Por Luiz Fernando Petty, do Coletivo DAR
No dia 28 de novembro de 1929, Diomero de Oliveira, proprietário da “Hervanaria Botanica-Oriental”, na Praça da Sé, número 63, foi preso e processado pela Delegacia de Costumes e Jogos, depois de cometer dois delitos, sendo o primeiro, mais leve de “preparação de uma beberragem com ervas medicinais”, e o segundo “por um assunto mais grave, ou seja, a venda de maconha”,[1] também conhecida como “Cânhamo Indiano”. No dia 4 de dezembro do mesmo ano, data do início do processo, vários jornais da cidade de São Paulo noticiaram a prisão do vendedor da erva,[2] aludindo se tratar de um “terrível entorpecente que leva o indivíduo que delle faz uso, fatalmente, a loucura, depois de pouco tempo”.[3] Tais referências alarmantes à venda e aos danos que o uso da erva poderiam causar se explicam ao fato de que Diomero, possivelmente, foi o primeiro vendedor de maconha a ser autuado em flagrante.
Os peritos que examinaram a substância constataram duas variedades do cânhamo apreendido: o “cânhamo ordinário” e o “cânhamo indiano”, sendo o último com propriedades embriagantes das quais são preparados narcóticos como o “Haschisch”; entretanto, verificaram, por outro lado, propriedades medicinais em preparações à base de cânhamo.[4] Logo após o resultado, Diomero passou por um interrogatório na Delegacia de Costumes e Jogos, limitando-se a dizer que “em seu estabelecimento, vendia apenas ervas medicinais, entre elas a maconha, tida como remédio muito bom para asma”.[5] Em seguida, reafirmou o que disse quando interrogado à reportagem feita pelo jornal Diário Nacional, que “se o intuito da venda fosse criminoso, concluiu o Sr. Diomero de Oliveira, não o venderia ostensivamente no balcão, como fazia, e, ao contrário, procuraria vendei-lo occultamente”.[6]
Ao fim, o advogado de defesa de Diomero conseguiu sua absolvição, alegando que a substância tóxica em seu estado natural, como fora apreendida, não correspondia a um veneno nem a um entorpecente.
O caso de Diomero reflete bem a tônica da repressão à maconha na cidade de São Paulo na década de 1920. O decreto nº 4.294 de 1921, cujo artigo primeiro previa prisão de um a quatro anos para quem vendesse, expusesse à venda ou ministrasse substâncias tóxicas de caráter entorpecente, além de outros quatro artigos referentes ao consumo e a venda de bebidas alcoólicas e substâncias inebriantes, e cujo crime Diomero estava sendo indiciado, foi a primeira lei que se voltava à repressão da venda e do consumo de entorpecentes no Brasil. Contudo, em nenhum momento o decreto especifica a maconha como um dos entorpecentes controlados, o que só viria a acontecer em 1932. Assim, essa falta de especificação da lei gerou um fenômeno pelo qual, em certas localidades, o uso da maconha era coibido e reprimido, inclusive com ameaças de sanções para os que insistiam em fumá-la, enquanto que em outras regiões essa mesma planta encontrava-se à venda, livremente, nas farmácias e ervanários.
