Por Luiz Fernando Petty, do Coletivo DAR
Dia 11 de janeiro de 1932 é a data que marca o primeiro decreto sancionado pelo governo provisório acerca da proibição da maconha no Brasil. Até aquele momento pouco havia se aprofundado sobre as discussões que envolviam o uso desse psicoativo no país, limitando-se a alguns médicos do norte/nordeste que divulgaram suas pesquisas nas primeiras décadas do século XX. Dentre estes, destaca-se Rodrigues Dória, considerado o precursor dos estudos sobre maconha no país com seu trabalho “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”.[1] Apesar de esse primeiro trabalho ser datado daquele século, é certo que o uso da planta, para os mais diversos fins, já fazia parte do cotidiano de alguns brasileiros há séculos.[2]
Segundo as pesquisas de Luiz Mott, em seu artigo “A Maconha na História do Brasil”, essa planta não fazia parte da flora americana, já que não há nenhuma referência sobre ela nas minuciosas descrições a respeito da botânica americana na época dos primeiros contatos com os europeus.[3] Fica claro, portanto, que a origem e o uso da maconha se instalam no Brasil a partir da chegada de novos povos no período da colonização. Logo, a constatação de que a Cannabis é uma planta exótica ao território levou os autores médicos do início do século XX a estabelecer uma direta associação da chegada das primeiras sementes ao tráfico negreiro:
a planta teria sido introduzida em nosso país, a partir de 1549, pelos negros escravos, como alude Pedro Corrêa, e as sementes de cânhamo eram trazidas em bonecas de pano, amarradas nas pontas das tangas.[4]
A evidência que confirmaria essa origem para tais médicos consistia na raiz africana da linguística dos nomes “maconha”, “liamba”, “riamba”, “pango” e até do apelido “fumo de angola”, que eram apresentados como elementos determinantes para comprovar a associação entre os africanos escravizados e a introdução da maconha no país[5]. Porém, embora essa afirmação tenha tido força política suficiente para ser aceita e até naturalizada no início do século passado, Mott a contesta, datando a chegada de sementes, ao menos, mais de cem anos depois do início do tráfico negreiro no país, já que nas primeiras décadas os africanos escravizados viajavam ao Brasil completamente nus e sem qualquer conhecimento de para onde estavam sendo levados. Assim, tais condições impossibilitam a afirmação desses médicos de que a maconha já era trazida ao Brasil por pessoas escravizadas durante o século XVI.[6]
Uma pista para a introdução da maconha no país pode estar no projeto da coroa portuguesa de incentivo à cultura de cânhamo para a produção de fibra de tecido, matéria-prima essencial para a fabricação de velas e cordas para as embarcações. Em 1783, o Império Lusitano instalou no Brasil a Real Feitoria do Linho-cânhamo (RFLC), em uma tentativa de ampliar os negócios com a colônia, diversificando a economia local que tinha perdido força com a concorrência no comércio açucareiro. Assim, milhares de plantas foram cultivadas durante séculos, primeiramente para atender as demandas europeias, com destaque para a indústria naval, que utilizava as fibras de tecido oriundas do cânhamo e, depois, para atender o mercado interno na produção de sacas de café. Embora a cultura do cânhamo tivesse destaque nas regiões sul e sudeste, é certo que ela se espalhou por todo o território. “Existem muitos indícios de que a Coroa financiou a introdução e adaptação climática da espécie em Hortos em estados como o Pará, Amazônia, Maranhão, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Bahia. No entanto, tudo leva a crer que muitos outros empreendimentos do tipo surgiram a exemplo da experiência da Real Feitoria, até mesmo de iniciativa privada e esses teriam persistido até a proibição do cultivo da planta, na década de 1930, com maior ou menor êxito econômico.” [7]
