Por Malou Brito, do Coletivo DAR
“Faz o que tu queres pois é tudo da lei”. Já dizia o grande maluco beleza Raulzito Seixas. Mas quem conhece de fato esse lema sabe que não é bem assim que a banda toca. Quem disse algo mais ou menos parecido com isso foi Aleister Crowley (1875-1947). Nesse caso faça o que você quiser, pois TUDO o que você faz está na lei do universo. E se está na lei, significa que pra tudo há uma consequência. Pra cada ação existe uma reação. Mas como ninguém bota muita fé nos “loucos” podemos usar a ideia do filósofo Jean Paul Sartre (1987) que disse que o ser humano por si só é livre, entretanto algumas restrições acabam sendo impostas a essa liberdade somente pelo fato de nascermos e escolhermos conviver em sociedade. Diferente dos animais e plantas, olhando sob essa perspectiva existencialista, sempre vai existir essa imposição de que façamos escolhas, e claro, sempre que fazemos uma escolha anulamos uma outra. Essa necessidade de escolher entre o sim ou o não, o certo e o errado é uma tragédia humana já que o que nos caracteriza enquanto pessoas é essa busca constante pela liberdade que nos é prometida. Tanto que estamos sentindo na pele neste momento de pandemia o quanto é angustiante ser privade de liberdade. Em contrapartida a esse pensamento podemos dizer que o ser humano já chega a esse mundo sendo privado de liberdade.
Nesse contexto de realidade ambígua nos deparamos com nosso primeiro paradoxo, que o próprio Paul Sartre aponta: “A liberdade é constitutiva da consciência (“) e eu estou condenado a ser livre. Isso significa que (“) não somos livres de deixar de ser livres. Uma vez lançado à vida, o homem é responsável por tudo o que faz do projeto fundamental, isto é, da sua vida”.
Sendo assim, cada um com sua ideia própria de liberdade, vamos nos construindo como seres desse mundo. É também o que vai conduzindo nossas ações. Conforme tomamos consciência de nossa situação no mundo, nos deparamos com ele já formatado numa perspectiva muitas vezes diferente da nossa. A liberdade plena sempre foi dificultada e até impossibilitada por valores morais previamente estabelecidos por esse meio múltiplo e ao mesmo tempo restrito em que vivemos. Nosso contexto é o de uma sociedade moralista, cruel e hipócrita. Os exemplos de situações em que o ser humano é colocado na posição de objeto, manuseado, utilizado e descartado são muitos. Já dizia nosso saudoso Chorão da banda Charlie Brown Jr., “a vida cobra sério e realmente não dá pra fugir (…) irmãos do mesmo Cristo, eu quero e não desisto”.
Apesar do nosso desejo de poder brincar feito criança, cai sobre nós o peso das responsabilidades e nossa luta diária por um lugar ao sol e ser livre pra poder sorrir. Mas quando esse funcionamento social é ameaçado de alguma forma por pessoas que não se encaixam num padrão de obediência considerado “normal”, pessoas que de certa forma ameaçam a “ordem” e o “progresso”, elas são tidas como desajustadas, loucas ou “muito loucas” e assim consideradas a escória da sociedade. São marginalizadas, como ocorreu nos anos 1970 quando essas mesmas pessoas se encontravam nas enfermarias dos hospícios durante a ditadura civil-militar no Brasil.
Assim ganha força a narrativa da violência manicomial e da política antidrogas, próprias desse regime totalitário. A política proibicionista intensificou articulações e estratégias voltadas para a abstinência, sob um modelo sanitarista e jurídico-moral. Com a política de guerra às drogas lançada pelo governo Nixon nos EUA em 1973 e os contornos internacionais que o proibicionismo atinge na década de 1980, se criou uma atmosfera de ignorância sob os reais efeitos das drogas, demonizando e gerando assim um estigma de que elas produziriam propensões criminosas, dificultando então os avanços nos estudos relacionados na época. Em contrapartida, num contexto de questionamento dessa desumanização, surgem propostas que apostam em outras estratégias para a sociedade lidar com as drogas, abrindo espaço para a pluralidade dessa subjetividade, e que de forma própria, resistem aos diversos formatos de assujeitamento dessa experiência da loucura, assim como do discurso hipócrita e moralista em relação às drogas. Em defesa dessa subjetividade e da autonomia do sujeito os movimentos sociais buscam ampliar o olhar criando um modo de afetabilidade que começa a ampliar suas ações desde o final dos anos 1970, se articulando com a Luta Antimanicomial Brasileira e, na contemporaneidade, questionando a política de guerra às drogas a partir de uma perspectiva antiproibicionista. Essa linha da contracultura que emergiu nos anos 1970 hoje pode ser vista nas Marchas da Maconha e nos diversos coletivos antiproibicionistas guiados pela ética do cuidado e da redução de danos.
