Por Luiz Fernando Petty, do Coletivo DAR
Durante o último mês de junho acompanhamos um levante de manifestações antirracistas nos Estados Unidos. A onda de protestos que acontecem em meio a pandemia do novo coronavírus e que inspiraram e se espalharam mundo afora, começa depois de George Floyd, um homem negro, ser asfixiado por ao menos 8 minutos pelo joelho de um policial branco, no dia 25 de maio, em Minneapolis, estado de Minnesota. O fato que foi gravado e sequer constrangeu o policial, rodou os quatro cantos e foi a gota d’água para uma mobilização radical de massas que já abala estruturas de um sistema político, econômico e social que não apenas separa raças, mas que promove um verdadeiro genocídio contra pessoas de pele negra Crescem, principalmente entre os estadunidenses, os questionamentos sobre o papel e a necessidade de uma polícia como nós conhecemos hoje, trazendo à tona debates sobre abolicionismo penal, formas alternativas pra segurança da comunidade e antirracismo, assim como o da política de guerra às drogas. Durante as manifestações, unidos aos gritos “fuck the police”, é possível ver cartazes com os dizeres “fuck 12”, em alusão à “Police Drug Unit”, polícia antidroga estadunidense: responsável, assim como no Brasil, por grande parte dos encarceramentos e assassinatos da população negra.
É visível a relação entre as políticas de proibições de drogas e a violência e controle de populações marginalizadas. Podemos dizer que a cada droga proibida em um lugar do mundo, um grupo indesejado é associado a ela, seja pelo consumo ou pela distribuição. No próprio EUA em questão, podemos exemplificar a proibição do álcool com o controle da população irlandesa, do ópio aos chineses, da cocaína aos negros e da maconha aos latinos. Muito se engana quem acredita no fracasso da guerra às drogas. Nunca se tratou de proibir drogas, nunca houve tanta variedade e circulação como a que existe atualmente mundo afora, mas sim de uma justificativa para controlar e massacrar principalmente as populações negras e estrangeiras. Portanto, abordo aqui as raízes históricas do proibicionismo brasileiro para mostrar a relação direta entre a luta pela legalização das drogas e a pauta antirracista.
Eu gosto de relembrar uma frase da amiga Thamires Regina, em que ela diz que, mesmo antes da consolidação da política internacional de proibição às drogas, o Brasil já tinha um jeito bem tupiniquim de lidar com a questão. Passadas algumas transformações, essa maneira de proibir e a quem atinge essa proibição, perduram até hoje. No Rio de Janeiro de 1830, então capital do Brasil, vigorou a primeira “lei” antidrogas, um código de postura que proibia o uso e a venda de “Pito de Pango” (como era denominado maconha à época). Previa de três dias de prisão para “escravos e demais pessoas que fizessem o uso e multa de vinte mil réis a quem distribuísse”[1]. É importante ressaltar que o Brasil tinha se tornado independente apenas 8 anos antes, e que a maior população negra fora da continente africano já se concentrava na capital do país, sendo a maior parte dela ainda escravizada. Portanto, uma das primeiras “leis” do Brasil independente, que foi copiada na década de 1870 pelas cidades de Santos e Campinas, foi uma voltada exclusivamente para a população negra que habitava o país, demonstrando que, já naquela época, havia muita preocupação em se controlar essa população, mesmo ainda escravizada, criminalizando parte de sua cultura, atrelando a vadiagem e criminalidade.
Com a abolição da escravidão e o advento da República, a preocupação das elites brancas se voltou em viabilizar um projeto de progresso para a nação. Esse projeto não incluía a população recém liberta, que era mais ou menos dois terços da população total da época, muito menos seus costumes, tidos como atrasados, animalescos e bestializados. A abolição da escravidão em nenhum momento foi uma medida humanista, de entendimento de igualdade entre as raças, mas uma imposição britânica ao seu projeto liberal – uma lógica simples: quanto mais consumidores, mais geração de riqueza e progresso. E se as pessoas escravizadas não são livres, logo, não são consumidores. Só que no Brasil a abolição foi imposta, não foi uma conclusão das elites para promover esse progresso. Os escravos libertos não viraram consumidores, pelo contrário: viraram um problema para as elites no alcance desse progresso.
“Na verdade, o contexto histórico em que se deu a adoção do conceito das “classes perigosas” no Brasil fez com que, desde o início, os negros se tornassem os suspeitos preferenciais. Na discussão sobre a ociosidade em 1888, a principal dificuldade dos deputados era imaginar como seria possível garantir a organização do mundo do trabalho sem o recurso de política de domínios características dos cativeiros.- Nesse contexto, para estabelecer uma nova ordem na organização das relações de trabalho, “a “teoria” da suspeição generalizada passou a fundamentar a invenção de uma estratégia de repressão fora dos limites da unidade produtiva. Se não era mais viável acorrentar o produtor ao local de trabalho, ainda restava amputar-lhe a possibilidade de não estar regularmente naquele lugar. Daí o porquê, em nosso século, de a questão da manutenção da “ordem” ser percebida como algo pertencente à esfera do poder público e suas instituições específicas de controle – polícia, carteira de identidade, carteira de trabalho, etc.”[2].
Outro elemento que se somou nessa cruzada contra os saberes e a cultura negra foi a da medicina científica como monopólio da saúde e da cura. Qualquer noção para além dos limites que ela estabelecia se tornava obstáculo ao progresso, o que justificou a perseguição ao curandeirismo e qualquer saber tradicional de cura e bem estar de origem indígenas e africanos. A noção de higiene e de uma pessoa saudável se contrapunha a ritos espirituais e culturas tradicionais afrodescendentes, novamente associados a atraso, sujeira, animalizando seus integrantes e atestando aquelas manifestações como um perigo ao futuro da raça e da nação.
