A Perifacon foi o sonho de alguns meninos e meninas da quebrada, que sentiam que esse era o sonho de mais alguns, mas não imaginavam que era o de tantos.
Por Juliana Paula
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Talvez voce não saiba (apesar que a notícia viralizou geral!), mas nesse ultimo domingo aconteceu algo no Capão Redondo que nunca antes havia acontecido nem lá, nem em outra parte do mundo. Não foi chacina, não foi tragédia, não foi grande apreensão de drogas e nenhuma das notícias que frequentemente vemos associadas aos bairros periféricos. O que aconteceu no Capão esse domingo foi a Perifacon: a primeira ComicCon da favela!
Q?!
Pois é. Na cidade de São Paulo, uma das maiores capitais do globo, que abriga anualmente a CCXP (ComicCon Experience), que aqui se tornou o maior evento geek do mundo, no ultimo domingo aconteceu o que todos da quebrada desejavam, sonhavam e, certamente, precisavam: uma ComicCon totalmente free!
A Perifacon nasceu do sonho, do projeto e, principalmente, do árduo trabalho de um pequeno grupo de jovens nascidos na quebrada, em sua maioria não brancos, que, assim como muitos outros jovens de periferia, cresceram embalados pela cultura pop, nerd e geek, como HQs, games, filmes, seriados, RPGs e tantas outras atividades que compõe esse universo e as nossas vidas.
Você pode até não se considerar uma pessoa nerd/geek, assim como eu também não me considero, mas é impossível negar que todos sofremos alguma influência desse universo, que tem tudo a ver com infância, adolescência, fantasia e diversão. Quem nunca leu uma HQ e desejou ter super poderes? Ou ainda desenhou ou tentou criar a fantasia do seu superheroi preferido? Quantos marmanjos gastando o que não tem pra comprar um game, rpg ou jogo de tabuleiro que adora jogar!
Gastando o que não tem. É aí que está o X da questão.
São Paulo sedia a maior ComicCon do mundo, e a cada ano ela fica mais cara e menos acessível pros de baixo. Eu mesma, participei da primeira edição da CCXP (em 2014) e adorei. Mas de lá pra cá os valores de ingressos foram ficando a cada ano mais altos, esse ano eles variam entre R$110,00 (ingresso social, mediante doação de livro, para o dia mais barato, que é a quinta feira) até inacreditáveis R$ 8.000,00 (ingresso na modalidade Full Experience – full mesmo ficam os bolsos da organização do evento né) (https://www.ccxp.com.br/).
Com preços assim tão altos, fica difícil imaginar um jovem, uma criança, ou até mesmo um adulto que mora na quebrada tendo condições de priorizar a participação em um evento como esse, considerando as tantas outras necessidades da vida.
Outra questão é o acesso: A CCXP ocorre anualmente na São Paulo Expo, que fica próxima ao metrô Jabaquara e da rodovia dos Imigrantes. Você pode pensar “se é perto do metrô, é acessível”. É. E não é. Isso porque o preço da passagem tá alto, nosso salário tá baixo, boa parte das quebradas não tem fácil acesso ao metro, sendo necessário pegar ao menos um ônibus pra chegar até o metrô mais próximo e, muitas vezes, esse ônibus é intermunicipal e não tem sequer integração pra reduzir um pouco o gasto.
Uma pessoa que mora no Capão Redondo, por exemplo, pode precisar pegar 2 onibus e 2 metrôs, vai gastar quase R$30,00 com ida e volta e ainda levar cerca de 2 horas pra chegar ao local e outras duas pra voltar. Se morar em regiões com menos acesso ainda ao metrô, como Embu das Artes, por exemplo, pode levar até 3 horas pra chegar ao evento e gastar R$40,00 com o deslocamento.
Ainda tem o gasto com alimentação e as coisas a venda na feira. Somando tudo isso e subtraindo do salário de um pai de família de periferia, a conta simplesmente não fecha, fica impossível pra uma família de quebrada colar em peso num evento assim.
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O que eu vivi nesse ultimo domingo
Sou amiga de boa parte da equipe que produziu o evento (aliás uma “gigantesca” equipe de 7 pessoas na casa dos vinte e poucos anos) e fui convidada por eles pra apresentar a Perifacon junto com minha amiga Rogério. Esse texto é mais pra mim do que pra vocês, pois a experiência que vivemos na primeira Perifacon foi de tal maneira extasiante, que eu não estou conseguindo segura-la aqui dentro da minha cabeça e do meu coração. Perdoem se faltar coerência, sentido ou qualquer outra dessas coisas mais lógicas e racionais nesse texto, pois escrevo transbordando emoção.
O dia iniciava e já se formava uma pequena fila em frente à Fábrica de Cultura do Capão Redondo, local que sediou o evento. Muito rapidamente essa fila foi crescendo e crescendo e às 11h, quando os portões finalmente foram abertos, já havia um número significativo de pessoas em fila, extremamente ansiosas e nitidamente animadas.
