Diante de uma razão entorpecida pelo senso comum e pela ideologia dominante, que vê nas “drogas” o grande problema da sociedade e opta por uma proibição arbitrária e ineficaz, nossa opção foi por nos organizar. Organizar-nos para desentorpecer a razão, buscando alternativas para a atual conjuntura proibicionista, responsável por toda a violência e corrupção que envolvem o comércio de substâncias ilícitas tão desejadas por grande parte das pessoas ao redor do planeta.
A proibição das drogas interessa aos oligopólios que transformam e distribuem tais substâncias, uma vez que dá margem aos imensos lucros inerentes a um comércio com tamanha demanda; aos policiais e governantes corruptos, que são parte da folha de pagamento do tráfico; aos interesses imperialistas dos Estados Unidos, presente militarmente em diversas partes do globo supostamente para combater o tráfico de drogas; ao Estado, que a utiliza de maneira a segregar, encarcerar e mesmo assassinar setores excluídos da sociedade; ao setor financeiro internacional, sustentado por uma complexa rede de corrupção e lavagem de dinheiro; aos donos de clínicas, à indústria farmacêutica e todos aqueles que lucram com a desinformação alheia.
Não interessa a nós, que buscamos um mundo mais justo e igualitário, livre de opressões e violência. Mundo no qual as pessoas sejam livres para decidir o seu destino, e que possam fazê-lo com base na pluralidade e diversidade de opiniões, com respeito à diferença e à individualidade.
Buscar alternativas à proibição não é uma tarefa apenas dos usuários de drogas e contestar o proibicionismo não é defender ou fazer apologia ao uso de drogas. Ao criar mecanismos que propiciam tanta violência, é a lei que faz apologia ao crime; nossa apologia é pela paz.
Felizmente o horizonte de mudanças no que diz respeito à política de drogas no mundo é inegável. A avaliação de que a guerra às drogas fracassou (seja no suposto objetivo de diminuir o consumo, seja na ajuda ao tratamento do abuso do uso de psicoativos) tem se feito cada vez mais presente, nos âmbitos nacional e internacional. O sucesso das políticas europeias pautadas por estratégias de redução de danos, aliado aos péssimos resultados concretos das intervenções estadunidenses na América Latina e às reprovações à guerra às drogas formuladas em conferências da ONU, levaram diversos países a reformar suas políticas de criminalização das drogas.
Setores conservadores, que já influíram em duras políticas repressivas e de encarceramento no tocante às drogas, hoje admitem publicamente o equívoco do proibicionismo e chegam a propor alternativas, mas sem nunca ir ao fundo do problema e questionar a proibição também em seu aspecto de controle social. Diante desse contexto, vemos a necessidade de marcamos posição dentro do cada vez mais amplo espectro do chamado antiproibicionismo.
Defendemos que as alternativas sejam construídas através do diálogo entre os diversos setores da população, nunca de cima para baixo. Enquanto integrantes de um movimento social, acreditamos que é a luta social que deve pautar os ordenamentos jurídicos e legislativos, nunca o contrário. Diferentemente de setores que defendem mudanças limitadas, e que em verdade pouco mudam, enxergamos no antiproibicionismo um horizonte de alternativas que parte da crítica da criminalização dos pobres, do encarceramento e do assassinato dos setores pobres da população sob a justificativa de combate às drogas, e apontamos para a necessidade de uma emancipação social que preze a autonomia de cada um na escolha do que fazer com seu próprio corpo.
Não nos colocamos lado a lado, portanto, com propostas que apenas descriminalizem o usuário e mantenham a legitimidade da repressão aos supostos traficantes, pois vemos claramente qual o setor social que permanecerá penalizado. Nos diferenciamos também daqueles que ignoram que o uso de psicoativos é inerente à existência humana e que veem em qualquer usuário de drogas alguém que necessariamente precise de tratamento, num enfoque que retira a repressão da Justiça mas a transfere para o controle através do saber médico. Tampouco acreditamos em tratamento compulsório, pois entendemos que só no âmbito da autonomia e da liberdade é possível alterar consciências.
Sabemos dos sérios problemas causados pelo abuso no uso de certas substâncias hoje ilícitas, assim como sabemos dos mesmos, muitas vezes mais sérios, problemas no abuso de substâncias lícitas. A questão é que a repressão já se provou ineficaz para combater esses problemas, que devem ser discutidos em âmbitos distantes da criminalização e militarização.
Apesar do Coletivo DAR ter se formado a priori a partir da negativa do proibicionismo, ele se coloca também na negativa do sistema no qual estamos inseridos, incontestavelmente desumano, injusto, inaceitável. Dentro do antiproibicionismo não nos abstemos de ideais de transformação social. Defendemos uma perspectiva antiproibicionista sim, mas também libertária, anticapitalista, antiautoritária, antimercadológica. Que pense poder, repressão, saúde, teoria, organização, Estado, classes, gênero. Ainda que nosso foco de atuação seja na luta pela legalização de todas as drogas, nos vemos dentro de um âmbito mais amplo de luta por outra sociedade, ao lado do movimento feminista, LGBTT, da luta antimanicomial, ambiental, por mobilidade, livre expressão e manifestação do pensamento e de tantos outros que estão resistindo e buscando um mundo melhor.
Não queremos, portanto, um mundo injusto onde as drogas sejam justamente legalizadas, mas sim outro mundo onde, como dizem os zapatistas, caibam muitos mundos. Assim, partindo da premissa que temos um lado, pautamos nossa atuação cotidiana pela horizontalidade, pelas perguntas, pela busca da transformação.
Somos um coletivo permanentemente aberto a novos membros e contribuições, organizado SEM hierarquia ou ligação com grupos religiosos, empresas e partidos políticos. Nossa proposta é travar o debate com sociedade na busca por uma outra mentalidade, é desnublar uma questão há tantos anos envolvida em argumentos moralistas e interesses econômicos, é desentorpecer a razão, para que, a partir daí, finalmente façamos uso dela na hora de organizar outro tipo de sociedade.
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