezo que a tudo e todos ele devota. […] O tomador inveterado de picadas é capaz de tudo não apenas para conseguir o tóxico: ele é capaz de tudo por qualquer coisa. […] Por assim ser é que aponto as picadas como concausa no advento da cagoetagem como moda no submundo. A crise da época, para os que viviam marginalizados, com as dificuldades cada vez maiores para a sobrevivência no meio, estava por certo a arrefecer fortalezas de ânimo, a minar coragens e disposições para a luta, mas foi a anfetamina que veio funcionar como elemento catalizador nesse processo de acanalhação da classe [p. 169].
Sobre a maconha, Hiroito de Morais conheceu no ano de 1957, e relatou o fato de não se dar bem com a referida uma vez que esta o deixava “abobalhado, de toca, como se diz na gíria. Sob seus efeitos faço-me mergulhado em humor, rindo de tudo e fazendo rir por espirituoso que fico; porém, a par dessa comicidade toda, torna-me ela estupidamente distraído e aéreo, desligado da realidade que me cerca. Quando em não sendo de hilariedade geral a onda em que entro, pior ainda, pois que então, profundissimamente introspectivo, caio no abismo de mim mesmo. Nessas ocasiões, se intento manter-me à tona, agarrado à realidade, conversando por exemplo, muito amiúde em meio a uma frase me ocorre esquecer por completo não só o que estava dizendo ou pretendia dizer mas até mesmo qual o assunto sobre o qual se falava” [p.169].
No contexto de complexificação das relações sociais mediadas pelos conflitos geradores de violência na região da Boca do Lixo, as polícias foram cada vez mais ampliando seu espectro através das ações recuperativas com as Rondas Unificadas de Assistência Social – RUAS, as Rodas de Ajuda ao Próximo – RAPs, Operações Socorro, Educação e Cultura, Operação Amemo-nos uns aos outros, etc. O arrocho policial nos círculos estabelecidos da chamada Boca do Lixo dissipou a comunidade que ali estava estabelecendo-se, esvaziando o centro da cidade e dando abertura para outros estabelecimentos de outras naturezas. A ditadura militar, a partir da ação moralizante dos espaços públicos, o aprofundamento do combate às drogas, os grupos de extermínio da polícia, deslocou para outros espaços urbanos uma parcela daquela “população desajustada” Hiroito de Moraes ainda lembra que a Boca do Lixo foi territorialmente reconquistada pela sociedade. A cidadela dos desajustados não resistiria aos assédios das tropas moralistas e seus habitantes, em fuga, espalharam-se por toda cidade, invadindo as áreas do comércio, as zonas residenciais, misturando-se à gente de bem de todas as classes sociais” [p.255]. E indaga, ao final do livro, se a Boca do Lixo morreu. Eis que ele responde que não: “pelo contrário, crescera assustadoramente, e seguiria crescendo”.
Hoje, a Boca do Lixo é conhecida como Cracolândia e herdou a memória histórica dos desajustados sociais, locus privilegiado da ação repressiva de combate aos pobres que vivem em situação de rua na região, de extermínio da população negra, de acirramento do poder punitivo, da degenerescência da condição humana promovida pela extrema desigualdade e injustiça social, onde a comunidade resiste, quase 70 anos depois da história da Boca do Lixo, à opressão do Estado penalógico em favor da ordem social que favorece ao capital.
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com