O movimento de contracultura no Brasil, como a tropicália, traz novas formas de pensar o mundo, onde as experiências com o uso de substâncias psicoativas abrem a possibilidade de descoberta e questionamento das políticas empreendidas. As drogas têm isso de alterar nossa percepção, nos possibilitando perceber mais de nós mesmos e do mundo. Essa nova atitude proposta pela contracultura se ligava a expansão das possibilidades de alcance da consciência e das formas de sensibilidade e uso dos corpos. Ou vocês acham que Caetano Veloso quando escreveu Alegria, Alegria estava falando da “liberdade” de poder andar nu em plena ditadura militar? “Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, no sol de quase dezembro. Eu vou…”. Ele se sente caminhando no sentido contrário ao sistema, num ato de rebeldia, sem lenço e sem documento: fala não só dessa busca pela liberdade, mas do fato de estar inconformado com o sistema, de não se identificar com essa sociedade doente. De onde será que vinha tanta criatividade, sensibilidade e sutileza não só desse, mas de muitos artistas que fizeram parte do movimento paz e amor na época? Posso apostar que muitas substâncias psicoativas fizeram/fazem parte do processo criativo de muito artista por aí. Mas claro que num contexto de guerra, falar de amor e paz era considerado ato extremamente subversivo.
Nos anos 1980 essa dimensão da forma de se produzir conhecimento foi sendo abafada a partir de avanços em pesquisas onde o reducionismo biológico, referida exclusivamente ao saber/poder médico, que acaba por desconsiderar a subjetividade do sujeito. Essa perspectiva biomédica acaba por empurrar, pouco a pouco, a experimentação das drogas para o campo das patologias em aliança com o processo de medicalização (ILLICH, 1975), reduzindo a possibilidade de encontro de outras perspectivas interessadas nesse fenômeno. Assim se reforçaram aspectos exclusivamente causais da interação das substâncias psicoativas com o funcionamento do organismo, desconsiderando os demais contextos envolvidos e discutidos a partir da luta antimanicomial, antiproibicionista e da contracultura.
O fato é que faz parte da natureza humana e animal querer conhecer outras realidades, outro contexto e talvez até por isso a própria natureza nos fornece plantas e frutas capazes de alterar nossa consciência. Muitos dizem que Deus nos deixou alguns presentes naturais, para que intuitivamente pudéssemos encontrá-los na natureza, consumi-los e nos reconectarmos a ele caso nos perdêssemos pelo caminho. Talvez eu esteja viajando, mas é o que de fato acontece com nossa medicina tradicional ancestral que não visa o controle da doença e sim um interesse genuíno pela pessoa do doente e seu espírito. Utilizam da própria natureza a cura para o corpo e alma. Olhando-os como seres espirituais tendo uma experiência humana e não seres humanos tendo experiências espirituais.
Sob a perspectiva da intervenção política que advoga a partir de uma concentração na “verdade científica” do saber se desconsidera o saber compartilhado entre quem está diretamente relacionado ao processo: no caso, o usuário. A partir desse contexto, no Brasil, os asilos e manicômios ampliam seu poder no período da ditadura, reforçando um modelo privatizado de atenção em saúde mental. No final da década de 1970 se percebe a urgência dos movimentos para uma reforma psiquiátrica e antimanicomial, influenciado pelas experiências de Franco Basaglia na Itália e pela problematização da loucura presente no pensamento de Michel Foucault, entre outros autores (AMARANTE, 2008; DELGADO, 2008). Essa reforma veio para modificar o antigo modelo de forma gradual, trazendo uma atenção mais humanizada ao sujeito, respeitando sua subjetividade a partir da necessidade de se analisar o contexto de forma geral, em que o todo não pode ser separado das partes, buscando assim a garantia do direito de todo cidadão à inclusão social.
