Retirado do site http://www.comunidadsegura.org/
ENTREVISTA/Glen Greenwald
Quando se trata de discussões sobre polÃtica de drogas e proibicionismo, boa parte delas gira em torno de teorias. Uma ação que está começando a chamar a atenção é a descriminalização do uso das drogas, que, em outras palavras, é o que acontece quando usuários de drogas contornam o sistema de justiça criminal e vão direto para o sistema de saúde.
Pouco conhecido nos cÃrculos dos formuladores de polÃticas públicas é o caso de Portugal, uma nação que deu o passo de descriminalizar o uso de todas as drogas em 2001.
“Eles o fizeram por uma única razão: estavam muito preocupados com altas taxas de abuso de drogas nos anos 90 – mais especificamente com a heróina -, então chegaram à conclusão de que descriminalizar era o único caminho para baixar as taxas de abuso”, diz o jornalista e comentarista polÃtico Glen Greenwald, que escreveu um relatório sobre os oito anos de descriminalização em Portugal para o Instituto CATO dos Estados Unidos.
Desde então, o caso português tem atraÃdo atenção na mÃdia americana, com matérias na revista Time e Scientific American. Não é um feito insignificante, já que os EUA são fortes defensores da meta de erradicar o uso de drogas no mundo, um comprometimento que foi renovado esse ano após a revisão dos 10 anos da atual polÃtica da ONU, a despeito de algumas vozes dissonantes defendendo a redução de danos.
Glen Greenwald conversou com o Comunidade Segura sobre a experiência portuguesa. Foi bem-sucedida? “Sim, em números absolutos, o abuso de drogas caiu”. Ele descreve como a descriminalização foi concebida, o que os dados portugueses nos dizem em comparação com outros paÃses da União Europeia e que a descriminalização levou a uma queda no uso de drogas entre jovens. Tudo isso em um paÃs que é sem dúvida conservador.
Conte um pouco sobre o processo de elaboração desse relatório…
Conversei com uma série de especialistas em polÃtica de drogas nos EUA, e a maioria deles ou não tinha ouvido falar da descriminalização do uso de drogas em Portugal, ou tinha apenas uma vaga noção do que havia acontecido. Eu estive lá por cerca de três semanas, em 2007 – a maioria dos dados é desse ano. Entrevistei funcionários do governo português e também consultei estatÃsticos para ajudar a interpretar os dados. Foi realmente difÃcil obter respostas de funcionários do governo dos EUA, então, no decurso do trabalho, demorou um pouco para esboçar o paper, então eu fui capaz de obter alguns dados atualizados. Trabalhei nisso em 2008 – são seis anos de dados.
O que levou Portugal a adotar a descriminalização?
Eles estavam muito preocupados com altas taxas de abuso de drogas na população, e queriam diminuÃ-las. E estavam também preocupados com o crime. O uso de drogas vem sempre de mãos dadas com todas as patologias: usuários não estão trabalhando, podem estar roubando, têm DSTs… Portugal tinha um problema horrÃvel com o crime.
Quando o senhor diz ‘problema horrÃvel com o crime’, com que podemos comparar?
A comparação foi de fato feita dentro da União Européia, e, você sabe, o jeito que os formuladores de polÃticas de drogas falam sobre o assunto é focalizando o uso de drogas – ou o seu abuso. E o uso de drogas em Portugal é substancialmente maior do que em outros paÃses. Então, é quase automático que as taxas de crime serão mais altas, assim como as doenças sexualmente transmissÃveis.
E isso era verdade para Portugal nos anos 90 em relação a outros paÃses da UE?
Certo. Se você olhar para as taxas de prevalência entre Portugal e outros paÃses, Portugal esteve sempre no topo – ou perto do topo -, e com a heroÃna era claramente o lÃder em taxas de prevalência. Eles tinham um problema horrÃvel com o HIV, tinham problemas com Hepatite B e C. Esses eram grandes problemas. Eles não podiam estancar a infecção por causa de todo uso de seringas contaminadas.
É possÃvel medir a criminalidade relacionada à s drogas?
Isso é de fato um problema. Você pode inspecionar as mortes relacionadas à s drogas – haverá uma investigação, uma autópsia. Mas é realmente difÃcil classificar um crime dessa forma. Se uma pessoa que é muito pobre rouba alguém para comprar comida, ou outros bens de primeira necessidade, isso é um crime relacionado à droga? Ou relacionado à pobreza simplesmente? Ou somente impulso criminal mesmo? As estatÃsticas para crime relacionado à s drogas são bem pouco confiáveis, e em muitos paÃses não é nem levada em conta. Eu faço foco nas coisas que você pode medir, como taxas de prevalência, mortes relacionadas à s drogas e doenças sexualmente transmissÃveis – aà você pode ver o que é efetivo.
E é possÃvel medir taxas de prevalência com pesquisas? Quais os indicadores?
