Hoje o DDD não passa necessariamente perto do tema das drogas, mas faz uma menção necessária: um adeus ao escritor português José Saramago. Não queremos aqui, evidentemente, canonizar o falecido, torná-lo santo – ele odiaria tamanha reverência – mas apontar com sobriedade sua pertinência para o mundo em que vivemos, além de lembrarmos um pouco de suas palavras, em prosa e verso.
Intelectual raro nos dias de hoje, oriundo da classe trabalhadora assim como Machado de Assis, nunca esqueceu os oprimidos. Por mais que panfletos como a Veja ou os cadernos de cultura dos grandes jornais queiram fazer dele um anti-democrata, escantear sua obra como “de estilo e esquerdista”, a importância de Saramago vai muito além dos olhos turvos e entorpecidos destes “jornalistas”.
A Folha de S. Paulo, que lucrou com sua morte fazendo um caderno especial, não se esquivou de chamá-lo de “autoritário” por apoiar Cuba e a esquerda portuguesa. O colunista João Pereira Coutinho, que o classificou como anti-democrático, esqueceu-se de lembrar que ele lutava contra o regime assassino do General Salázar, que ele impulsionou a luta contra a ditadura que culminou na Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974. Tal revolução é hoje responsável maior pelos grandes avanços humanos que vemos em Portugal. Nossa antiga metrópole hoje caminha a largos passos para a legalização das drogas (descriminalizou o porte), permite o aborto legal e garantido pelo Estado e autoriza o casamento entre homossexuais.
Ele foi alguém que nunca calou diante da barbárie e soube criticar até quem apoiava, como fez com Cuba. Criticava no mundo capitalista a fome, a morte, o isolamento, o consumo, o emburrecimento, a indiferença, o entorpecimento da razão, da sensibilidade. Lutava pela solidariedade perdida.
Muito de ser humano reside na capacidade de sentir a tristeza pela partida de alguém que nunca conhecemos, a mesma que Saramago, num derradeiro ato de solidariedade fez, ao dedicar a renda de uma reedição de livros para as vÃtimas do Haiti, sem hipocrisia, sem paternalismo, sem segundos interesses.
Saramago, foi o nome dado ao seu pai. É o nome de uma planta portuguesa (saramago-maior) que é utilizada como alimentação para os mais pobres em tempos dÃficeis. Generoso, nos proveu desse alimento d’alma quando tudo que nos restava era razão entorpecida, esquecimento e indiferença. É impossÃvel passar pelo rio de sua obra intacto.
Também nos deixa suas posições pungentes sobre a fé cristã são importantes para questionar a ingerência da religião nas polÃticas públicas e na constituição de uma moral opressora e totalizante, que penaliza os que não comungam.
Deixamos, sem mais atrapalhar o gênio, um poema e um artigo, sobre o impune massacre de Eldorado dos Carajás, mais uma prova de nossa justiça seletiva. O texto é um prefácio do livro Terra e pode ser encontrado aqui. O poema segue ao final do post.
Ao José, deixamos o desejo da paz que ele serenamente conquistou. E a certeza de que grandes pessoas deixam heranças generosas para toda humanidade.
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aà se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.