“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
Nesta edição trazemos artigo gentilmente enviado pelo professor André TorÃbio Dantas, coordenador do Grupo de Estudos “Sociedade, Saúde e Cultura na América Latinaâ€, no Núcleo de Estudos das Américas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). André acredita que “Avançando no pensamento que se direciona para a saúde e opções singulares e únicas de cada corpo e espÃrito, podemos afirmar que se houver equilÃbrio na vida, o instrumento droga não é o problema” e nos traz a importante reflexão de como “a visão incompleta das possibilidades humanas inviabiliza a superação de crises e preconceitos”, apontando que “o rompimento com os pensamentos rÃgidos e conservadores germinam possibilidades de perspectivas inovadoras”. Confira texto na Ãntegra abaixo:
A DINÂMICA DO USO ABUSIVO DE DROGAS LÃCITAS E ILÃCITAS NOS PROCESSOS INTERDEPENDENTES QUÃMICOS DO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO
André LuÃs TorÃbio Dantas- PPFH/UERJ
Meu principal interesse com essa reflexão concentra-se em colocar em discussão as possibilidades viáveis que proponham desconstruções de conceitos e idéias que atualmente são cristalizadas por respeitadas perspectivas cientÃficas tradicionais do conhecimento médico pós-moderno, além de questionar a hegemônica aceitação em aparência de realidade que estas “verdades cientÃficas†possuem no senso comum imaginário dominante de grande parcela da sociedade brasileira.
O significado estático e absoluto da conceituação denominada “dependência quÃmica†de drogas lÃcitas ou ilÃcitas, e os termos dogmatizados e pejorativos que “viciadoâ€, “toxicômano†e “drogado†carregam legitimados por esta definição cientÃfica médica moderna, procuram inviabilizar alternativas de outras visões de mundo que não sejam fundamentadas na lógica mecanicista das sociedades ocidentais que se desenvolveram influenciadas principalmente pelos ideais liberais das Revoluções Francesa e Industrial.
Diariamente estamos em contato com a falência e a inabilidade cientificista que assiste indivÃduos apresentando problemas com o uso abusivo e compulsivo de drogas lÃcitas e ilÃcitas, crises nos cuidados assistenciais fundamentais, que são agravados pelo estigma moralista que distancia a metodologia da abordagem médica pós-moderna com os cuidados singulares sensÃveis e humanÃsticos que a Saúde Pública tem o dever constitucional de cumprir.
Concomitantemente ondas crescentes de violências, acidentes e crimes que ocorrem nestas sociedades, acompanhadas por situações de desequilÃbrios econômicos, sociais e comportamentos competitivos individualistas, estão sendo relacionadas e determinadas devido ao uso abusivo e compulsivo de drogas que ocorrem com um crescente segmento populacional.
Tudo isso são facetas diferentes de uma só crise, que é, essencialmente, oriunda das tensões provenientes de uma visão de mundo que tenta desindividualizar e desumanizar os cidadãos.
Vivemos em sociedades humanas interligadas através dos processos interdependentes dos fenômenos quÃmicos, biológicos, psicológicos, sociais, polÃticos e ambientais que estão sendo especializadas e massificadas por uma visão de mundo positivista que criminaliza as identidades sociais e culturais dos indivÃduos.
Procuramos com este artigo, contextualizado com o meu trabalho na Coordenação do Grupo de Estudos denominado “Sociedade, Saúde e Cultura na América Latinaâ€, no Núcleo de Estudos das Américas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, proporcionar alternativas conceituais que contribuam com os movimentos sociais que se organizam objetivando mudanças nas mentalidades únicas, hegemônicas e exclusivas. Como enfatiza a Dra Hannah Arendt â€Nós só existimos em pluralidade. Os homens não nascem para morrer, mas para recomeçarem-Arendt, Hannah; A condição humana; 2006,â€
Abordamos análises sobre as drogas, usuários e os contextos que os envolvem sem a “capa†da interpretação midiática, portanto, não a resumiremos com adjetivos antagônicos “maléficos†ou “benéficosâ€. Questões instrumentais como a dosagem e a receptividade singular que cada indivÃduo possui devem ser consideradas. Segundo Domingos B. Silva Sá, “De fato, o ser humano é, ele próprio, psicoativo. Busca estimulações de toda ordem que reveza, porém, com momentos de calma e relaxamento. Além disso, sonha fantasia, delira e transcende. E é pedagógico lembrar que a história registra muitas formas de agir sobre o psiquismo, além do recurso a substâncias psicotrópicas. As danças, os rituais as seitas, o êxtase ascético, o poder, o jejum, o jogo, a música, a arte e a poesia constituem parte do arsenal psicoativo que a nossa história revela, nele incluÃdas as drogas. Em resumo, parece ser consensual a centralidade na pessoa humana – e não na droga – isto é essencial em qualquer ÂÂÂuso de drogas psicoativas – lÃcitas e ilÃcitas… – Bocayuva, Izabela; O Pharmakon, isto é, a droga: uma questão de dosagem ou a dosagem em questão; 2010â€.
