Por Gabi Moncau, originalmente publicado naRevista Amazonas
Chega um vídeo num grupo de whatsapp de mulheres. O cara do vídeo, pouco pretensioso, anuncia que tem “a única solução pra atual situação carcerária do Brasil”. Já que as cadeias estão superlotadas, diz ele, o que devia fazer era “botar esses vagabundo tudinho pra trabalhar” durante 12 horas seguidas e aí troca, ficando com metade dos presos ocupando as celas por vez. Se não quiserem trabalhar, que fiquem sem comer, sem visita e sem remédio. As opiniões no grupo de whatsapp se dividiram.
Entre as que concordavam com a proposta do vídeo, uma contou que tinha se lascado de trabalhar pra comprar um celular melhorzinho, acordou às 4h da manhã pra ir pro serviço e levaram o aparelho novinho. Isso é que não devia ser aceitável, argumentou. Ao invés de defender os direitos dos presos, deviam pensar é nos direitos que nós mulheres não temos, de andar pela rua de noite sem se preocupar, falou outra.
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De fato, as duas têm razão: é horrível ser assaltada e é inaceitável que a gente, por ser mulher, não possa andar de boa por onde a gente quiser. Vamo continuar o raciocínio” Se o moleque que levou o celular de dona Maria for preso, o que acontece? Dona Maria vai poder deixar de pagar as prestações do celular roubado? Dona Maria vai passar a se sentir segura na cidade? Dona Maria vai ter o celular novinho que ela tava querendo?
O ponto que eu tô querendo chegar é que o sistema penal, a punição por meio da cadeia, não funciona para resolver nossos conflitos, nossas dores e nossas situações de injustiça. Mesmo se a gente deixar de lado o detalhe bááásico de que as pessoas precisam ser tratadas como seres humanos e que as prisões são máquinas de moer gente, mesmo se a gente olhar a coisa do ponto de vista pragmático da vítima. Não funciona.
Vamos partir logo pros exemplos escabrosos que sempre vêm nessas discussões. “E se você, sua filha ou sua mãe forem estupradas?!”. Do jeito que a coisa funciona, depois de sofrer essa violência brutal, vão me colocar na frente de um juiz. Lá, eu não vou falar nada. O juiz vai resolver meu problema decretando um tempo completamente aleatório para que o agressor fique preso. Quando ele sair da prisão, nada garante que ele não vai me procurar ou que não vai cometer essa violência com outra pessoa. Nesse processo, não sou escutada, muito menos cuidada. Não existe qualquer iniciativa para evitar que violências como essa deixem de se repetir. Comigo, fica um pedaço de papel e no máximo um tapinha nas costas. Isso é justiça?
A verdade é que se cadeia funcionasse para resolver nossos problemas o Brasil taria um arraso. Não sei bem da onde tiraram a ideia de que o Brasil é o país da impunidade. Ou melhor, sei da onde tiraram a ideia, têm muitos interesses por trás da noção de que a solução pros nossos problemas é mais punição, mais presídio, mais polícia e etc. O que eu não sei muito bem é como é que essa ideia pegou. Como é que pode um país ao mesmo tempo “ter muito impunidade” e ter a terceira maior população carcerária do mundo?
Aliás, o Brasil tá em terceiro lugar entre os países do mundo que mais encarceram, mas tem ambição de campeão. Entre 2006 e 2017, apopulação carcerária aumentou 480%. Em junho de 2016 o número de pessoas presas no Brasil chegou a 726.712. E essa quantidade surreal de pessoas atrás das grades não tem feito ninguém do lado de fora do muro se sentir mais seguro.
Ainda que as prisões não resolvam nossos conflitos, a gente internaliza a ideia de um lugar onde colocar “as pessoas ruins”. Parece que essa noção poupa a gente de fazer discussões fundamentais. Aquela “pessoa é ruim” por quê? Por que a pessoa fez aquilo? O que acontece na nossa sociedade que de alguma forma permite atos de violência como, pra seguir no exemplo acima, estupros?
A própria existência das prisões parece tomar o lugar da existência dessas discussões, que são tão necessárias pra impedir essas condutas. Ao invés de escutar quem sofreu a violência e pensar junto com ela como reparar e cuidar de seu sofrimento; ao invés de elaborar meios para responsabilizar a pessoa que fez aquilo; ao invés de discutir como aquela ação aparentemente individual muitas vezes está calcada em condições sócio-históricas nas quais a gente precisa interferir-não. Joga a pessoa ali naquela cela. Justiça foi feita.
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Sabe quando alguém inventa uma mentira e repete ela tanto, tanto, que a coisa começa a ser introjetada e vai quase virando verdade? Pois então, a mentira que sustenta a guerra às drogas é uma dessas.
Todo mundo sabe que o fato de algumas drogas serem proibidas não impede as pessoas que querem, de usá-las.
