Por Júlio Delmanto (Coletivo DAR)
Neste sábado o Brasil ficou menos chapado. E menos inteligente, divertido – contracultural. Neste sábado morreu, aos 79 anos, Luiz Carlos Maciel: do Pasquim, do movimento hippie, do teatro, do jornalismo. Das drogas, da liberdade. “A grande figura de uma nova esquerda brasileira e um homem de sensibilidade fina e lucidez serena”, nas palavras de Caetano Veloso.
Depois de infinitas citações a livros, artigos e entrevistas suas em textos acadêmicos e no meu mestrado, conheci Maciel pessoalmente em agosto de 2015. Ele foi a primeira pessoa que entrevistei em minha pesquisa de doutorado em História, sobre drogas e contracultura – por quem mais eu começaria? Ele já estava com a saúde (física e também financeira) debilitada, não foi uma conversa nem muito fluida nem muito alegre em seu conteúdo. Sensível, no dia seguinte ele me escreveu um e-mail pedindo desculpas por não estar em seu melhor dia. Falei que não tinha problema, óbvio, e ele disse que queria ser meu amigo, que procurou informações sobre mim na internet e viu que somos “irmãos” – ele se referia ao nosso amor (e luta) em comum pela maconha.
Um tempo depois voltamos a nos falar porque Maciel me pediu uma versão editada da entrevista para publicar em um livro. Fiquei felizão e fiz a versão que segue abaixo, que publicamos agora de forma inédita no DAR como forma de homenagear quem pisou nosso caminho antes da gente – sobre o livro eu nunca mais ouvi falar. Registramos assim parte do conteúdo conversado: o conteúdo sentido ali é tão impossível de colocar em palavras como de esquecer. Obrigado, Maciel, queria muito poder tomar outro saquê com você, acender aquele béqui que levei bolado antes de descobrir que você não fumava mais. Descanse em paz – e amor.
Luiz Carlos Maciel: manifesto de uma mente psicodélica
Por Júlio Delmanto
“Você me convida pra um saquê?” Com essa pergunta me aguardava Luiz Carlos Maciel no hall de entrada de seu prédio no Leblon, em uma tarde terrivelmente abafada mas gostosa como só as do Rio são. A entrevista é parte do material oral que tenho coletado para minha pesquisa de doutorado em História, sobre drogas e contracultura no Brasil, e se desenvolveu do outro lado da rua em um restaurante japonês que tem essa que é uma das poucas substâncias que ainda acompanham Maciel depois de uma longa carreira psicotrópica. Até fumar ele parou, e o baseado pronto que sempre levo em ocasiões solenes teve que ficar pra praia que visitei na sequência – de tênis, pra que ninguém desconfiasse de minhas raízes paulistanas.
“Guru da contracultura” é o título mais utilizado pela mídia brasileira para descrever Maciel, que também é invariavelmente rotulado como “hippie” ou “desbundado”. Prestes a completar 78 anos, ele realmente é um cara difícil de descrever a partir de suas atividades, por serem tantas: filósofo, jornalista, roteirista, diretor de teatro, dramaturgo, psiconauta. Por conta do tema de minha investigação, esta última faceta, a do navegador de estados alterados de consciência, era a que mais me interessava, e ao redor disso girou a conversa que em parte transcrevo a seguir e que, como ele mesmo adverte, enfoca apenas um dos muitos Maciéis existentes.
Cunhada pelo psiquiatra britânico Humphry Osmond, em carta ao escritor e amigo Aldous Huxley, a palavra “psicodélico” une os termos gregos “”?”” (psyche, mente) e “δ?λο” (delos, manifestando), ou seja, aquilo “que manifesta a mente”. Ao manifestar sua psicodélica mente, Luiz Carlos Maciel nos oferece um manifesto: à liberdade.
Olhando retrospectivamente, como você define a contracultura no Brasil?
Luiz Carlos Maciel – Sempre me perguntam sobre definição de contracultura, acho essa pergunta muito desnecessária. Eu cada vez mais digo que a contracultura é o nome que a mídia americana deu a uma série de manifestações de jovens artistas e intelectuais nos anos 1960, que não gostavam da universidade e queriam ter a liberdade de cultivar uma cultura livre. Porque a palavra mágica e fundamental desse movimento, que é uma palavra com a qual eu já estava acostumado, é a liberdade, que foi o que me atraiu para o movimento da contracultura. Eu não fui um contraculturista de início, na verdade fui de início um marxista, meu pai era marxista, comunista, e aos doze anos de idade me deu uma cópia do Manifesto Comunista de Marx e Engels pra eu aprender como eram as coisas.
