Por Gabriela Moncau, do Coletivo DAR e da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo
“A gente tá falando do massacre do Carandiru, mas também daquele massacre que acontece todos os dias dentro dos presídios. As coisas continuam do mesmo jeito, então precisamos nos auto-organizar”. A possibilidade de escutar Maria Teresa dos Santos, da Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais (FED-MG), durante a live-ato que marcou os 28 anos que nos separam daquele sinistro 2 de outubro de 1992, foi fruto desses tempos pandêmicos e lokos. Se dessa vez não pudemos ir às ruas de éssipê como fizemos ano passado e em todos os anos anteriores, o formato online permitiu que a gente juntasse um bonde pesado que, como dona Maria Teresa, tá na luta diária contra a violência do Estado em vários cantos do Brasil.
Organizada pela Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo (FED-SP), a live-ato aconteceu no sábado, 3 de outubro. Teve a participação de sobreviventes do cárcere, AMPARAR, Coletivo Mandela Free, Coletivo DAR, Central de Movimentos Populares, FED do Ceará, Coletivo Nós por Nós, Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, Centro de Convivência É de Lei, Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Grupo de Rap Comunidade Carcerária, FED de Minas Gerais, FED da Bahia, FED do Amazonas, sobrevivente do massacre de Manaus, Cooperativa Libertas, Grupo de familiares de Sapopemba, Leitura Liberta e Movimento Mães do Cárcere. Foram 3h e meia de relatos fortíssimos, emoções e apontamentos sobre nossos desafios atuais. Se você não viu ao vivo, recomendo muito que assista.
Kric MC, rapper do grupo Comunidade Carcerária, é sobrevivente do massacre do Carandiru. Já estava lá há alguns anos quando, do pavilhão 8, ouviu, observou e sentiu tudo o que aconteceu naquele dia do qual não sobreviveram tantos dos que viviam no pavilhão 9, a uma parede e meia de onde Kric estava. “Hoje eu tô aqui me sentindo como se eu estivesse lá naquela época, me dá um frio na alma”, falou. “Dizem que foram 111 mas nós sabemos que foram muito mais. Em homenagem aos que foram contados e aos que não foram contados, estamos aqui”.
O tributo aos que tombaram naquele 2 de outubro, a constatação da continuidade da política de massacres praticados pelo Estado e o caminho da auto-organização daqueles e daquelas que são alvos dessa política para poder de fato enfrentá-la foram os pontos centrais que atravessaram as falas.
“É tipo uma eugenia nazista o que a gente vê”, resumiu Miriam Duarte, da AMPARAR. Alessandra Félix da FED do Ceará, ao lado de um vaso de flores amarelas que ofereceu às mães dos mortos no Carandiru, relatou como a memória desse episódio amedronta todas aquelas que têm hoje entes queridos atrás das grades. Mas que, apesar desse fantasma que as acompanha, são essas familiares as que se movimentam para se contrapor às narrativas do Estado que, como Miriam disse, busca legitimar uma política racista de eliminação. “Por mais que o dia tenha sido doído e perverso”, afirmou Alessandra sobre o 2 de outubro, “ele é hoje lembrado com uma memória de muito cuidado e respeito”. Se dirigindo à Dinha ” que mediava a live sob o barulho das bombas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana que reprimiam o fluxo na cracolândia em São Paulo, em perversa demonstração de tudo o que estava sendo falado ” Alessandra abriu um sorriso sereno. “Independente da geografia que nos separa, nossos passos continuam firmes e nossos punhos também”.
Entre as provas mais recentes de que faz todo sentido que as memórias de matanças anteriores aterrorizem qualquer pessoa que se importa com a vida humana e portanto com aquelas que estão encarceradas, duas foram bastante citadas. Uma delas é a silenciosa política de morte nas prisões diante da pandemia do coronavírus. Maria Teresa narrou como, em Minas Gerais, mães estão recebendo os corpos de seus filhos em caixões lacrados, mortos com o vírus. “Tem dia que eu entro no face dessas mulheres que lutam porque tiveram seus filhos assassinados pelo braço armado do Estado ou na guerra às drogas e fico lendo as histórias delas, procurando força pra enfrentar a minha dor” contou Maria Teresa: “Porque eu penso, meu Deus, a mulher tem que ser muito magnífica pra enterrar um filho e seguir em frente”.
