“É preciso tirar do armário as vozes libertárias, anti-proibicionistas. Elas precisam correr riscos mas têm de se pronunciar com desassombro e clareza”
O cientista polÃtico e antropólogo Luiz Eduardo Soares é muito mais do que um acadêmico engajado intelectualmente contra o proibicionismo (o que já seria ótimo). Viveu, digamos assim, “o lado de lá”, e sentiu na pele os entraves institucionais kafkanianos que impedem o poder público de atacar os probelmas que realmente importam. Foi secretário de segurança do rio de Janeiro e Secretário Nacional de Segurança Pública. Com esta experiência, pode dizer explicar a situação com clareza, como quando aponta que ” O que se passa é o seguinte: milhares de jovens pobres são capturados com drogas e, independentemente da quantidade, são rotulados como traficantes e trancafiados nessas entidades, que muitas vezes não passam de simulacros de prisões. São, assim, praticamente condenados a uma carreira no crime”.
Nesta entrevista concedida ao DAR, aponta não só os efeitos do proibicionismo e seu fracasso, como os limites de uma concepção polÃtica que encara punição e justiça como sinônimos, segurança e arbÃtrio como causa e consequência. Além de esboçar propostas de alternativas, como “ajustar as contas com a segurança e a justiça criminal, isto é, estender a transição democrática a essas áreas, mudando-as em profundidade. A começar pelo modelo de polÃcia que herdamos da ditadura e permanece intocado”.
Confira abaixo a Ãntegra da conversa com o autor de, entre outras obras, Elite da Tropa e Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro
DAR – Como avalia o estágio atual de penetração do debate de drogas na sociedade brasileira? Acredita que houve avanço nos últimos anos?
Luiz Eduardo Soares – Debate? Que debate? O que há é a movimentação de grupos bastante especÃficos e um ou outro editorial na grande imprensa. Fora isso, o que há são os pesquisadores devotados e respeitáveis e a admirável e incansável militância anti-proibicionista. O resto é marasmo, são platitudes preconceituosas, retórica conservadora com tinturas diversas, estigmas e a pasmaceira de sempre ante a máquina feroz de morte e irracionalidade da polÃtica vigente, que criminaliza os jovens pobres e negros, estimula a corrupção policial, o domÃnio territorial pelo tráfico e o comércio ilegal de armas, com seus corolários sangrentos.
– Por que ainda há tanta resistência – mesmo nos ditos setores “progressistas” – quanto a enfrentar com seriedade este debate? A quem interessa a manutenção do atual status proibicionista?
Luiz Eduardo Soares – A rigor a situação atual não interessa a ninguém, salvo os segmentos corruptos da polÃcia, das milÃcias e dos polÃticos a eles aliados. O senso comum supõe que tudo o que existe expressa algum interesse e se realiza segundo determinado projeto de poder. Não é assim. Há efeitos perversos e efeitos de agregação, como dizemos os sociólogos. Ninguém com autoridade para mudar dispõe-se a agir por razões eleitoreiras, uma vez que formou-se uma opinião majoritária inteiramente reacionária, nessa matéria, apoiada em mitos, erros empÃricos e ignorância da realidade mundial e dos resultados das pesquisas.
Para comprová-lo, basta ler o que escreveu Cesar Maia, dirigente do DEM, em seu ex-Blog. Disse que o ex-presidente FHC, ao criticar a polÃtica repressiva da guerra à s drogas e reconhecer a necessidade de mudanças, ainda que tÃmidas, estaria prestando um desserviço à oposição, porque 80% da sociedade brasileira e 95% dos setores mais pobres eram contrários a qualquer mudança liberalizante. Cesar Maia condenava FHC por mexer em casa de marimbondo e se isolar, na opinião pública. Ou seja, segundo Cesar o lÃder polÃtico não deve ter compromisso com o que seja justo, necessário e verdadeiro, mas com o que seja eleitoralmente conveniente e palatável. Claro que assim não vamos a lugar nenhum. Mesmo fora da polÃtica partidária, há uma certa polÃtica na sociedade que amarra lideranças sociais aos tabus anti-drogas, subtraindo-lhes coragem de se pronunciar contra a corrente dominante.
