Ainda acham que maconha é a erva do diabo
Maior especialista brasileiro em psicotrópicos, Elisaldo Carlini preside amanhã um simpósio sobre uso medicinal da maconha; aqui, ele diz estar na hora de o paÃs reconhecer os benefÃcios terapêuticos da cânabis
Filipe Redondo/Folha Imagem |
Carlini, psicofarmacologista e presidente do
Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas
FERNANDA BASSETTE
DA REPORTAGEM LOCAL
Amanhã, especialistas se reúnem em São Paulo, em um simpósio internacional que vai debater argumentos cientÃficos envolvendo o uso terapêutico da maconha e a criação de uma agência brasileira reguladora da cânabis medicinal. Elisaldo Carlini, professor da Unifesp, psicofarmacologista e presidente do simpósio, falou à Folha sobre o preconceito e o conservadorismo que, segundo ele, atrapalham a pesquisa do tema no paÃs.
FOLHA – O que há de comprovado no uso terapêutico da maconha?
ELISALDO CARLINI – O primeiro benefÃcio é a diminuição da náusea e do vômito induzidos pela quimioterapia. Já há ao menos 30 trabalhos cientÃficos comprovando esse uso. O segundo é para caquexia (grau extremo de emagrecimento). A administração da maconha nesses casos restaura, em parte, a perda de apetite. O terceiro uso aprovado é para combater dores resultantes de problemas nos nervos, o que causa espasmos musculares. São dores comuns em pacientes que sofrem de esclerose múltipla.
FOLHA – Há quantos anos esses benefÃcios são conhecidos?
CARLINI – Há muito tempo. No século 19, a maconha era considerada excelente para as dores de origem nervosa.
FOLHA – Existem medicamentos feitos à base de maconha?
CARLINI – Até o momento, existem quatro licenciados e amplamente prescritos. Um deles, feito no Canadá com uma substância sintética, está em uso há 20 anos. Um outro, usando um dos princÃpios ativos, foi sintetizado nos EUA, é prescrito em cápsulas e exportado. O terceiro é um subproduto da própria maconha, sintetizado na Inglaterra e vendido em forma de spray bucal. O quarto, feito na Holanda, é enviado pelo governo para as farmácias manipularem em forma de cigarro.
FOLHA – E por que o Brasil nunca usou esses medicamentos?
CARLINI – Porque a maconha ainda é condenada pela ONU. Na década de 40, ela foi proibida em quase todo o mundo. A partir de 1961, uma convenção da ONU a classificou como uma droga especialmente perigosa e, então, foi proibida no mundo.
FOLHA – É para estudar esse uso terapêutico que vocês vão discutir a criação da agência reguladora?
CARLINI – Sim. Um grupo de cientistas, do qual eu faço parte, acredita que está na hora de o Brasil reconhecer os benefÃcios desses medicamentos. Mas, para você poder desenvolvê-los, a ONU recomenda que seja criada uma agência regulamentadora. Estamos tentando criar essa agência para fazer estudos com menos preconceito.
FOLHA – Como a pesquisa é feita hoje, no Brasil?
CARLINI – Há uma dificuldade imensa em importar o princÃpio ativo. É preciso apresentar um projeto, que tem que ser aprovado em várias instâncias do governo. A partir daÃ, o Brasil envia um pedido de amostras ao governo americano, que decidirá se manda ou não. Quando mandam, a burocracia é medonha. Os produtos chegam ao porto do Rio e é uma desgraça fazer o desembaraço com a Vigilância Sanitária.
FOLHA – A maconha medicinal causa dependência?
CARLINI – Se o paciente abusar, pode ficar dependente sim e ter vários efeitos colaterais. Mas não produz uma dependência no mesmo grau que a morfina ou a heroÃna. Podem dizer o que quiser, mas não há provas cientÃficas sobre isso. O uso medicinal inclui a administração de doses adequadas, por um perÃodo determinado.
FOLHA – Quantos paÃses hoje usam a maconha como medicamento?
CARLINI – Além dos quatro fabricantes dos medicamentos, mais de 20 importam.
FOLHA – O Brasil tem sinalizado interesse com relação a isso?
CARLINI – Recebo pedidos de pessoas de diversas cidades querendo saber se existe um caminho legal para conseguir a maconha terapêutica. São pessoas com problemas de saúde e que descobriram que a erva pode ser útil em seus tratamentos. Elas acabam comprando a droga no submundo e se sentem muito mal. Também há duas ou três ONGs no Brasil lutando para isso. Em um simpósio, há alguns anos, uma senhora da plateia levantou e falou “eu tenho esclerose múltipla e gostaria de fazer um apelo à s autoridades: eu não aguento mais ter que comprar maconha de traficantes”. Ela não é a única. Há uma série de pacientes que usam a maconha comprada ilegalmente para tratar a saúde.
FOLHA – E o governo brasileiro? Tem mostrado interesse em regulamentar a maconha medicinal?
CARLINI – Não que eu saiba. Na realidade, ainda há muito conservadorismo. Falar desse assunto é cutucar um vespeiro. Tem gente que ainda acha que a maconha é a erva do diabo, coisa de satã. Querem condenar a maconha a todo custo. Então certamente vamos ter problemas. Vão alegar que o simpósio seria o primeiro passo para o “liberou total” da erva como droga recreativa. E o nosso objetivo é puramente médico.
FOLHA – Então o Brasil está longe de aprovar o uso como remédio.
CARLINI – Sim. Nesse momento estamos a muitos passos de aprovar. Existem alguns movimentos acanhados. A maconha continua classificada pela ONU como droga de alto risco. E o Brasil segue essa convenção, quase como se fosse uma BÃblia. Não aceitam que há coisas que evoluem com o tempo.
FOLHA – Quantos pacientes seriam beneficiados, caso a maconha medicinal fosse aprovada aqui?
CARLINI – Imagino que sejam dezenas de milhares.