A partir dessa perspectiva histórica resumida podemos trazer os fatos para a atualidade onde em junho de 2019 o presidente Bolsonaro sanciona a lei, aprovada pelo congresso, que autoriza a internação involuntária de usuários de drogas sem a necessidade de autorização judicial. Com isso esbarramos no fato de que toda e qualquer instituição que se proponha a “tratar” de pessoas em sofrimento psíquico ou abuso de álcool e outras drogas está coberto na forma jurídica que melhor lhe couber. Não existe sobre esses locais nenhuma lei ou regulamentação, apenas uma da ANVISA que impede o monitoramento, controle ou avaliação das ações realizadas nesses locais. Dando a elas o poder de decidir a forma de “tratamento” que lhes convêm.
Fato é que estas clínicas e/ou comunidades terapêuticas aparentemente não estão interessadas em ações que visam a promoção do sujeito, não se interessam pela reconstrução dos laços comunitários e sua reinserção social. Não existe uma articulação com redes de proteção como Sistema Único de Saúde -SUS e o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, não existe uma construção de projeto terapêutico individualizado contando com a participação ativa do usuário junto a família, não é pensado num plano de cuidado, atenção, ação e prevenção de recaída após a saída da instituição. Na verdade, bem pelo contrário: infelizmente nesses locais ainda ocorrem casos de contenção física, isolamento e restrição de liberdade, obrigando os internos a participar de atividades de cunho religioso, desconsiderando sua forma particular de vivenciar sua espiritualidade. Sem contar nas internações involuntárias, contenção medicamentosa sem a devida orientação médica indo totalmente de encontro com a Lei da reforma psiquiátrica brasileira Lei nº 10.216/01 que trata das práticas manicomiais e de segregação.
Posso dizer por uma breve experiência que tive com uma comunidade terapêutica ” ou Centro de Recuperação como era intitulada ” onde atuei como psicóloga em 2015 e foi fechada após uma denuncia anônima, justamente pela total desumanização, descaso e insalubridade do local. Instituição essa típica de cunho evangélico, tendo como gestor um pastor de mente doentia e cruel. Que usava da sua “boa imagem” para usurpar as famílias dos internos, assim como desviar doações recebidas para usufruto dos mesmos. E ainda torturar pessoas indefesas pelo seu bel prazer.
Certamente muita gente não sabe o quão aterrorizante é a realidade numa unidade terapêutica como essa, que nada tem de terapêutica. Ou ignoram esse fato apenas pela cegueira moralizante em querer tirar seu ente querido do “mundo das drogas”, ou por não saberem lidar com suas questões psíquicas. Mas a pergunta pra essas famílias é: vocês pensam em “tirar” esse familiar do seu contexto atual pra colocá-lo onde? Num centro de “recuperação” onde a realidade é tão macabra que o mais provável é uma piora no quadro psicopatológico dessa pessoa? Vocês já pararam pra pensar que o próprio ambiente familiar pode ser o causador dessa pessoa se apoiar e/ou desenvolver uma relação problemática também com a droga? Se faz necessário ressaltar que nem todo usuário desenvolve uma relação problemática com a droga que isso vem de questões ainda mais profundas que muitas vezes pouco ou nada tem a ver com o uso da substâncias, mas sim do contexto em que se vive. Então de que adianta “reabilitar” se a causa e o contexto do adoecimento continuam sendo os mesmos?
Não dá pra saber o que motiva a pessoa a usar certas substâncias sem buscar saber diretamente da parte mais interessada nessa história que é ela mesma. Muitas vezes nem a própria pessoa sabe, cabe à família ter empatia e acolher, sem julgar, e buscarem juntes uma forma de lidar com esse contexto. Para entender o contexto do uso de drogas podemos relacionar ao conceito de rizoma, dentro da filosofia de Deleuze & Guatarri, onde todas as coisas estão interligadas: não se sabe onde começa e onde termina, não tem origem definida e nem um fim.“Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas”, escrevem eles.
Mas ainda nesse conceito de rizoma podemos também relacionar nossa sociedade ao Manguetown da música de Nação zumbi. No mangue esta tudo interligado e esse mangue seria a miséria do nosso povo. O morador desse “Manguetown” (cidade-mangue, em tradução livre) divide espaço com os urubus que, no caso são privilegiados por terem asas (que podemos entender como poder, dinheiro), mas ambos tiram seu sustento desse mesmo mangue. Vai ter sempre alguém “lucrando” em detrimento das outras pessoas.