É como as questões do aborto, da homofobia ou das polÃticas afirmativas contra o racismo. Não se trata apenas de troca de informações, idéias, conhecimento e opiniões, mas de valores arraigados com base em sÃmbolos e tabus vigorosos. Os crÃticos se sentem envergonhados e se submetem à silenciosa pressão da maioria. Portanto, é preciso tirar do armário as vozes libertárias, anti-proibicionistas. Elas precisam correr riscos mas têm de se pronunciar com desassombro e clareza. Defender a descriminalização das drogas ou sua legalização não significa que se esteja elogiando as drogas, estimulando seu consumo ou admitindo que se consome. Eu, por exemplo, assumo publicamente essa posição minoritária desde os anos 1970. Não uso drogas nem bebo. Mas não admito que o Estado interfira em minhas decisões privadas. E repudio a hipocrisia que libera o cigarro e o álcool e proÃbe a maconha, por exemplo. Assim como me nego a aceitar que um adolescente pobre e negro, de 18 anos, seja declarado criminoso e enjaulado porque vendeu maconha a outro, da mesma idade, mas de outra classe social e outra cor de pele, paternalÃsticamente definido como vÃtima: o consumidor. Bem, mas aà já entramos na discussão substantiva.
– Ultimamente a mÃdia tem dado destaque a movimentações institucionais e parlamentares no sentido de mudanças na atual lei drogas. Acredita na viabilidade dessas mudanças? Se sim, até onde elas iriam num primeiro momento?
Luiz Eduardo Soares – A atual polÃtica é um rotundo e eloqüente fracasso. Não só no Brasil. Por outro lado, o mal que a atual polÃtica de drogas provoca está aÃ, à vista de todos. Acredito que contra os tabus e a ignorância, contra a demagogia e o oportunismo eleitorais, contra o moralismo reacionário predominante, contra o populismo penal ainda há de se afirmar uma posição mais sensata, um pouquinho mais sensata. Acho que mais cedo ou mais tarde a estupidez da polÃtica vigente há de se desmascarar, revelando-se como aquilo que é. E creio que, apesar de tudo, haveremos de avançar, como avança o mundo à nossa volta, da Argentina à Suiça, de Portugal à Holanda. Não tenho dúvida que mesmo nos EUA –matriz do atraso e do obscurantismo nessa matéria– há uma consciência crÃtica bastante forte, inclusive dentro das polÃcias e do governo, mas a coalizão da direita não cessa de freiar o processo com suas chantagens.
Enfim, acredito que haverá progresso, ainda que não linear. O processo vai ser difÃcil, tormentoso e pleno de contradições. Hoje, o que parece começar a avançar é a descriminalização do usuário. Bem, acho que está errado em sua unilateralidade e que é injusto, mas não nego que seja melhor do que nada e que possa servir à abertura de portas para avanços mais consistentes no futuro.
– Com sua experiência como gestor público, que tipo de efeitos a chamada Guerra à s drogas tem sobre a segurança pública?
Luiz Eduardo Soares – A guerra à s drogas, no Brasil (e não só), tem os efeitos mais nefastos: estimula a corrupção policial e o desenvolvimento das milÃcias, e alimenta o tráfico de armas, sem o qual não haveria tanta violência letal, nem o domÃnio territorial, que veta a milhões de pessoas o acesso aos benefÃcios derivados do estado democrático de Direito. Além disso, há dinâmicas polÃticas brutais e degradadas, decorrentes desses fenômenos que acabo de enumerar. E mais: avança a criminalização da pobreza. Desafio qualquer leitor a encontrar um adolescente de classe média, branco e bem posto na vida, que esteja internado numa entidade sócio-educativa. Se houver será a exceção a confirmar a regra.
O que se passa é o seguinte: milhares de jovens pobres são capturados com drogas e, independentemente da quantidade, são rotulados como traficantes e trancafiados nessas entidades, que muitas vezes não passam de simulacros de prisões. São, assim, praticamente condenados a uma carreira no crime. O jovem rico e branco, capturado com a mesma quantidade, ou é solto mediante a propina paga pelos pais, ou é classificado como “dependente”, “viciado”, usuário, consumidor. Resultado: vai para casa. Isso é o que acontece, porque a legislação faculta ao juiz arbitrar se a quantidade recolhida com o capturado indicia tráfico ou consumo.
E atenção: a imagem usual do vendedor de drogas como o dragão da maldade, crudelÃssimo e violento, é uma construção social estigmatizante que costuma ser aplicada de modo generalizante e que funciona como instrumento de reprodução de preconceitos e desigualdades sociais. Raros são aqueles que agem em conformidade com a descrição que identifica o sujeito com a monstruosidade inumana.