Vale a pena enfatizar que medir o uso de drogas e problemas relacionados não é uma ciência exata, em parte porque diversos paÃses medem coisas diferentes, então torna-se muito difÃcil fazer comparações, em parte porque é uma espécie de luxo poder fazê-lo, já que é tão caro. Frequentemente, paÃses pobres economizam com o tipo de coisas que são realmente necessárias para fazer pesquisas estatÃsticas significativas. Na UE, os estados-membros têm sido pressionados para coletar dados de maneira uniforme, levando a melhorias nos últimos 10 anos, e é por isso que considero que comparar as estatÃsticas portuguesas com outros estados da UE é mais confiável.
Muitos paÃses tratam os usuários de drogas ou vendedores de maneira diferente. O que aconteceu em Portugal?
Definitivamente, ao mesmo tempo há alguns paÃses que, tecnicamente, têm um processo de criminalizar, mas se na realidade tudo o que você faz é comprar para uso pessoal, a probabilidade de que você vá para a prisão ainda é muito baixa, mesmo passando por um processo criminal, o que já é ruim o suficiente.
No entanto, nos anos 90 em Portugal, à medida que o problema das drogas foi piorando, eles fizeram a criminalização mais duramente, e começaram de fato a prender um razoável número de cidadãos que não fizeram nada a não ser comprar drogas para consumo próprio. E isso foi um dos problemas que enfrentaram: uma vez que você introduz o medo do governo na população, o governo não pode mais oferecer opções de tratamento ou oferecer tratamento, porque cria-se uma barreira entre as instituições e as pessoas que elas querem alcançar.
O que permitiu a Portugal fazer essa importante mudança de polÃtica?
O que é tão interessante no que Portugal fez, onde, como no Brasil e certamente como nos EUA, a religião tem um papel significativos na sua cultura polÃtica, é que para lidar com o problema, eles removeram a discussão do reino polÃtico. Eles reuniram esse conselho de especialistas puramente apolÃticos: médicos, psicólogos, doutores em polÃtica de drogas, um sociólogo.
A pergunta que esse conselho teve que responder não foi qual era a polÃtica mais razoável, ou qual era a polÃtica correta; era qual a polÃtica que permitiria ao paÃs estancar de forma mais eficiente o problema do uso de drogas. A comissão trabalhou por 18 meses com esse mandato e publicou um relatório bem acadêmico e apolÃtico dizendo que a descriminalização seria a melhor maneira de permitir ao governo conter a maré do uso de drogas. Um conselho de ministros criado pelo presidente de Portugal então avaliou o relatório da comissão, e aprovou-o com unanimidade.
Por que descriminalização e não legalização?
Portugal é signatário de uma série de tratados internacionais, pressionado principalmente pelos EUA, que exige uma proibição legal do tráfico nas suas leis, de acordo com o entendimento de que o que acontece em um paÃs em termos de tráfico afeta todos os outros.
Agora há pessoas que argumentam que o que Portugal fez – com a descriminalização – de certa forma viola esses tratados. Mas Portugal adotou a posição de que você pode descriminalizar e só não pode legalizar, enquanto houver a proibição escrita na lei. O tráfico é ainda ilegal em Portugal, e as únicas coisas descriminalizadas é a compra ou posse de uma quantidade de drogas para uso pessoal por 10 dias.
O senhor tem alguma ideia de como eles definiram esse perÃodo?
O perÃodo de 10 dias foi uma forma de definir “uso pessoal”. Se você tem cocaÃna ou qualquer outra substância acima dessa quantidade, há uma boa possibilidade de que você possa distribuir para amigos ou vender. Se você tem o suficiente para uma semana ou alguns dias, então é provável que você queira usar para si mesmo.
Por que descriminalizar todas as drogas e não só a maconha? Isso foi motivado por uma preocupação com a heroÃna?
Na minha opinião, uma vez que você aceite os argumentos que persuadiram Portugal a descriminalizar – uma vez que você aceite que a descriminalização é o melhor caminho para controlar as drogas -, por que você iria excluir as drogas mais sérias dessa polÃtica? Na realidade, a heroÃna era a preocupação que os levou a agir dessa forma, que para eles era extrema.
O senhor sabe se existe um aumento do consumo das drogas sintéticas em Portugal?
Com certeza, se olharmos para os números frios, o consumo aumentou porque elas nem existiam em 2001. Mas se compararmos com outros paÃses da Europa, em Portugal o uso dessas drogas aumentou, mas muito mais lentamente.
A descriminalização teve algum efeito em especial nas crianças e adolescentes?
