Por Daniel Mello*
“No Rio, poderiam comprar 18 milhões de doses de vacina AstraZeneca ou quase 6.000 ambulâncias com UTI móvel ou ainda prover renda básica de R$ 600 mensais para 145 mil famílias por um ano.
Em São Paulo, o valor empregado na proibição das drogas renderia 36 milhões de doses de Coronavac, 27 mil ambulâncias com UTI móvel ou a mesma renda básica mensal para 583 mil famílias por um ano.”
Pouco eficiente, lei de drogas consome R$5,2 bi num ano em SP e no Rio
Matéria da Folha de S. Paulo, 29 de março de 2021.
Deslizes
Gilberto é uma vítima da Guerra às Drogas. Bebia três latinhas de uma cerveja genérica no Natal, nunca cheirou cocaína e acordava por volta das 5h40. Não usava despertador. Antes da claridade, saíia dos sonhos em meio aos primeiros agudos dos freios do metrô. Os trilhos, no entanto, não faziam o caminho até o seu trabalho. Por isso, ele cortava a Marginal na garupa de uma 160 cilindradas paga quase toda à vista. Gilberto não fazia dívidas, pensava na aposentadoria. Mas uma camada milimétrica de óleo na pista local, deixada por um caminhão desgastado, vai derrubá-lo a 72 quilômetros por hora. Ele vai bater na mureta de proteção e esperar o socorro, silenciosamente, por 47 minutos. Uma ambulância, que durante todo esse tempo esteve parada em uma garagem sem iluminação poderia ter feito o resgate. Mas não havia equipe para usar o veículo, o Estado não tem dinheiro para tudo.
Sem saída
O coronavírus contaminou e vai matar Elisângela nas próximas horas. O seu filho teve apenas sintomas leves. Os dois foram contaminados juntos. Elis, como é chamada por todos os amigos fora da família, estava saindo de casa para vender trufas recheadas. Podia ver o ponto de ônibus da esquina quando escutou os gritos.
Marcello, seu filho de 17 anos, estava rodeado por policiais militares: um mantinha alguma distância com uma escopeta nas mãos; o outro forçava o braço do garoto para torcê-lo às costas; o sargento gritava dentro dos olhos do rapaz.
Elis correu em direção à abordagem (como os policiais chamavam aquela situação). Gritou também. Muita gente abaixa a máscara de proteção facial para conseguir ser ouvido quando fala, outras vezes a máscara cai por ser frouxa demais. Nessa altura, policiais, mãe e filho já estavam com máscara pra lá do queixo. Marcello foi liberado com um tapa na cabeça. Elis ainda foi trabalhar naquele dia e nos dois seguintes. Quando caiu doente, já era sexta-feira. Nunca poderá ter certeza se foi contaminada pelo filho, pelos policiais ou pelos 83 clientes dos últimos dias.
Mas nós sabemos que Elisângela só saiu de casa no dia em que foi contaminada porque o auxílio emergencial não cobria as despesas da casa. Sabemos que os policiais só abordaram Marcello porque suspeitam que os entregadores de comida por aplicativo, especialmente os que andam de bicicleta, também fazem delivery de drogas. – Ainda não prenderam nenhum, mas têm certeza que acontecerá nos próximos dias – Mas o fator decisivo para a fatalidade é que um dos policiais estava contaminado. Apesar disso, Elis precisava estar lá. Se ela não chegasse naquele momento, o outro policial, perfeitamente saudável, que se aposentará aos 57 anos, iria disparar sua arma quase sem aviso ou segundo pensamento. Marcello não sobreviveria.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’A Craco Resiste.