– De que forma e por que as polÃticas repressivas atuam de maneira tão seletiva, incidindo prioritariamente sobre os pobres? Por que as polÃticas de segurança pública são tão voltadas para a saÃda penal? Como fazer para alterar esse quadro?
Luiz Eduardo Soares – A sociedade e, por extensão, nossos polÃticos, em sua maioria, tendem a confundir justiça com punição e punição com privação de liberdade. Ficam de fora todas as dimensões da reparação da vÃtima, de prevenção da violência e do crime, e de construção de novas oportunidades e vias a quem transgrediu as leis ou as regras do convÃvio social. A lei, em sua forma pura e ideal, é igual para todos –afinal, justiça é equidade. No entanto, como nossa estrutura social é muito desigual–e nossa cultura consagra muitas delas–, e como nossas instituições de segurança e justiça criminal (assim como as polÃticas penais e de segurança) são fortemente marcadas por tais estruturas e por tal cultura, as leis, quando são aplicadas, submetem-se à refração imposta por filtros de classe, cor, idade, gênero, opção sexual, religião e outros. Daà a dramática desigualdade no acesso à Justiça –que talvez seja a forma mais deletéria e dura de nossas desigualdades e a mais negligenciada, até porque corrói a legitimidade da institucionalidade polÃtica–, que começa na abordagem policial e termina na prolatação das sentenças e em sua execução no sistema penitenciário, que é a negação selvagem de nossas pretensões civilizacionais. O que e como fazer? Ajustar as contas com a segurança e a justiça criminal, isto é, estender a transição democrática a essas áreas, mudando-as em profundidade. A começar pelo modelo de polÃcia que herdamos da ditadura e permanece intocado.
– Quais os principais avanços que uma mudança na proibição das drogas traria? Como se enfrentaria o problema no abuso do uso, por exemplo?
Luiz Eduardo Soares – Sejamos pragmáticos: o verdadeiro debate não é “devemos ou não proibir o acesso à s drogas”, do álcool à cocaÃna. Não é esse o debate porque a hipótese do impedimento desse acesso não existe, na realidade prática. Ou seja, o acesso é um fato em todo mundo democrático ou não totalitário e teocrático. E não porque as polÃcias sejam incompetentes. Os EUA gastaram 500 bilhões de dólares na guerra à s drogas, desde sua declaração, em meados dos anos 1990. Mesmo assim, o consumo não foi alterado. Portanto, não se pode dizer que faltou dinheiro, pessoal, equipamento, qualidade tecnológica, competência técnica, nada disso. O fato é que é simplesmente impossÃvel controlar uma dinâmica desse tipo, quando, na sociedade, há demanda e oferta. O fato é este. Ponto final. Sejamos realistas. Rendamo-nos aos fatos.
Aliás, no fundo o que esse fato demonstra é muito bom: a sociedade vence o Estado, para o bem e para o mal. De todo modo, é necessário ter os pés no chão e reconhecer os fatos como eles são. A verdadeira questão sempre mascarada é a seguinte: como não está ao nosso alcance impedir o acesso à s substâncias que chamamos drogas, temos de nos perguntar: em que contexto jurÃdico-polÃtico seria preferÃvel vivenciar esta iniludÃvel realidade? Dizendo-o de outro modo: em que contexto normativo seria menos mau lidar com a realidade do acesso à s drogas? O contexto atual, em que drogas são problema de polÃcia e cadeia, isto é, de polÃtica criminal? Ou um contexto diferente em que elas fossem objeto de saúde pública e educação? Eu aposto no segundo caminho. Ele não vai evitar o abuso, mas pelo menos não vai provocar outros males. Das drogas e de seus efeitos destrutivos nós nunca nos livraremos, mas poderemos aprender a conviver melhor com elas, a ponto, inclusive, de reduzir o sofrimento humano que seu abuso provoca.
Vejamos o caso mais grave: o álcool. Há, no Brasil, mais de 15 milhões de alcoólicos e, mesmo assim –felizmente– ninguém está propondo a proibição e a criminalização do usuário. A não criminalização tem impedido o abuso, a dependência? Não. Mas acho que todos concordariam que a via da criminalização tampouco resolveria o abuso e ainda implicaria conseqüências coletivas desastrosas. Eis, por fim, um exemplo virtuoso e uma lição: temos diminuÃdo bastante o consumo de cigarro com polÃticas inteligentes que disciplinam a venda e o consumo, e criam um ambiente cultural avesso ao uso. Esse é o caminho.