Por Daniel Mello*
Um casal dançou de corpo colado no meio da tarde ao som de uma música que não pude escutar e nem sei dizer se existia, apesar do sol sobre as cabeças desprotegidas e os pés descalços. Os pés nus também não impediram de uma roda de homens chutar durante vários minutos uma bola de futebol para o alto em um jogo sem regras. Na noite de ano novo, à meia-noite houve fogos que iluminaram várias vezes a multidão e piscaram quase tantas vezes com os isqueiros que acendiam os cachimbos.
As imagens têm datas, horários e nenhum som. Fazem parte do acervo construído pela A Craco Resiste a partir de um sistema de monitoramento com câmeras de vigilância da área conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo. O trabalho foi iniciado em dezembro (2020) e resultou em um dossiê inicial com 12 vídeos de violência desproporcional e injustificada. O uso das chamadas câmeras de segurança, destinadas a observar e, eventualmente, gravar continuamente é uma tecnologia usada pelas forças de vigilância privada e pública.
A opção de usar esse tipo de equipamento tem como objetivo principal mostrar todo o desenrolar das ações em que há uso de bombas de gás e balas de borracha, assim como uma série de abusos cotidianos, como socos e investidas com viaturas. Mostrar para o público, assim como movimentos e ativistas vêm denunciando há anos, que a repressão da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar no bairro da Luz não é uma reação à violência das pessoas que vivem e frequentam aquelas ruas, são uma política com rotina estruturada.
As imagens gravadas ininterruptamente vão além disso. Ultrapassam a visualidade espetacular que tem sido explorada há anos por fotógrafos de todo o tipo: artistas, fotojornalistas, cineastas, cinegrafistas profissionais, diletantes e amadores ( quantas mais categorias queiram ou não se encaixar). A situação de miséria extrema que se mistura aos descartes de tecnologia barata do centro da metrópole sempre exerceram um fascínio para os profissionais da imagem e seus públicos. O uso de drogas ilegais de forma constante, especialmente a tão estigmatizada cocaína fumada em cachimbos, que atende internacionalmente pelo nome de crack, é outro elemento que torna essas fotografias objeto de desejo para produção e consumo.
Ao mesmo tempo, há uma dificuldade para produzir essas imagens, o que aumenta o fetiche. Uma fotografia de guerra (da Síria às drogas). A guarda e a polícia abominam câmeras vigiando suas atividades em qualquer parte da cidade, ainda mais nessa onde se sentem à vontade para cometer todo o tipo de abusos. É comum que as pessoas que tentem filmar ou fotografar esses agentes sofram todo o tipo de intimidação, desde a violência física à detenção.
O fluxo, conjunto de pessoas que vivem e frequentam essas ruas, também não tem simpatia pelas câmeras. Sabem que as imagens tendem a ser usadas para promover a criminalização como grupo ou individual. As pessoas mais organizadas, que não dormem na calçada, podem ter problemas com a família e no trabalho. Quem estiver mais próximo ao comércio ilegal de drogas pode ser preso. Ou pode ser simplesmente a vergonha de ser descoberto nas ruas depois de uma longa ausência entre queridos e conhecidos.
Assim, a grande maioria das imagens que escapam da Cracolândia são de cenas de violência, depois do primeiro estouro, quando é difícil dizer se começou de uma pedra ou uma arma, ou então, muitas vezes, são uma pintura do imaginário do fotógrafo. Quem procura o desespero, fotografa desespero. Quem busca um zumbi, faz imagens de uma horda em transe. Os que procuram violência têm à disposição pessoas com o rosto encoberto com paus e rojões.
Nessa tempestade de imagens feitas antes de apertar o botão, é difícil ver um homem sentado com ou sem cachimbo na mão observando o fluxo de trabalhadores que passa pela Estação Julio Prestes. Falta coragem para ver as ruas também ocupadas pelo ócio das pessoas que saíram sem saída das masmorras do sistema prisional, das travestis expulsas de casa aos 14 anos, das esquizofrenias não domadas pela indústria farmacêutica e os gritos das igrejas.
Não digo que é algo bonito de se ver. A resistência verdadeira, de quem luta pela vida contra as forças opressivas da morte raramente pode se vestir à moda para a revolução. Os farroupilhas, hoje nome de rua e avenida, eram os que vestiam farrapos. Os cabanos, aqueles que viviam nas malocas à beira rio. Existir e ser visto no centro de São Paulo, em meio a tantas vozes que determinam extermínio, é, sem dúvida, algo que merece respeito.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’A Craco Resiste e é autor de Gargalhando Vitória – poemas da cracolândia.