Podemos incluir na lista das drogas lÃcitas ou ilÃcitas determinadas programações de televisão, sexo, exercÃcios em academias de ginásticas, compras em Shoppings, isto é, tudo que possa causar “dependência quÃmicaâ€, já que dinamizam reações de recompensas neuroquÃmicas e biocósmicas nos indivÃduos.
De acordo com Izabela Bocayuva “A educação num sentido radical ensina a liberdade. Liberdade não no sentido de uma incondicionalidade desenfreada, pois isso não seria liberdade, mas sim desgoverno. Liberdade em sentido próprio consiste na capacidade de criar corajosamente e com temperança uma ou mais saÃdas para cada situação dada, exatamente o que chamamos acima de atitude de prontidão, uma atitude de quem – sem nenhum exagero – se encontra de certa forma à beira do abismo, isto é, numa situação tal que precisa ser apropriada a cada vez, que proporciona o solo a ser pisado por cada um de nós a cada passo, um solo que vai se constituindo à medida que vamos caminhando. Não podemos jamais nos esquivarmos dessa condição de beira do abismo. É ela que nos lança na vida como ela mesma é: uma constante surpresa, muito embora procuremos encontrar meios de burlar a surpresa instaurando ou nos metendo em “confortáveisâ€, mas ao mesmo tempo, sufocantes rotinas. – Bocayuva, Isabel; O Pharmakon, isto é, a droga: uma questão de dosagem ou a dosagem em questão; 2010â€
Vivemos em uma sociedade contextualizada nos processos interdependentes de consumo dos produtos e serviços quÃmicos, com as mais diversas “drogas†simbolizadas através de imagens e informações. Novamente Izabela Bocayuva contribui com uma reflexão onde questiona e sugere “Enquanto a sociedade se parte e divide, enquanto ela exclui de inÃcio, enquanto ela cria a fantasia da falta, enquanto ela esquizofreniza, não haverá meios de ela gerar homens verdadeiramente livres e fortes, carentes de nada que escravize. Mas haverá chance de haver hoje ou jamais uma sociedade que não esquizofrenize? Talvez não praticamente, tal como seria impossÃvel o caso de haver uma situação de saúde sem nenhum caso de doença. A saúde implica o melhor relacionamento possÃvel com a doença. – Bocayuva, Izabela; O Pharmakon, isto é, a droga: uma questão de dosagem ou a dosagem em questão; 2010â€
Avançando no pensamento que se direciona para a saúde e opções singulares e únicas de cada corpo e espÃrito, podemos afirmar que se houver equilÃbrio na vida, o instrumento droga não é o problema. A justa decisão da opção do uso quÃmico precisa ser medida a cada momento, nas diversas pluralidades que se apresentam magicamente através das surpresas geradas pelo desejo de viver.
A violência que acompanha o imaginário simbólico fundamentalista quÃmico ilegal e de criminalidade no Brasil atual pode ser analisado através de uma afirmação da Professora Alba Zaluar que diz “O crime organizado desenvolveu-se nos atuais nÃveis porque tais práticas [o jogo, as drogas, a diversão principalmente para os jovens] socialmente aceitáveis e valorizadas foram proibidas por força da lei, possibilitando nÃveis inigualáveis de lucros a quem se dispõe a negociar com esses bens. Os lucros não são gerados pela produtividade ou pela exploração maior do trabalho, mas pela própria ilegalidade do empreendimento. Com tanto lucro, fica fácil corromper policiais e, como não há lei para proteger os negócios desse setor da economia, quaisquer conflitos e disputas são resolvidos pela violência. As taxas de crimes violentos aumentaram em todos os paÃses em que o combate à droga apela para a repressão, inclusive no Brasil (Zaluar, 1999)â€.
Nosso relacionamento com as mais diversas “drogas†não devem ser determinados por um modo normativo e definitivo, ou que procure uma regulação “neutra†que universalize todos os indivÃduos, culturas e comportamentos. As identidades culturais, origens e raÃzes dos cidadãos produzem valores diversos, singulares, que não são modelados por determinações cientificistas.