Isso você morava em Porto Alegre?
Morava em Porto Alegre e frequentava um colégio jesuíta, que era uma imposição da minha mãe que, ao contrário do meu pai, que era ateu e comunista, era católica e me botou nesse colégio pra ter uma boa educação. Eu tinha essa contradição dentro de mim e talvez não tenha resolvido até hoje.
Talvez isso explique algumas coisas.
Sim, uma tendência materialista marxista e uma tendência mística, por que não? É tudo da vida, eu aceito, não tenho nada contra, mas o fato é que eu fui marxista um tempo, bem jovem, adolescente, mas deixei de ser assim que encontrei alguma coisa pra me fazer deixar de ser. Que coisa foi essa? Foi a filosofia existencialista, foi Sartre, foi Camus, eu já falei muito sobre isso também. Então eu virei existencialista, e vanguardista na estética. Montei Esperando Godot em Porto Alegre com 19 anos de idade. Eu gostava porque era teatro do absurdo, porque era um teatro que exercia uma liberdade que o teatro tradicional não permitia e ao mesmo tempo tinha uma ligação com esse sentimento do absurdo da vida, da falta de sentido da vida, que era um sentimento chamado existencialista. Então isso tudo confluía no meu espírito. O que a filosofia existencialista mais me pegava era a ideia de liberdade, não conseguia aceitar o determinismo marxista.
Então sua discordância com marxismo era mais filosófica que política.
Era, porque a política tinha que se ajoelhar diante da filosofia. A política é determinista, ela é objetivista, ela é ôntica como dirá Heidegger depois. E eu queria era a liberdade, eu era muito moço então queria liberdade pra tudo, pra fazer o que bem entendesse, como sempre foi minha vocação. E foi assim que eu abracei a contracultura. O que era a contracultura? Como disse Norman Mailer, era o existencialismo norte-americano. Era estabelecer o valor da liberdade como um valor supremo. O que a contracultura dizia era “viva como você quiser”. Quer se fantasiar todo, botar pena na cabeça, botar pena no cú, bote. Você é hippie? Quer fazer a porra que bem entende? Essa organização do mundo é assassina e falsa, a contracultura é o futuro, é a liberdade e a saúde do ser humano. Eu acho isso até hoje, sabe? Então não me arrependo nem por um instante de ter aderido à contracultura, embora não tenha renegado a minha formação política… De vez em quando andei pisando na bola aí, de dizer “ah do ponto de vista da cultura toda política é uma farsa, tanto faz direita ou esquerda”. É verdade, toda política é uma farsa, tanto de direita como de esquerda, mas o fato é que quem manda é a direita, então o inimigo pior é a direita, você não pode chegar e dar essa colher de chá pra direita.
No livro As quatro estações você fala que já era um jovem rebelde, e que quando você tinha lá pelos seus vinte anos tinha essa turma de amigos poetas, que bebiam bastante… Se você já tinha essa afinidade filosófica com a contracultura, nesse período você já tinha também digamos uma afinidade comportamental? Como era essa sua rebeldia?
Não tem dúvida, você já entendeu tudo, das coisas que eu falei você já concluiu e é a pura verdade isso. Claro que nosso sentimento era rebelde, a gente achava bonito ser rebelde, a gente achava bonito enfrentar um poder que era muito superior a nós, entende? E que nós iríamos enfrentar esse poder… Você sabe que a minha geração foi muito vítima dessa atitude?
Da rebeldia você diz?
Foram torturados, foram mortos, esmigalhados, fudidos. Só os que tinham um pouco mais de molejo feito eu que escaparam. Se eles pudessem teriam realizado o que apareceram nos cartazes das recentes manifestações direitistas: tinham que ter matado todos em 64!
Nessa época de jovem rebelde, além do álcool vocês tinham contato com outras drogas?
