Qual é a semelhança entre um bairro periférico de São Paulo e uma favela nos morros do Rio de Janeiro? O que acontece nas comunidades da Bahia que também acontece nas periferias de Belém do Pará? Afinal, que característica une praticamente todas as comunidades pobres do Brasil?
A resposta é dolorosa: a violência policial. Somente no estado de São Paulo, policiais civis e militares assassinaram 459 pessoas no primeiro semestre de 2017, quase o dobro do número registrado em 2013 (242 mortos). Ou seja: não passa de balela o papo da Secretaria de Segurança Pública de que desenvolve ações para reduzir a letalidade. Se somarmos o número de pessoas mortas por policiais fora de serviço (127) e o número de policiais mortos (30), chega-se à quantidade total de 616 vidas a menos na conta da letalidade policial.
Para dar voz e vez para as pessoas que vivem esse conflito cotidianamente, foi realizado um encontro dedicado àqueles que sentem na própria pele a violência de Estado. O evento marcou os 25 anos do massacre do Carandiru, no qual (no mínimo) 111 detentos foram dizimados pelas forças de segurança, numa das ações policiais mais abruptas e violentas da história.
Organizado pelo Coletivo Autônomo Herzer, Coletivo DAR, Movimento Passe Livre SP, Campanha 30 Dias por Rafael Braga e Secundaristas, o encontro aconteceu no sábado (7/10) na favela do Moinho, no centro de São Paulo, onde o jovem Leandro de Souza Santos, 18, foi encurralado e executado por policiais militares dentro de um barraco, no final de junho.
“Vim aqui para fortalecer todas as famílias que perderam seus irmãos e seus filhos”, afirmou Letícia, irmã de Leandro. Neste momento, dona Hilda, representando as Mães em Luto da Zona Leste, convidou a jovem para entrar no grupo. “Somos mães fortes e guerreiras. Somos as mães da periferia, mães que perderam seus filhos pra polícia”, disse Hilda, à flor da pele. “A dor de uma mãe ao perder seu filho é grande e infinita. Cada lágrima que derramamos nos fortalecemos ainda mais, pois vamos à luta.”
Representando as mães de Osasco, dona Zilda também direcionou sua fala à Letícia. “Perdi meu único filho. Falo a você, não desista, não tenha medo. A gente não morre duas vezes, a única pessoa que tinha era meu filho. Ter medo e recuar: é isso que a polícia quer”, observou. E continuou com tudo: “dizem que em Osasco aconteceu a maior chacina de SP. Mas a verdade é que foi no Carandiru, não podemos esquecer, foi de lá que veio a palavra chacina. Enquanto eu tiver vida vou trazer à tona essas duas chacinas.”
Na favela do Moinho há um grupo que trabalha com jovens egressos da Fundação Casa e da cadeia, do qual Alessandra faz parte. Além de promover um cinema público, o grupo já reformou o campo de futebol, ajudou a construir um parque e um espaço de atividades e até mesmo transformou um lixão em espaço público dedicado às crianças da comunidade. “Somos um movimento independente e sem liderança”, enfatiza Alessandra.
Toda primeira quinta-feira do mês, a partir das 19h, o grupo organiza o Slam Moinho Resiste. Há também uma reunião quinzenal com mulheres onde se conversa sobre absolutamente tudo. “Mesmo morando no centro, todo dia tem jovem espancado na favela, quando não bate joga num beco ou num barraco e jogam flagrante, torturam e matam.”
Após uma pausa para almoço coletivo, onde os presentes puderam trocar ideias com calma e estreitar laços, o microfone estava aberto para quem quisesse falar. Representando o Coletivo DAR, Juliana Paula retomou a sua própria história de vida. “Na certidão de nascimento sou branca e fomos criadas como pessoas brancas. Demorei pra entender que eu sou mulher negra. Esse processo é doloroso, pois nele você se entende como o inimigo do Estado, que não nos mata só com armas.” Ela elogiou o momento de troca e reconhecimento. “Quanto mais a gente apanha e vive a repressão mais encontramos fortalecimento em nossos pares. Todo massacre há de ser revertido, e devemos descobrir outras formas de lidar com o que nos ofende e a partir das nossas dores, construir nossa resistência.”
Egressa do sistema prisional, onde ficou detida por cinco anos, Tempestade afirmou que foi dentro da cadeia que aprendeu a lutar pela liberdade. Presa aos 58 anos e acusada de tráfico de drogas, Tempestade está organizando um mutirão extramuro no CPP Feminino de Osasco, localizado no km 19,5 da rodovia Raposo Tavares. “Defensores, psicólogos, assistentes sociais e quem mais tiver interesse em participar será bem-vindo. Estar dentro do sistema me acordou pra uma luta que eu já devia ter acordado faz muito tempo.”
Representando a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, construída em junho durante um seminário internacional que discutiu a violência do Estado, Gloria afirmou que a iniciativa é mais uma para enfrentar esse estado de violência.
O movimento secundarista é também um dos alvos preferidos da violência policial. De acordo com uma integrante, que estava na reunião do Centro Cultural São Paulo cercada pela polícia – e da qual 18 participantes estão sendo processados por formação de quadrilha “, a repressão do Estado vem de várias formas. “Estávamos nos organizando de forma autônoma. Tem um amigo que pode pegar 15 anos de prisão, pois a polícia forjou uma barra de ferro na mochila dele.” Com 18 anos recém completados, ela sabe que está na mira da polícia. “Fui sequestrada pela polícia em 2015 e ameaçada de estupro, apanhei pra caralho, estamos na luta e vem o Estado sempre querendo te derrubar.”
De acordo com Samira, psicóloga e integrante do Coletivo Autônomo Herzer, formado por trabalhadores do sócio-educativo, “o que a secundarista traz é a história dos moleques que estão dentro do sistema prisional: apanham da polícia, são sujeitados a fazer diversas coisas muito violentas e agressivas, situações vexatórias, e alguns morrem”, descreveu. “Estamos assistindo genocídio de perto. Trampar com medida educativa é isso: trabalhar com moleque sem RG, sem documento, sem cinema, sem dentista, são pobres e não interessam ao Estado.”
Trabalhadores e usuários da cracolândia também estavam lá para lembrar a situação de deterioração em que se encontram os programas municipais de assistência. “A prefeitura não está dando nem o suporte mínimo. Falta água, falta estrutura, falta tudo. Violência se agravando e o poder público se omite. O programa está findando por dentro.”
Durante o evento, foi exibida a trilogia de vídeos “Terra das Chacinas – 25 anos do Massacre do Carandiru”, da agência Pavio. Ainda deu tempo pra uma apresentação do grupo de hip hop Comunidade Carcerária, formado por ex-detentos do Carandiru. “Fiquei 20 anos no sistema. Carrego o estigma pelo resto da vida, toda as portas são fechadas. Quem sai da prisão não consegue se reintegrar, não consegue caminhar praquilo que foi proposto”, afirma Crick, um dos integrantes do trio.
Mãe de Lucas Miranda da Silva, outro morador do Moinho assassinado pela polícia aos 21 anos, em agosto de 2017, Fernanda apareceu no final do encontro. “Tem um buraco aqui dentro que nunca vai cicatrizar. Vou lutar até o fim por ele.”