Apesar da falta de documentação que explique definitivamente a origem da maconha no Brasil, é importante levar em consideração que sua expansão dentro do território aconteceu tanto pelos colonos e seus empreendimentos, quanto pela assimilação das várias culturas presentes no Brasil, como diferentes povos indígenas e, em especial, africanos escravizados e seus descendentes.[8] No livro “Nordeste”, Gilberto Freyre destaca a tolerância de senhores de engenho de cana de açúcar com relação ao uso da maconha pelas pessoas escravizadas, enquanto estes mantinham o hábito aristocrático do uso de tabaco. Ressalta não lhe parecer coincidência ser comum encontrar, no meio da monocultura de cana, grandes manchas verdes escuras de plantação de tabaco e outras verdes claras de plantação de maconha.[9] Weintraub reforça a afirmação de Freyre, argumentando que enquanto os senhores do norte/nordeste até incentivavam o uso de maconha entre os escravos, principalmente nos períodos de ociosidade das fazendas, os fazendeiros do sudeste não toleravam o fumo por seus cativos que, segundo o autor, continuavam fazendo escondido.[10]
Contudo, apesar da tentativa de associar o uso e de maconha e sua disseminação exclusivamente às pessoas escravizadas, as evidências indicam que a introdução das primeiras plantas na fauna brasileira tenham sido feitas por marinheiros portugueses, e que elas não tenham origem africana.[11] O próprio hábito de fumar a erva utilizando cachimbos d’água também tem influência europeia: foi introduzido por marinheiros que traziam o hábito de suas viagens para Índia.[12]
Portanto, diferentemente do que se pensa até hoje, a introdução da maconha em território brasileiro não foi feita por africanos escravizados, com suas bonecas cheias de sementes de cânhamo, “amarradas nas pontas das tangas”. A influência dos colonos europeus e seus descendentes se fez presente desde a introdução das plantas na flora – seja via empreendimentos da Coroa portuguesa, seja por marinheiros viajantes – até o consumo delas. O que não exclui de maneira alguma a presença determinante afrobrasileira na cultura canábica que se iniciou a partir da introdução dessas primeiras plantas em território brasileiro. Os processos que envolvem a maconha no Brasil são complexos: mobilizam várias dinâmicas sociais, econômicas e políticas, sendo impossível atrelar a um grupo específico da população um protagonismo tão exclusivo como fazemos até hoje com a ideia equivocada de que a introdução da maconha na flora brasileira, bem como a consequente disseminação do uso, foi feita por africanos escravizados.
[1] DÓRIA, Rodrigues. “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”. In: MACONHA. Coletânea de Trabalhos Brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958, pp. 1-14.
[2] MOTT, Luiz. “A maconha na história do Brasil”, In: Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr. (orgs), Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha. São Paulo: Ground, 1986, p. 124.
[3] Idem, Ibidem, p. 120.
[4] Trecho de documento oficial do Ministério das Relações Exteriores de 1959, retirado de: CARLINI, Elisaldo. “A História da Maconha no Brasil”, In: E. Carlini e outros, Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina. São Paulo: CEBRID ” Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, 2005, p. 6.
[5] DÓRIA, Rodrigues. “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício” In: MACONHA. Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Educação Sanitária, Ministério da Saúde, 1958, 2ª edição, p. 2.
[6]MOTT, Luiz. “A maconha na história do Brasil”, In: Anthony Henman e Osvaldo Pessoa Jr. (orgs), Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha, São Paulo: Ground, 1986, pp. 132-133.
[7] VIDAL, Sérgio. “Da diamba à maconha: usos e abusos da Cannabis sativa e da sua proibição no Brasil”. 2008. http://www.koinonia.org.br/bdv/detalhes.asp?cod_artigo=304.
[8] HENMAN, Anthony. “A guerra às drogas é uma guerra etnocida”, In: Henman e Pessoa Jr. (org.), Diamba Sarabamba: coletânea de textos brasileiros sobre a maconha, São Paulo: Ground, 1986, pp. 101-102.
[9] FREYRE, Gilberto. Nordeste, São Paulo: Ed. Global, 2004, p. 40.
[10] WEINTRAUB, Mauro. Sonhos e Sombras: A Realidade da Maconha. São Paulo: Ed. Harper & Row Brasil Ltda., 1983. pp. 25-26
[11] CARNEIRO, H. A vingança do quilombo. In: Revista Nossa História. São Paulo: Editora Vera Cruz, Ano 3, n.33, julho de 2006. pp. 32-34.
[12] VIDAL, Sérgio. “Da diamba à maconha: usos e abusos da Cannabis sativa e da sua proibição no Brasil”. 2008. http://www.koinonia.org.br/bdv/detalhes.asp?cod_artigo=304.