Ah bebi, todas. Naturalmente quando apareceu a contracultura veio a famosa droga da contracultura, que é a maconha. Que é uma bobagem! Eu fico besta de como conseguiram demonizar a maconha! Erva do diabo, deixa as pessoas loucas… não deixa ninguém louco! Deixa calminho, mole, dá sono, é isso. É uma droga que como diz um amigo meu devia ser oferecida nos hospitais, pra acalmar as pessoas, é uma droga medicinal. E essa droga medicinal foi demonizada pela estupidez do sistema até esse ponto de ser uma droga ilegal, proibida por brucutus estúpidos que são policiais, estupidificados pelos chefes que são mais estúpidos do que eles e que não tomam as responsabilidades das ações estúpidas que eles cometem como regra geral. Quer dizer, infelizmente o nosso esforço por uma sociedade que não fosse mais justa, mais certa, mas que fosse pelo menos um pouco mais psicologicamente saudável, não parece ter dado muito certo.
Você se lembra das suas primeiras experiências com maconha? Foram em Porto Alegre ainda?
Não, nãaaaao… Foram no Rio já… As minhas primeiras experiências com maconha não tiveram a menor importância. Fiquei mais calmo, mais relax… As experiências importantes, essa sim é uma droga poderosa, é o LSD. Essa droga é poderosa. Uma droga transformadora, para a minha geração foi transformador. Maconha não…
Maconha pra você é banal então?
Eu costumo chamar maconha de Coca-Cola. Agora o LSD acho que é uma droga potente, tenho o maior respeito pelo doutor Albert Hoffman, no meu Facebook tenho colocado coisas dele. Essa droga dele foi fundamental. O LSD foi uma revelação, foi um desbunde, eu queria ter um LSD pra botar na boca agora. Se você me disser que tá aqui um LSD eu pego e pá.
Mas voltando ao assunto ainda da sua turma de jovens em Porto Alegre, eles fumavam maconha, era comum nessa época ou era mais restrito?
Não, ninguém fumava, a gente só bebia. Só experimentei no Rio.
E pessoal na sua faculdade na Bahia também não fumava então?
Não sei, não sei, pode ser que fumasse mas eu não tive acesso. Aqui sim eu fumei maconha, aqui me apresentaram ayahuasca, aqui eu conheci as drogas brasileiras. E o ácido também, foi toda uma fase, foi a fase áurea da contracultura que apareceram todas as drogas.
Você lembra da sua primeira experiência com LSD? Foi marcante?
Com ácido? Minha primeira experiência não lembro… Eu me lembro de uma experiência que tive que foi das primeiras, eu estava numa praia do Rio de Janeiro e eu estava tendo uma viagem maravilhosa e vez em quando fazia assim e mergulhava num horror total. Um desespero total. E eu reconheci que aquela maravilha total que tinha sido demonstrada correspondia ao horror total que estava sendo demonstrado. E eu estava assim: o que que eu faço, devo me matar então? Aí o dia tinha baixado e tinha virado noite, eu levantei os olhos pro céu e vi uma procissão de estrelas. E vi uma estrela caindo e um séquito de outras atrás, e elas caminhavam, e elas restituíram a paz e a felicidade. Eu chamei essa estrela de Nossa Senhora. Foi o que aconteceu, aí eu voltei do buraco que eu estava. Porque viagem de ácido tem isso, você tem que estar disposto a encarar, a arriscar, e a mergulhar onde for, porque tudo pode acontecer. Como eu tinha lido o guia do Timothy Leary baseado no livro tibetano dos mortos, que diz que você tem que aceitar tudo porque tudo muda, eu fiz isso. Mesmo quando eu tive no fundo do poço aceitei tudo e tudo mudou.
E seus amigos e seu círculo aqui no Rio, tinha uma cultura do ácido ou era um lance mais individual seu?
Essas experiências foram muito individuais, não tinha muito grupo… Essa é uma história individual minha, não é uma história coletiva. A história coletiva é muito diferente, eles nem sabiam quem eu era.
Eles quem?
As pessoas com quem eu convivia. Seja do Pasquim, seja do teatro.
Mas existia uma cultura de drogas nessa geração?
No Pasquim a única droga era o álcool. Só bebiam, fumar era um escândalo.
E você chegou a ter desavenças ali por isso?
