Por Daniel Mello*
Internação compulsória para usuários de crack e hidroxicloroquina para doentes com covid-19, duas medidas que parecem não ter nenhuma conexão além da falta de efetividade como forma de cuidado. Mesmo entre as pessoas que se propõe à reclusão para conter o uso abusivo de drogas, o índice de sucesso desse tipo de intervenção é baixíssimo. À força, com certeza, menor ainda.
Enquanto a recomendação de cloroquina como remédio para o coronavírus é um dos alvos da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura diversas irregularidades e possíveis crimes cometidos por governos e empresas privadas durante a pandemia no Brasil. É aqui que as duas histórias começam a se misturar, na trajetória do médico Anthony Wong.
Defensor dos chamados “tratamentos precoces”, o pediatra Wong acabou morrendo, em 2020, após ser internado com covid-19 e tentar uma série de medidas “sem eficácia médica comprovada”. Segundo carta divulgada pela própria família do médico, chegou a ser tentado, no seu caso, até a aplicação de ozônio.
Mas, muito antes da pandemia, Wong aparecia em jornais e televisões como toxicologista e apresentava ideias e propostas também com muito pouco amparo em fatos. Em 2017, defendeu que as pessoas usuárias de crack deveriam ser levadas contra a vontade para internações, como queria a Prefeitura de São Paulo à época, comandada por João Doria. A ação acabou sendo impedida por decisão judicial.
O interesse pelo assunto não era novo para Wong. Em 2008, o médico afirmou que traficantes misturavam crack à maconha para “viciar mais rápido”. Uma confusão deliberada com um dos hábitos de uso, a mistura entre crack e maconha feita por parte das pessoas que consomem essas substâncias. O que é muito diferente de dizer que uma droga é vendida mescladaà outra em uma tentativa de provocar uma suposta dependência.
Todas essas afirmações, no entanto, eram feitas do alto das décadas de trabalho como médico de Wong. No Brasil Urgente, programa comandado por José Luiz Datena, atingiram centenas de milhares de lares como informação digna de confiança. Do mesmo modo, as recomendações para uso da cloroquina, feitas também por outros médicos e ditos especialistas, levaram não só a pessoas se intoxicarem individualmente, como respaldaram, segundo denúncias na CPI da Pandemia, as práticas em hospitais privados.
As mortes e danos causados pelo uso de tratamentos sem eficácia em larga escala ainda estão sendo investigados e medidos. Porém, a grande maioria da sociedade já condena as posições anticientíficas, que foram rotuladas de “negacionismo”. Em relação às drogas, entretanto, ainda são aceitos todo o tipo de argumentos sem fatos. As consequências não são menores.
A proibição das drogas, que foi forjada no racismo, impede que o uso problemático seja tratado na complexidade social e individual. A população em situação de rua recebe enquadros e bombas de gás, em vez de moradia. O acesso a serviços básicos e habitação decente são substituídos por balas de fuzil em comunidades pobres em todo o país.
Isso, sustentado em afirmações como a de que quem consome crack “perde totalmente a noção” e “vai entrar na casa das pessoas”, apelando para o medo como forma de evitar a discussão a partir de fatos e evidências. Mentiras para esconder as dezenas milhares de vítimas da guerra às drogas todos os anos no Brasil.
Uma narrativa obscura que foi fundamental para deixar morrer, sem ar, centenas de milhares de pessoas durante a pandemia. Não é coincidência que pessoas negras tenham mais risco de morrer de covide que também sejam maioria das derrubadas pelas balas da polícia e presas por crimes ligados a drogas. A mentira é instrumento do projeto de genocídio.
*Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Faz parte d’a Craco Resiste e é autor de Gargalhando Vitória – poemas da cracolândia.