Fiz um vídeo da abertura dos portões, onde dá pra ver dois molequinhos, de uns 7 ou 8 anos que entram correndo passando na frente de todos que esperavam, haha! Esses maravilhosos foram os primeiros visitantes da primeira ComicCon da periferia! E eles foram os primeiros de muitos, muitas, uma multidão.
Estima-se que cerca de 4 mil pessoas acessaram as dependências da Fabrica e visitaram a Perifacon nesse domingo. Além desses, uma parte da fila quilométrica, que durou o dia todo, dobrando o quarteirão, infelizmente ficou de fora, mesmo a entrada tendo sido interrompida por quase uma hora, na tentativa de ganhar mais espaço interno, que permitisse a entrada de mais pessoas.
Só que quem entrava na Perifacon não queria mais sair, com uma programação mais completa que muita feira grande e cara por aí, que envolvia games, autógrafos, mesas de debate, sala multiuso, exposições e venda de produções da quebrada, rpg e muito mais, com direito a trono de Game ofThrones, apresentações ao vivo de bandas e dançarinos de KPop. A Perifacon foi marcada pela presença de crianças e de famílias inteiras de fãs da cultura nerd. Foi lindo de se ver a molecada de vila sentada no trono de GoT, tirando foto com ídolos como KL Jay e Rashid, comendo um lanche a preço acessível e pirando nos cosplays!
Eu mesma fiz um cosplay pela primeira vez na vida: Estrelinha, a menina super poderosa negra. E foi emocionante ver a recepção das pessoas, a alegria em se ver representada no quadrinho que curte. Não foram poucas as meninas que me pediram pra tirar fotos e que gritavam “mãe, é a menina super poderosa negra!”
Os cosplays aliás, foram um show a parte no evento. Lembro que, no passado, surgiu na internet a expressão “cospobre” que era uma forma pejorativa de nomear os “cosplays feios”, geralmente que não eram comprados em lojas caras ou que eram feitos em casa, com material mais barato. Na perifacon isso também ficou pra trás, pois o evento trouxe todo tipo de cosplay, desde os mais simples, como camisetas e assessórios, como os mais complexos e bem elaborados. E teve espaço pra todo mundo brilhar!
Rolou até um concurso de cosplay e quem ganhou foi, não por acidente, o Pantera Negra, que simplesmente levou o público ao delírio. Pra fechar o evento rolou rock”nroll dos anos 70, 80 e 90 ao vivo e até o último minuto as atividades estavam lotadas.
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Por que a Perifacon é tão importante
A Perifacon é importante porque mostrou que a quebrada é nerd sim, consome conteúdo nerd sim e, mais que isso, produz seu próprio conteúdo, de muita qualidade, dentro desse segmento.
A Perifacon é importante porque foi uma grande demonstração do sentido de Ubuntu (o nós por nós, tão em moda nesses dias de “ninguém solta a mão de ninguém”) pois provou que dá pra fazer, com muita qualidade, um evento de arte e cultura na quebrada, pelos de baixo e para os de baixo.
A Perifacon é importante pra mostrar que as pessoas da quebrada prestigiam sim esse tipo de evento, mesmo dentro dessa lógica de estudar para trabalhar e ganhar a vida, onde a cultura é desvalorizada por trazer pouco retorno financeiro, mesmo que insistam em dizer que pessoas pobres não tem cultura e não se interessam pela arte.
A Perifacon é importante politicamente, pois reintegra a posse e repara a dívida histórica que os eventos de cultura pop tem com a quebrada.
A Perifacon é importante porque uniu aquilo que o capital separou.
Por fim quero fechar dizendo que a Perifacon foi um sonho de alguns, que depois descobriram que eram muitos, milhares. Na saída do evento, já nos momentos finais, foi colocado um painel com um grafite de Martin Luther King, onde estava escrito “Todos temos um sonho”. Não poderia ser um fechamento mais adequado.
A Perifacon foi o sonho de alguns meninos e meninas da quebrada, que sentiam que esse era o sonho de mais alguns, mas não imaginavam que era o de tantos. Ela é um ótimo exemplo dessa utopia necessária, que move as lutas e o ultimo domingo mais parecia um delírio coletivo, de tão bom.
Pra mim, que milito contra a guerra às drogas e o proibicionismo, que construo diariamente com os de baixo e pelos de baixo, foi um marco ter podido apresentar esse evento, poder assistir de um lugar privilegiado a revolução que se operava nos sorrisos, nas famílias reunidas, numa maioria de participantes não branca, nas crianças, encantadas, pedindo fotos com seus personagens favoritos. Esse sonho é uma realidade que marcou a vida de muitas pessoas, basta olhar o evento do Facebook, com diversas mensagens de agradecimento e incentivo, pessoas compartilhando a alegria de ter conseguido participar de uma ComicCon pela primeira vez na vida.
Arte e cultura são revolucionárias. A Perifacon é uma revolução. E um aviso aos navegantes: esse foi só começo.