A segunda prova são os massacres mais recentes, cuja lista imensa contém os que aconteceram nos presídios do Amazonas. Em 2017 60 pessoas foram mortas e em 2019, 55. Marcos Bittencourt estava preso em Manaus em 2017. “Eu tinha acabado de completar 18 anos, fui parar dentro do sistema prisional, lá fui refém de uma facção: o próprio sistema me colocou num lugar que não era pra mim”. Sobrevivente, hoje Marcos trabalha num hospital e é ativista. Colocando a mão na garganta, foi enfático ao agradecer que sua voz seja ouvida: “tenho muita coisa entalada para dizer”. Priscila Serra cresceu junto com Marcos no mesmo bairro e atua hoje na FED do Amazonas. Familiar de um sobrevivente do massacre de 2019, Priscila destacou como só quem vive sabe o que é passar por isso. “O que a gente escuta de quem tá ali dentro e desumaniza os nossos, nos desumaniza. Se a gente não tiver ao lado de pessoas que nos fortalecem, que nos dão força pra seguir, a gente se perde e entra junto com eles na escola do ódio”, disse. “A gente tem um longo caminho a ser traçado mas a gente vai se colocando, hoje a gente está aqui ó!”
E foi esse aspecto da desumanização que Carlos Preto chamou a atenção. Também sobrevivente do sistema prisional, ele teve sua infância e adolescência marcadas pelas visitas que fazia a um tio querido, no Carandiru. “A relação direta entre o cárcere e a escravidão não tá só no fato de que a maior parte das pessoas encarceradas são negras”, destacou: “mas porque o cárcere depende do mesmo sistema que a escravidão. Não seria possível escravizar tantos seres humanos se não tivessem convencido os demais de que aquele grupo não era humano. Com as prisões é o mesmo: é necessário primeiro desumanizar”.
Maria Teresa também falou dessa relação. “Essa branquitude que tem aí tem a mania de falar que nós somos livres, que a princesa Isabel nos libertou com uma carta de alforria. Eu digo que não, que ela não deu carta de alforria pra ninguém” apontou. “Ela deu pra gente foi uma carta de despejo. ‘Vocês estão dentro da senzala, agora eu vou despejar vocês pra rua. Vocês que deem seu jeito. E se não conseguirem trabalho, as prisões estão lá esperando vocês'”. Maria Teresa encerrou sua fala com a frase de uma placa que tinha visto na rua no dia anterior: “”O povo quer paz, mas o sistema quer guerra”. Então se o sistema quer guerra, vamos nos unir e guerrear contra ele”.
A entrada na live de Andreia MF, do Movimento Mães do Cárcere, abalou as estruturas. “Eu agradeço meus ancestrais por terem morrido pra que eu tivesse hoje aqui lutando pelos nossos. Eu falo pelos 111 presos que morreram na Casa de Detenção em São Paulo em 1992. No dia 2 de outubro. Eu estava no portão visitando meu esposo, pai dos meus filhos, grávida de dois meses. Eu estava lá. Eu estava lá! Eu passei por lá. O umbigo do meu filho, que hoje tem 27 anos caiu ali, no pavilhão 8, barraco 322-i”, declamou Andreia MF, com o punho levantado. “Eu clamo pelas mães que perderam seus filhos. Eu clamo por Paulo de Andrade. Eu clamo por Wellington. Eu clamo por todos que a polícia desce com violência pela nossa cor. Eu coloquei meus símbolos de guerra”, afirmou, “porque se o Estado quer guerra, nós vamos guerrear, vamos lutar, mas com sabedoria, com inteligência”. Seu rosto estava pintado. “E parem de nos humilhar! Porque nós somos de carne e osso. E nosso sangue é vermelho. Nós salvamos vidas, nós lutamos por vidas, somos humanas, sentimos dor! Sentimos dor! Sentimos dor”. Os olhos úmidos e as palavras firmes. “Hoje não mudou muita coisa, não. Em Venceslau, morreu Jeferson vítima de Covid que a Secretaria de Saúde cisma em esconder. O governador do estado, o presidente, esses não me representam! Eu não sou representada nem alienada pelo Estado. Eu sou combatente, sou guerrilha, sou luta, sou sabedoria. E é assim, nós vamos juntos, pra cima! Os nossos mortos têm voz, os nossos mortos têm nós!”, afirmou. “Abre a senzala, desencarcera!”, exigiu Andreia: “Olhe pra nós, sociedade. Somos humanas. Paz”.