É um grave erro estudar as leis penais de um povo como se fossem expressão de seu caráter; as leis não revelam o que um povo é, mas o que lhe parece estranho, extrangeiro, singular, extraordinário. As leis se referem à s exceções à moralidade dos costumes; e as penas mais duras atingem o que está conforme aos costumes do povo vizinho. Assim, para os vaabitas¹ há apenas dois pecados mortais: ter outro deus que não o seu e – fumar (que eles chamam de “o modo infame de beber”). “E o assassinato e o adultério?” – perguntou, assombrado, o inglês que tomou conhecimento disso. “Deus é clemente e misericordioso!” – respondeu o velho chefe. – De modo igual, entre os antigos romanos havia a idéia de que uma mulher só podia pecar mortalmente de duas maneiras: cometendo o adultério e – bebendo vinho. Catão, o Velho, achava que o beijo entre parentes se tornara costume apenas para manter as mulheres sobre controle nesse ponto; pois o beijo significava: ela está cheirando a vinho? Realmente, mulheres flagradas com vinho foram condenadas à morte: e não simplesmente porque à s vezes, sob o efeito do vinho, as mulheres são incapazes de dizer “não”; os romanos temiam sobretudo o espÃrito orgiástico e dionisÃaco que vez por outra assolava as mulheres do Sul, quando o vinho ainda era novo na Europa: para eles, aquilo era um monstruoso exotismo, que transtornava o fundamento da sensibilidade romana; era quase que traição a Roma, a incorporação do estrangeiro.
Aforismo 43, A Gaia Ciência, 1882.
Friedrich Nietzsche
vaabitas¹: seita muçulmana, fundada no século XVIII.