Procuramos suscitar as possibilidades de alternativas conceituais que ampliem portais para a existência de outras percepções que não sejam a já aceita conceituação denominada “dependência quÃmicaâ€. Objetivamos que os indivÃduos quÃmicos em desequilÃbrio no nosso universo quÃmico não sejam dogmatizados e medicalizados para se tornarem seres estáticos e eternamente adoecidos, limitados por impotências e controlados por adestramentos do saber cientÃfico médico dito atualizado e moderno, e assim, terem unicamente a opção de conviverem com “vida metafórica†através das limitações elaboradas pela realidade inventada dos valores aceitos de nossa sociedade brasileira dita Pós-Moderna.
As doenças tornam-se manifestas quando o corpo perde o equilÃbrio ao encontrar-se em um estado de desarmonia com ele próprio, com a famÃlia ou com os significados simbólicos aceitos pelas pluralidades culturais que se interligam socialmente.
Nosso sistema cultural, social, econômico e polÃtico, fundamentado em uma perspectiva cartesiana, fragmentada e reducionista, é uma séria ameaça a harmonia do mundo quÃmico interligado.
A noção de equilÃbrio dinâmico quÃmico é um conceito útil para definir saúde, envolvendo os aspectos quÃmicos fÃsicos, psicológicos e cósmicos que estão interligados com a vida. Ser saudável significa estar em sintonia consigo mesmo e também com o contexto cósmico.
Devido ao fundamentalismo conceitual estático do saber médico moderno da “dependência quÃmicaâ€, o indivÃduo acometido do uso abusivo e compulsivo de drogas lÃcitas ou ilÃcitas está condenado à impossibilidade de se libertar do estresse, a optar por um modo saudável identificado com sua identidade. A permanência do adoecimento do dito “dependente quÃmico†com uma aparência de saúde se estratifica através da única alternativa apresentada no diagnóstico da “dependência quÃmicaâ€: abstinência e aceitação de não mais instrumentalizar o uso de uma, algumas ou várias drogas lÃcitas ou ilÃcitas. Esta submissão associada a uma reconstrução condicionada de um modelo de auto-estima, não aborta as reações quÃmicas sociais de violência, crimes, acidentes e suicÃdios, por serem patologias sociais interligadas com aquele corpo quÃmico momentaneamente “neutralizadoâ€, pacificado e domado.
Todas essas fugas são formas de saúdes precárias. Curar a “doença da dependência quÃmica†não tornará o contexto quÃmico saudável, e o controle através do saber positivista médico pós-moderno, enquanto a situação de desequilÃbrio e desarmonia persistirem, transferirá as conseqüências comportamentais do indivÃduo quÃmico castrado do cio, para outros diagnósticos médicos especializados, como doenças mentais ou comportamentos anti-sociais. As transferências de patologias, que também podem ser apresentadas concomitantemente, alimentam uma Indústria Capitalista Liberal QuÃmica que crescentemente aumenta seu poder econômico na nossa sociedade contemporânea de consumos de produtos e serviços quÃmicos.
A origem e o desenvolvimento de diversas patologias mentais quÃmicas se desenvolvem na interação dos indivÃduos com seus familiares, amigos e outros grupos sociais. Essas doenças devem ser compreendidas com a percepção da interligação destes organismos individuais nos seus contextos culturais, sociais e cósmicos.
Em nome do progresso, modernidade e crescimento econômico, valores legitimados e doutrinados através do controle da informação midiática gestionada por uma elite econômica, desenvolveram imaginários tecnológicos médicos que devastaram a biodiversidade cultural de resistência coletiva oculta nas memórias afetivas dos cidadãos.
A visão incompleta das possibilidades humanas inviabiliza a superação de crises e preconceitos. O rompimento com os pensamentos rÃgidos e conservadores germinam possibilidades de perspectivas inovadoras.
As desconstruções dos valores cientificistas liberais pós-modernos apresentadas criticamente no conceito do diagnóstico da “dependência quÃmicaâ€, procuram viabilizar as mudanças de paradigmas que substituem a visão especialista e definitiva do racionalismo do conhecimento médico, pelas desconhecidas possibilidades humanas de resgates da vida através do reencontro com os significados de sua identidade cultural e individual.
BIBLIOGRAFIA
Arendt, Hannah; A condição humana; 2006
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Zaluar, Alba. Drogas e Violência. Seminário Nacional: Universidade, Educação e Drogas, RJ, 2007
Grupo de Estudos denominado “Sociedade, Saúde e Cultura na América Latinaâ€, no Núcleo de Estudos das Américas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro