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Fevereiro 28, 2018

Das cidades possíveis que há no perder-se

Coluna da Isa Bentes*

Certa tarde me meti a andar por uma zona de Coimbra que não conhecia. Desliguei GPS, Google Maps e coisas assim para me permitir perder-me na cidade, entre suas vielas e becos, ladeiras e curtas planagens.

Me deparei num terreiro, que é um quê de praça, um quê trânsito, de permanências e efemeridades urbanas, que chamam de erva. Um certo ar nostálgico permeia esta espaço, que tem um ar melancólico, com uma aura enigmática, e que me chamou para ali quedar-se. Percebi esse chamado, e não hesitei.Sentei-me e me permiti fumar um cigarro para perceber essas sensações que me gritavam coisas ao ouvido, e não conseguia silenciar. Era necessário esperar, e deixar passar aquela inquietação que me tomava.

Observei o lugar: umas cenas de fazer cerâmicas, algumas casas deterioradas, uma igreja miúda, obras inconclusas, árvores sem folhas, bancos desocupados, idosos, e os viventes daquele lugar. As figuras que por ali encontram-se demonstram uma familiaridade com o sítio, trocam palavras inaudíveis entre si, em que meus ouvidos não conseguem captar que mensagens eram aquelas, e nesse momento compreendi que meu tempo ali iria prolongar-se muito mais do que imaginei. Cancelei qualquer compromisso que viesse a ter nas próximas horas; aquele sítio me dizia algo, e eu precisava saber o que era.

Cruzei com uma conhecida, que compartilhou o banco comigo, e uma conversa despretensiosa qualquer que tínhamos rompeu-se por um homem, de estatura mediana, com um ar nervosamente cansado, e falava para os que ali estavam uma indagação sobre a existência de uma necessidade imediata, para aliviar o o que seu corpo desejava de tão imprescindível, com uma certeza que ali seria o sítio possível a ser encontrado. Metadona, dizia o sujeito. Alguém tem metadona? A pergunta repetia-se. Uma vez. Duas vezes, três, quatro. E o silêncio logo se fez quando um outro faz um sinal para aquele pedido de socorro. Em uma transação expedita, a uns passos mais afastado, parece-me que a solução para aquele questionamento foi sanado. Em uma troca mediada por uns tantos euros qualquer, o sujeito indagante desaparece do terreiro. Aquela inquietação começa a achar respostas, ou formular mais questões. No passar do tempo, outros sujeitos e sujeitas começam a movimentar-se no espaço, cada qual a procura de algo para pôr para dentro de si, seja através das fumaças, narinas ou seringas.

Crédito: Lucas C. Brandão

Crédito: Lucas C. Brandão

A cena desaparece, as conversas amiúdes dissipam-se, ou localizam-se nos cantos das esquinas. O sítio começa a esvaziar-se. Já ia eu em tantos cigarros, faminta de que as peripécias se repetissem, mas foram escasseando. O sol ia ao longe, já não esquentava aquele dia de inverno, e era hora de partir.

Segui e deparei-me com uma placa que dizia qualquer coisa sobre recuperação urbana, revitalização do espaço, tantos euros gastos, responsáveis técnicos, construtoras, logos do poder público local, datas e prazos, promessas e projetos. Ao longe, duas agentes de segurança se prontificavam para qualquer emergência que ocorresse e seu auxílio fosse solicitado. Segui em direção à praça, para sentar em um café e buscar agora perceber que sítio era aquele, com todos os aparatos tecnológicos disponíveis que não nos deixam mais perder-se ativado, localizado, encontrado. Nos jornais encontrei palavras de salvação, intento do poder público civilizar os espaços, garantir seguranças, dar vida ao novo lugar que renasce de umas cinzas deixadas por um passado funesto e sombrio. Um lugar para identificar a cidade, conciliar passado e futuro, patrimonializar a humanidade e humanizar o patrimônio.

O que era estacionamento, tornou-se um espaço de convivência. De lugar de carros ao lugar de pessoas, com pessoas e para pessoas. Aos transeuntes efêmeros, aos socialmente marginalizados, aos que ali permanecem, assistem e intervém [in]conscientemente atônitos na paisagem transformada, sujeitada a novas dinâmicas que ressignificam as práticas e as relações sociais que ali acontecem, e que fazem desse acontecer possibilidades infindas de outros cenários.

*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com

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