Não porque eu sempre fui esperto, nunca me expus a essas coisas. Eu sou peixe com ascendente em gêmeos, eu sou claro. Eu sou assim com você hoje, mas não sei se serei assim com o Joãozinho das Couves que vai me entrevistar amanhã, não sei. Você apanhou aí um Luiz Carlos Maciel. Mas eu posso ser outras coisas, somos outras coisas. Essa é a liberdade, a liberdade quer dizer indeterminismo absoluto, esse é o significado da liberdade, você não estar determinado por nada. Você só é determinado pelo que você mesmo determina pra você. Se você não determinar, fudeu. A liberdade é indeterminismo, e a liberdade é a essência de tudo. Não há sol, não há deus, não há poder fundamental, não há ser heideggeriano, não há porra nenhuma, o que há é a indeterminação absoluta. E a indeterminação absoluta é absolutamente inspiradora, ela inventa o que ela quiser na hora e da maneria que ela quiser.
Você tava contando que parou de beber mas manteve o saquê, desde jovem você tinha essa preocupação com o autocuidado no uso de drogas ou é algo mais recente?
Olha, sempre tive esse cuidado comigo. Eu não teria passado dez anos no AA sem beber uma gota de álcool se eu não tivesse chegado a conclusão de que se eu continuasse bebendo como eu estava bebendo eu iria morrer, eu ia acabar. Então eu tenho esse cuidado. Uma questão mais complexa pra mim é o que eu devo fazer em relação ao cuidado com as outras pessoas, mas essa questão eu te digo que de uma certa maneira eu já desisti dela, porque as pessoas fazem as coisas mais diversas e se dão bem ou mal pelos mais diferentes motivos, e seria uma pretensão da minha parte absolutamente arbitrária e desautorizada chegar e dizer assim: olha façam isso ou façam aquilo, querem viver não bebam, querem se divertir bebam, eu não sei. A grande conquista eu acho do ser humano em matéria de conhecimento é que eu não sei nada. Que eu saiba alguma coisa pra me manter vivo em pé, quando eu não puder quero sumir, quero ser cremado. Não quero ficar aí uma lápide escrito Luiz Carlos Maciel, que coisa ridícula. Quero pff, sumir. Como diz o Don Juan, de Carlos Castañeda, o ser desaparece como se nunca tivesse existido. Esse é o lance: eu gostaria de desaparecer como se nunca tivesse existido.
Você ainda não me falou sobre ayahuasca, Maciel.
Ah, a ayahuasca… Minha experiencia com ayahuasca eu fiquei espantado com o que eu via nessas visões, tinha uma consistência realística muito maior do que qualquer coisa que já tinha tomado. Realista, dá vontade de tocar, pegar, uma coisa impressionante.
Eram contextos rituais ou em casa?
Em contexto ritual, sempre na União do Vegetal, na UDV. Mas eu achei uma coisa fantástica, como havia uma realidade naquilo. Depois eu bebi ayahuasca no Daime, em casa, de mil jeitos. Não sei se eu vou lhe contar uma história sobre o Daime… mas acho que eu vou contar, porque a minha natureza, que é a da liberdade, é muito irresponsável, essa tendência à liberdade envolve a responsabilidade, mas a minha responsabilidade é muito tênue.
A sua envolve a irresponsabilidade.
Então eu vou te contar pra você ver como eu sou louco, uma bebedeira, uma borracheira como eles chamam, uma borracheira de Daime que eu fiz em casa. Tem um amigo meu que me dá sempre ayahuasca, e ele me trouxe uma época, e eu resolvi beber uma noite, sozinho. Aí começou a coisa, eu me vi assim numa espiral, uma coisa que ia crescendo, crescendo, subindo, subindo, subindo, subindo, até que subia num templo maravilhoso, só uma coisa psicodélica pra explicar, um templo maravilhoso. Aí eu vi aquele templo maravilhoso, to aqui de olho fechado né, aí eu entro naquele templo, tem um lugar que chego, no centro, e aparecem três figuras. Buda, Jesus Cristo e Krishna. Tá bom ou quer mais?!
E aí? Você encarou eles?
Encarei, encarei… Eu ser abençoado por Buda, Jesus Cristo e Krishna ao mesmo tempo é demais né! Eu tenho direito de fazer qualquer coisa!
Você chegou a ter amigos internados, por drogas ou outras coisas?
Muitos, muitos. o mais famoso é o meu querido Rogério Duarte, um dos homens mais inteligentes do Brasil. Já se disse que era o mais inteligente, mas agora eu to disputando com ele!
E você não fuma mais cigarro nem nada?
Não fumo por causa do meu pulmão. Mas ayahuasca… eu to com um pouquinho de ayahuasca em casa, preciso tomar. E LSD: se tiver LSD, pum, na hora!