Se você parar de usar todo o seu dinheiro em prender, processar e enormes forças policiais, todo esse dinheiro vai ficar livre. E aà você pode gastá-lo com campanhas reais. Isso aconteceu em Portugal. Eles têm campanhas de saúde reais, dezenas de milhares de crianças andando de bicicleta por toda Lisboa, por exemplo, e as campanhas entraram na rede educacional. Dinheiro que costumava ir para o departamento de justiça criminal para prender pessoas e liberá-las sem nenhuma mudança no comportamento agora pode ser investido crianças, influenciando-as de formas efetivas sobre os riscos do uso de drogas, ou em opções de tratamento – não apenas metadona, mas aconselhamento.
E essas campanhas preventivas conseguiram atinfir mesmo as crianças e adolescentes?
As taxas de uso de drogas por adolescentes em Portugal, sem comparar com outros paÃses, mas em números absolutos, caiu nos 6 anos desde 2001, quando a lei entrou em vigor. Se você consultar qualquer literatura sobre isso, ela irá enfatizar que o grupo etário crucial são os adolescentes, o prognóstico-chave do futuro uso de drogas.
Em que idade exatamente?
Você deveria considerar dos 11 aos 15, mas na verdade o uso de drogas é chave nas idades de 15 a 19 – ensino secundário, quando ser rebelde começa, quando o uso de drogas pode se tornar aceitável, é aà que as decisões sobre os sistemas de valores das pessoas são tomadas nesse grupo etário.
O que acontece a um usuário de droga em Portugal?
De acordo com a lei portuguesa, você é enviado para uma clÃnica de dissuasão, onde trabalham médicos preparados para a redução de danos. Isso significa que você irá transformar tantos dependentes em não-dependentes que as taxas de uso de drogas irão cair…
Pode-se pode dizer – da perspectva da saúde pública – que existe algo como “dependentes transformando-se em não-dependentes”?
Sim. Muitas pessoas que eram dependentes param de usar; talvez haja uma diferença semântica, mas pela perspectiva do governo, o importante é que a pessoa não esteja usando, haja ou não uma dependência.
Esse modelo poderia ser transferido para outros paÃses? América Latina? EUA?
No fim das contas, o único argumento contra a descriminalização é que ela iria levar a um enorme aumento das drogas. Até pessoas que se opõem ao que escrevi admitem que isso não aconteceu em Portugal. Os argumentos foram: “vamos transformar Lisboa em um porto para o narcoturismo… Se você considerar as pessoas referidas como usuárias de drogas, 98% era portuguesas, e isso era assim já antes.
Antes dessa lei entrar em vigor, havia precisamente a controvérsia que se espera que haja em qualquer lugar; se você fosse um polÃtico você iria evitar o tópico para proteger sua carreira polÃtica.
Quanto ao resto, “Portugal é um paÃs pequeno, a cultura é diferente  Para mim, isso é um argumento vazio. Se fosse uma vila de 20 pessoas, você talvez não pudesse estender isso para um paÃs de 280 milhões. Mas se a descriminalização funciona para 10 milhões, por que não iria ser extensÃvel para paÃses maiores?
O presidente da Colômbia, Ãlvaro Uribe, está considerando recriminalizar as drogas, argumentando que lutar a guerra à s drogas vai de encontro a descriminalizar o consumo…
A Colômbia vive uma situação muito singular. O governo colombiano talvez não queira parar, porque os esforços paramilitares também são importantes no seu papel no combate às drogas. Portugal é mais um consumidor na divisão internacional do trabalho. É um caso peculiar.
Antonio Maria da Costa, chefe da UNODC, diz que você se livra das leis, mas não se livra do mercado ilegal, da produção, da máfia, do tráfico, então você não deveria abandonar a proibição…
A realidade é que a lógica que leva à descriminalização deveria se aplicar não apenas aos consumidores, mas aos traficantes. Não faz sentido, logicamente, criminalizar um lado e não o outro, os dois lados de uma mesma transação. Ao mesmo tempo, há essas barreiras que mencionei em termos de tratados internacionais.
Independentemente do caso dos traficantes, criminalizar usuários de drogas, botar pessoas na prisão ou arrastá-las para o sistema de justiça criminal, forçá-las a ter advogados e ameaçá-las de cadeia é uma coisa terrÃvel para se fazer com as pessoas – e é contraproducente. Mesmo sendo apenas um passo gradual, é melhor do que nada.
Quando falamos de narcoturismo, naturalmente nós pensamos em Amsterdã e a descriminalização. É um caso diferente?
A razão pela qual as pessoas vão a Amsterdã não é apenas a facilidade legal de se obter maconha, porque na verdade você pode fazê-lo em quase qualquer lugar sem ir para a prisão. Amsterdã é um caso especial por causa de toda a cultura em torno dessa cidade, onde há os cafés… Ela se tornou uma cidade de hedonismo; é por isso que as pessoas a visitam. O fato é que eles nunca de fato descriminalizaram as drogas; eles apenas adotaram uma polÃtica de vista grossa. Assim, não acho que seja comparável ao caso de Portugual.