Nesse contexto em que as elites brancas brasileiras se banhavam do cientificismo racista do italiano Lombroso, que defendia a inferioridade dos negros através de pesquisas super enviesadas, não apenas as religiões de matrizes africanas passam a ser vistas como degeneração da raça e um obstáculo ao progresso, mas qualquer elemento da cultura afrodescendente passa a ser entendido como tal. Daí por diante passa-se a proibir rodas de samba, jogo da capoeira, todas ligadas à vadiagem. As pessoas negras passam a ser entendidas como quem tem já no nascimento uma propensão para a criminalidade.
Não à toa, no primeiro congresso organizado internacionalmente para se discutir a questão do uso de substâncias psicoativas, em dezembro de 1915, o Brasil é representado por delegados que introduzem a questão dos perigos da maconha, planta que segundo Rodrigues Dória (médico membro da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia da Bahia), tinha efeitos mais nocivos que o ópio e fora trazida da África pelos escravos numa espécie de vingança da raça subjugada pelos três séculos de cativeiro e trabalho forçado.[3] Não se sabe ao certo como a cannabis chegou ao Brasil, porém, é pouco provável que tenha vindo de escravos vindos da África, primeiro porque não sabiam que estavam vindo para o Brasil, e segundo porque até metade do século XVIII eles eram trazidos nus, sem qualquer tipo de bagagem.
Assim, logo que se inicia a campanha internacional contra as drogas, o Brasil se torna um protagonista em colocar a maconha na lista de entorpecentes, controlando seu uso a partir do decreto número 20.930 de 1932, que incluía a “Cannabis Indica”, e seis anos mais tarde, sua variação, “Cannabis Sativa”. Essa iniciativa tinha em vista não apenas perseguir as populações negras, mas consolidar o monopólio da medicina científica e do catolicismo, já que era comum o uso de cannabis no cuidado, na cura e na espiritualidade dos clubes diambistas, e como parte dos ritos das religiões de matrizes africanas, como o Candomblé e a Umbanda.
É importante ressaltar que, durante esse processo, não apenas a maconha passa a configurar na lista de substâncias proibidas, mas a cocaína, o ópio, o haxixe, etc. também entram na lista, com uma parcela de seus usuários e distribuidores perseguidos. Associados ao ócio e aos cabarés, estrangeiros e prostitutas também passam a ser perseguidos com a justificativa de combate a proliferação desses vícios. Na época, a polícia designada para essa tarefa era a polícia de costumes, a mesma que tratava dos jogos de azar, de homossexualidade e da vadiagem.
As décadas seguintes serviram como efetivação dessa política. Entre 1930 e 1950, houve um verdadeiro “boom” de apreensões de maconha. Era quase impossível não ter, durante esse período, um dia sequer sem uma matéria no jornal estampando uma pessoa negra e relacionada ao uso, ou ao tráfico daquela substância. Nos anos de 1950, foi organizada e publicada uma coletânea de artigos científicos defendendo os perigos proferidos por Rodrigues Dória em 1915. Assim, as noções entre drogas e negros, drogas e periferia, negros e criminalidade passam a se fundir, na construção de um imaginário que tenta tornar “normal” uma pessoa negra sendo presa ou perdendo a vida em um “confronto” com a polícia envolvendo a busca ou apreensão de drogas.
De lá para cá, essa ideia racista de “classes perigosas” vira regra. Em 2006, a última alteração na lei de drogas se parecia ser um passo já que deixava de penalizar usuário com prisão, na verdade acabou acentuando a guerra contra as periferias e principalmente contra a população negra que ali reside. De acordo com a lei, quem determina se a droga apreendida é para uso ou venda é o policial que deu o flagrante e o juiz, e o elemento que passa a determinar essa diferenciação, segundo a própria lei, é o contexto. Ou seja, uma sociedade em que, desde o fim da escravidão, associa pessoas de pele negra à criminalidade hoje lida com a questão de diferenciação de venda e uso a partir do que julga ser um contexto de tráfico para um policial. O resultado disso parece meio óbvio, mas transformando em dados, houve um aumento de 400% das prisões só em São Paulo, com o aumento também do uso, e apenas com relação à condenação por posse de maconha no estado, a média de quantidade entre as pessoas negras condenadas é de 136,5g, enquanto que a de brancas é de 482,4g.
A história da proibição de drogas se cruza com a história do racismo que constituiu o Brasil. Mesmo antes das proibições que se iniciaram na segunda década do século XX, vários elementos desta política já vigoravam no país, sempre no sentido de criminalizar e justificar o encarceramento e o genocídio da população negra. Portanto, a política de guerra às drogas é um completo sucesso no que ela se propõe a ser, que é de controle da população negra no Brasil e legitimação das ações genocidas do Estado contra essa população. Logo, é impossível pensar numa luta pela legalização das drogas, ou em um antiproibicionismo que não inclua nessa própria luta o antirracismo como questão central. Dos escravos que pitavam o pango em 1830 no Rio de Janeiro ao aviãozinho que vende uma paranga na esquina da tua quebrada, não existe proibição sem pessoas negras pagando a conta. Não deve existir legalização, portanto, sem essa mesma população viva e livre.
Pela legalização da vida, vidas negras importam!
[1] DÓRIA, Rodrigues. “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício.” In: MACONHA. Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958, 2ª edição, p. 14.
[2] CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 25
[3] DÓRIA, Rodrigues. “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício.” In: MACONHA. Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958, 2ª edição, p. 9.
Referências:
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DÓRIA, Rodrigues. “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício.” In: MACONHA. Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958, 2ª edição.
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