Todo mundo sabe que algumas drogas que são lícitas, como o tabaco e o álcool, são de modo geral mais prejudiciais para a saúde do que outras que são ilegais, como a maconha.
Todo mundo sabe que, no caso de alguém que faz uso problemático de alguma substância, não é estigmatizando ou dando tapa na cara que ela vai ser cuidada.
Todo mundo sabe que não é possível fazer uma guerra contra substâncias, que a guerra é mesmo contra pessoas.
Todo mundo sabe que o alvo dessa guerra não são os donos dos helicópteros de cocaína que circulam pelos corredores do planalto em Brasília, e sim moleques negros de chinelo no pé.
Pois é, apesar de todo mundo saber muito bem disso tudo-e aí é que tá a contradição-segue enraizada a mentira de que têm algumas drogas aí que são más e que por isso é melhor proibir. Se o critério pra criminalizar condutas fosse que elas fazem mal à saúde, deveria ser crime passar o dia todo no face, comer fritura, trabalhar demais-deixo a leitora ou o leitor seguir completando aqui a lista com suas “coisas-que-fazem-mal” favoritas.
Não, a saúde não tem nada a ver com a guerra às drogas. Não pegaria muito bem os governos dizerem que estão em guerra contra os pobres. Que a guerra não tem como meta chegar ao fim, conquistar uma região, ou alcançar, depois de tudo, a paz. Que a ideia dessa guerra é que ela se transforme quase que numa forma de existência, no “normal”. Não, não pegaria bem dizer que a ideia é gerir essas populações com base no controle, no sangue, na grade. Não, é melhor dizer que a guerra é contra o tráfico.
A proibição das drogas é omaior motivo pelo qual as pessoas vão presas no Brasil. De toda a população carcerária, 30% está respondendo por tráfico.No caso das mulheres, o número chega a 62%. Peraí, fica pior: pela nossa Lei de Drogas (11.343/06), quem é acusado de tráfico não pode esperar o julgamento em liberdade. Por isso que quase metade das pessoas atrás das grades no Brasil-40%!-são presas provisórias.
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A prisão atua como uma instituição que consolida a recusa do Estado em enfrentar os problemas sociais mais latentes. Mais do que não oferecer as políticas sociais que supostamente deveria oferecer-como saúde, moradia e educação-o Estado encarcera justamente a população mais afetada pela ausência dessas políticas. Encarcera a população, por sinal, com mais motivos para insurgir contra a forma capitalista e racista que a nossa sociedade funciona. E a guerra às drogas vem para legitimar, para dar uma boa desculpa, ao genocídio e ao encarceramento em massa.
Bom, o Estado-por meio de qualquer governante que seja-não imagino mesmo que enfrente os problemas sociais latentes. Não me surpreende que, no lugar disso, claro, os governos reforcem a lógica punitiva, repressiva e penal. Agora e nós, que estamos na luta, no sonho por outro mundo? Precisamos fazer o exercício de imaginar um mundo sem prisões, de pensar em outras perspectivas de justiça.
Não é à toa que o abolicionismo penal-como se convencionou chamar essa ideia de acabar com o sistema penal-leva o mesmo nome do movimento que lutou pela abolição da escravidão.
Angela Davis, no livro “A liberdade é uma luta constante”, diz que no período do fim da escravidão muitos alertavam para o fato de que somente a remoção das correntes não daria conta de resolver todos os problemas criados pela instituição da escravidão. “Se não fossem desenvolvidas instituições que permitissem a incorporação das pessoas antes escravizadas em uma sociedade democrática, a escravidão não seria abolida”, aponta: “Em certo sentido, o que estamos defendendo é que a luta pelo abolicionismo prisional segue a luta pela abolição da escravatura do século XIX”. Das pessoas encarceradas no Brasil, a maioria é de jovens entre 18 e 29 anos. Entre eles, 64% são negros.
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Fazia calor em Chiapas, no México, mas todas que participavam da roda de conversa se amontoaram pra ouvir as palavras baixinhas daquela mulher indígena da Guatemala. Foi em março, durante o Primeiro Encontro Internacional das Mulheres que Lutam, convocado pelas mulheres do Exército Zapatista de Libertação de Libertação Nacional (EZLN) e que reuniu umas seis mil mulheres de 35 países.
Naquela atividade Josefa apresentava o seu coletivo: Actoras en Cambio. Elas se organizaram para pensar em outra justiça, trabalhando com vítimas da violência sexual que foi usada como arma de guerra contra a população maia na Guatemala em 1982. “Cadeia pra mim não é justiça porque o cara vai para a prisão mas eu sigo doente”, explicou ela. “Mas então o que é justiça pra você?”, alguém perguntou. “Justiça pra mim é alguém que me escute. Justiça é alguém que me ajude a me curar. Justiça é criar condições de não repetição”.