Coluna da Isa Bentes*
No último dia 12 de abril aconteceu, no auditório do campus universitário do Instituto Piaget de Viseu, um seminário promovido pelo Check!n Free Mind, um projeto português que cria espaços em festas para informar e apoiar o que eles denominam de “gestão dos prazeres e riscos”.
A tônica do seminário foi a dimensão de uma política que trata de realizar testagens de substâncias psicoativas para conhecer sua pureza e, portanto, dimensionar os danos possíveis que podem vir a acontecer, assim como sugerir práticas de consumo seguras. Este serviço de drug-checking existe há 12 anos em Portugal, tendo a cidade do Porto como pioneira nos testes.
É a primeira vez que participo de um seminário sobre drogas genuinamente desde que cheguei a Portugal. Não posso deixar de falar do meu espanto quando penso nos debates com relação ao Brasil, e tenho cada vez mais certeza de que estamos defendendo o óbvio há tempos. Mas também percebo que temos uma visão extremamente idealizada sobre as políticas voltadas para a atenção de comportamentos aditivos que são implementadas aqui em Portugal. Por mais que tenha sido pioneiro, a sensação é que parou-se no tempo em relação aos avanços necessários que se exige de tais políticas de descriminalização. Além da exigência da expansão de grupos de drug-checking que operem para além de contextos festivos, as salas de consumo seguro têm sido outra pauta relevante e presente no debate luso sobre drogas.
A mesa de abertura, que contou com representantes institucionais do Instituto Piaget, APDES, Câmara Municipal e SICAD, em nenhum momento sequer ouviu-se expressões sobre a volta ou a necessidade da manutenção da repressão, segurança pública, militarização. Não. Esse debate, ao que parece, no trato das drogas, já foi superado há tempos e está guardado nos fundos da gaveta da inquisição da proibição. Fala-se em direitos humanos e saúde, expansão da autonomia e do cuidado com os usuários e usuárias, compreendendo o uso de drogas como algo pertencente ao campo do desenvolvimento pessoal do sujeito.
Algo a ser destacado nos serviços de drug-checking foram os resultados apresentados pelos grupos do Check!n, de Portugal, e do Energy Control, da Espanha, sobre as testagens realizadas nas substâncias psicoativas. Partindo de uma explicação metodológica e procedimental acerca das testagens, foi mostrado que os adulterantes presentes nas drogas submetidas às testagens eram de níveis elevadíssimos, sendo por vezes indetectável a substância que inicialmente fora pensada ser. O caso mais exemplar é o da cocaína, que, dentre anfetaminas e anestésicos em geral, sua composição era ínfima em uma nuance de substâncias de outras naturezas presentes. Isso aponta para uma ideia de que mesmo em contextos de descriminalização não há segurança na composição química das drogas, compreendendo que só a regulamentação de toda a cadeia produtiva pode resolver tal questão.
Na audição pública, ocorrida em dezembro 2017 no parlamento português, uma questão colocada reforça essa ideia, em que foi dito que “a descriminalização resolveu em parte o problema apenas do sistema carcerário, mas o problema que atinge diretamente o usuário ou usuária ficou deixado no campo das expectativas”.
Entretanto, projetos como estes expõe a fragilidade do discurso sobre a natureza das afirmativas de que as drogas matam: em um sistema de descontrole, o que mata é o desconhecimento que se tem sobre o que se está consumindo. É uma caixa de pandora a cada pastilha, papel ou pó que se coloca pra dentro do organismo, e que a estratégia da gestão dos prazeres implicados nos serviços de drug-checking são gretas abertas dentro do proibicionismo comprometidos de fato com a atenção à saúde e aos cuidados dos usuários e usuárias de drogas.
Acabei por integrar o último debate, sobre gênero e drogas, onde compartilhei a mesa com duas companheiras que pesquisaram sobre mulheres em contextos da noite, em perspectivas que colocavam por um lado a incorporação do discurso que culpabiliza as mulheres pelas violências sofridas por elas próprias e, por outro lado, o momento da noite e do empoderamento vivenciado por elas nos contextos festivos. Me coube trazer para a comunicação a dimensão do feminismo como estratégia de cuidado e redução de danos, acúmulo este feito pelo Bloc Feminista da Marcha da Maconha de São Paulo.
Compreender como os danos da proibição recaem sobre as mulheres é chave da herança histórica que doutrinou, e doutrina, nossos corpos e comportamentos, e o feminismo é isso: é entendido como nosso meio de sobrevivência coletiva e de resistência.
*Isabela Bentes é socióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília e integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre psicoativos. E-mail: isa.bentes@gmail.com