Pra finalizar, ainda nessa ideia de liberdade de escolha dentro do que é permitido pela sociedade eis a pergunta: essa escolha deve ser interessante pra quem? Dentro dessa perspectiva proibicionista, dessa sociedade perversa e cruel, as pessoas adoecem e morrem por não poderem ser quem são ou fazer de suas vidas o que bem entendem. Com o foco na proibição se esquecem da subjetividade das pessoas. Gastam tempo e energia nessa fadada guerra às drogas, que nada mais é que uma guerra insana contra pessoas pretas, pobres e periféricas. Defendem que o uso de drogas é um desvio de conduta (um desvio moral). Isso tem gerado problemas de proporções imensuráveis. O grande erro na perspectiva é colocar nas mãos da polícia algo que é antes de qualquer coisa uma questão social, de educação, saúde, dentro de uma noção de igualdade de direitos. Com isso milhões de pessoas são encarceradas, internadas em centros de reabilitação que mais parecem manicômios, subjugadas, humilhadas, assassinadas… Mas o vício não desapareceu, no caso aumentou, as drogas não diminuíram, de fato aumentaram. A oferta continua alta e a cada dia inventam uma nova droga. Porque sempre terá demanda. “Ah, porque a minha droga é legal, a do coleguinha não é, então ele está errado”. Não dá pra gente esquecer que muitas drogas que podem ser bem devastadoras são legais, enquanto outras são comprovadamente menos nocivas e são ilícitas. O critério da proibição de algumas substâncias, não tendo nada a ver com a defesa da nossa saúde, busca se justificar em discursos morais. E a hipocrisia no uso corriqueiro das drogas na nossa sociedade é explícita. Como a coca cola servida no almoço (que não é só de domingo), os açúcares que matam gente todo dia, mas tornam nossa vida mais “doce”. A cervejinha depois do expediente para tirar o estresse, o remedinho pra dormir (que não proporciona um sono de qualidade), a “pílula da felicidade” o famoso PROZAC/fluoxetina pra suportar um relacionamento falido (mas claro, sempre com um sorriso no rosto), tem também a ritalina pra manter as crianças “sob controle” e mais “produtivas” (que no caso tem os mesmos efeitos da cocaína), e ” porque não? ” um raio num pó pra dar aquele speed na reunião de negócios, ou um beck pra relaxar depois de um dia exaustivo, ainda tem o café, o cigarro… Hoje temos a cloroquina que é a droga do momento e ainda conta com o presidente como garoto propaganda.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser quem é. Assim como cada um sabe onde o calo aperta. Viver numa sociedade que te cobra valores morais que ela mesma corrompe tem adoecido e aniquilado pessoas em diversos sentidos. De fato nós sentimos a necessidade do uso de alguma substância para lidar com essa realidade doente em que estamos inseridos, tendo assim que recorrer muitas vezes a drogas ilegais, correndo todos os riscos que configuram a ilegalidade, assim como as drogas “legais”, muitas vezes com efeitos ainda mais nocivos. Não é fácil encarar tudo isso estando de “cara”. E isso não é de hoje. A relação da nossa sociedade com substâncias psicoativas exige que pensemos sobre várias perspectivas e aí a gente vai longe porque em diferentes contextos culturais existem registros do uso de substâncias na história da nossa sociedade. A gente pode pensar no uso terapêutico que vai desde o medicinal, religioso, recreativo/social. Seus registros dão conta do uso de drogas desde muito antes de Cristo andar nessa terra. Portanto as drogas nos acompanham há mais tempo do que imagina, e essa necessidade de se entorpecer parece ser um chamado da nossa ancestralidade para que não nos percamos nesse caminho em busca de nós mesmos, de um propósito de vida que é nosso, somente nosso e intransferível e que o uso de substâncias nada mais é do que um meio para expansão da consciência no sentido de ampliar as possibilidades de entender esse propósito. Por isso: “Libertem-se da escravidão mental. Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mente…”, como bem disse o rei Bob Marley em sua canção de redenção.
Ahhh! E não se esqueçam de desobedecer as leis injustas!
Bibliografia
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DELEUZE, G., &GUATTARI, F. (1995).Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Ed. 34.
DELGADO, Pedro Gabriel. Os determinantes de 1968 para as políticas públicas de saúde mental. In: SILVA FILHO, João. 1968 e a saúde mental. Rio de Janeiro: Editora Ipub, 2008
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