Durante a década de 1920, com o primeiro decreto nacional antidrogas que se restringia apenas à cocaína, ao ópio e seus respectivos derivados, a maconha permaneceu sem grande atenção policial e, apenas na segunda metade da década, quando a proibição já se aproximava, é que começaram a aparecer notícias e informações sobre a erva nos jornais e revistas do país. Na “Conferência do Ópio e outros tóxicos” realizada no ano de 1924 em Genebra, a delegação brasileira, em meio a assuntos referentes à heroína, codeína, láudano e haxixe, conseguiu incluir a maconha na lista de drogas sujeitas à fiscalização. No ano de 1926, foi aprovado um projeto baseado em reuniões policiais, em que ficou fixada a necessidade de licença especial das autoridades sanitárias para fabricar, importar, exportar, reexportar, vender ou ter tóxicos entorpecentes, sendo aqui a maconha como um dos tóxicos a serem controlados.[7]
Nesse mesmo momento, os médicos, respaldados na autoridade científica, empreenderam uma verdadeira perseguição a qualquer indivíduo que tivesse a intenção de atuar nas práticas relacionadas à cura, com a finalidade de demonstrar claramente as diferenças entre quem está apto e quem não está para cuidar das enfermidades.[8] Com isso, houve uma distinção entre a venda e os usos medicinais da maconha, segundo critérios científicos, isto é, determinados vendedores e usuários de maconha medicinal que não contavam com suporte de profissionais das ciências passaram a ser perseguidos, enquanto outros, como a empresa Grimault e Cia., puderam vender maconha, sob julgo medicinal até, ao menos, o fim da década de 1920.[9]
A virada dos anos de 1930 e suas mudanças políticas trouxeram também o contexto necessário para o início do pânico com relação à disseminação do uso da maconha e a exigência, por parte da imprensa, de que as autoridades brasileiras tomassem uma providência para a proibição dessa planta entorpecente. Jornais de todo país anunciavam prisões, como a de Diomero de Oliveira, “preso em flagrante quando vendia meio quilo do cânhamo por 190$”.[10] Dessa maneira, no dia 11 de janeiro de 1932, o decreto nº 20.930 lista uma série de substâncias e plantas entorpecentes proibidas e a maconha aparece pela primeira vez dentre elas sob denominação de Cannabis índica. Contudo, até pela confusão sobre o que de fato era cannabis índica, sua criminalização não se deu de maneira uniforme para todas as pessoas. Receitas dadas pelo “Consultório Homeopathico” em consultas médicas enviadas por cartas eram expostas no Correio Paulistano[11] até o final da década, mantendo, assim, seus remédios à base de cannabis, tanto da espécie sativa, não incluída na lei, quanto da índica,[12] que já figurava no decreto de 1932.
Assim, a maconha permaneceu sem uma política rigorosa de controle até o ano de 1938, quando Getúlio Vargas sanciona o Decreto-Lei #891, a norma jurídica mais abrangente sobre controle e repressão ao uso psicoativo de drogas no Brasil até então. O decreto foi elaborado pela Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, criada dois anos antes para centralizar todas as questões que envolviam a venda e o uso de psicoativos no país, com uma notória participação médica. A forma escolhida para lidar com pessoas que faziam uso de entorpecentes passou a ser internação em clínicas especializadas, de acordo com o Decreto-Lei. Era a maneira de o Estado garantir “exclusividade na gerência do “problema da toxicomania””,[13] e finalmente poder controlar as classes subalternas, a quem foi sempre atrelado o uso de entorpecentes, principalmente o da maconha.
[1] FONSECA, Guido. O submundo dos tóxicos em São Paulo: séculos XVIII, XIX e XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 108.
[2] A venda do cânhamo indiano. Diário Nacional, São Paulo, 04/12/1929, p. 12; Vendia uma herva intorpecente por 380$ o kilo. Correio Paulistano, São Paulo, 04/12/1929, Sessão Comercial, p.25; Vendedor de tóxico. O estado de S. Paulo, São Paulo, 04/12/1929, p. 9.
[3] A venda do cânhamo indiano. Diário Nacional, São Paulo, 04/12/1929, p. 12
[4] FONSECA, Guido. Op. cit., p. 110.
[5] FONSECA, Guido. O submundo dos tóxicos em São Paulo: séculos XVIII, XIX e XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 110.
[6] A venda do cânhamo indiano, Diário Nacional, São Paulo, 06/12/1929, p. 6.
[7] SAAD, Luisa Gonçalves. “Fumo Negro”: A Criminalização da Maconha no Brasil (1890-1932). Dissertação de Mestrado, Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2013, p. 80.
[8] Idem, p. 57
[9] FONSECA, Guido. O submundo dos tóxicos em São Paulo: séculos XVIII, XIX e XX. São Paulo: Resenha Tributária, 1994, p. 44.
[10] Vendedor de tóxico. O estado de S. Paulo, São Paulo, 04/12/1929, p. 9.
[11] Consultório Homeopathico. Correio Paulistano, São Paulo, 08/11/1936. p. 17.
[12] Do ponto de vista científico, as duas são Cannabis Sativa L.. Contudo, ela é separada em duas categorias, Índica e Sativa e suas diferenças consistem, basicamente, na estrutura e na resina produzida.
[13] SOUZA, Jorge Emanuel Luz de. Op. cit., p. 18.