Vera Malaguti, socióloga e secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), concedeu duas entrevistas esclarecedoras sobre os últimos acontecimentos no Rio de Janeiro. A primeira foi para o Brasil de Fato; a segunda para o Correio Cidadania.
Ela também integrou a primeira mesa do Seminário sobre Encarceramento em massa, promovido pelo Tribunal Popular. O DAR esteve presente. Confira os vÃdeos da fala de Vera Malaguti: parte 1 / parte 2 / parte 3
Raquel Júnia
EPSJV-Fiocruz
Nesta entrevista, a socióloga Vera Malaguti faz uma análise da situação de violência do Rio de Janeiro. Para ela, as últimas ações da polÃcia do Rio e das forças armadas no Complexo do Alemão demonstram que estamos seguindo aqui no Brasil um modelo fracassado de guerra contra as drogas. Vera Malaguti Batista é secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora de criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Temos hoje uma polÃtica pública de segurança no Rio de Janeiro e no paÃs?
Vera Malaguti – Existe uma polÃtica articulada de segurança pública no Rio e no paÃs. Sempre existiu, a ditadura tinha, o governo João Goulart tinha. Mas esta que existe agora, que está coordenada entre governo federal e estadual, tem caracterÃstica diferente das outras. Acabamos de ter uma evidência aqui no Rio de que essas polÃticas estão articuladas.
E quais as caracterÃsticas dessa polÃtica?
O controle totalizante sobre as comunidades pobres dentro do paradigma bélico, que é um modelo muito usado pelos Estados Unidos nas ocupações que promove. E também é um modelo usado por Israel no tratamento do Estado Palestino. Isso significa que existe um atropelo das garantias, as áreas pobres ficam transformadas em territórios de exceção, onde não regem direitos e as garantias são completamente supérfluas porque trabalham com a ideologia da segurança nacional. É o que o grande jurista argentino Raúl Zaffaroni chama de direito penal do inimigo. O governo do Rio tem a polÃcia que mais mata do mundo, tem toda a ideologia do confronto. Eu pensava que a polÃtica do governo federal era diferente, apesar de ter crÃticas a ela também. Mas agora eu percebo que as polÃticas estão coordenadas mesmo, o paradigma bélico é comum, inclusive com o uso das forças armadas na segurança pública, que é uma coisa muito controvertida na discussão nas escolas superiores de guerra, por exemplo. As forças armadas norte-americanas jamais entram como polÃcia. A não ser em casos muito especiais, como numa situação em 1993, muito pontual, e saem imediatamente. Mas eles gostariam muito que as forças armadas da América Latina entrassem nessa função porque isso faz com que desmoronem, como é o caso do México, onde essas ações das Forças Armadas são um fiasco completo, como é um fiasco completo a guerra contra as drogas. Mas é um fiasco em relação aos objetivos a que ela se propõe, porque na indústria da guerra ela é um espetáculo: vende tanques e armas para os dois lados. O capitalismo é completamente alimentado pelas guerras. Se olharmos toda a história do capitalismo, a própria história dos Estados Unidos, percebemos que nas crises econômicas a guerra levanta a economia. E nós aqui estamos incorporando esse modelito, que é um modelo fracassado. Os Estados Unidos se retiraram do Iraque fracassados, estão se retirando do Afeganistão sem possibilidade de vitória, mas a indústria bélica e seus serviços são vitoriosos. E é essa indústria bélica que agora está sendo mimetizada para as polÃticas de segurança pública, porque polÃtica de segurança pública não tem nada a ver com o que está acontecendo, com a guerra. Tanto que o Nelson Sá, aquele jornalista da Folha de São Paulo, compara a cobertura da Globo sobre o que aconteceu no Complexo do Alemão com a cobertura que a Fox News deu sobre a guerra do Iraque. Então, é uma grande mercadoria, tanto que na véspera de transmitir o dia inteiro aquele horror, a Globo anunciou o noticiário do dia seguinte como Tropa de elite 3 . Há todo um mercado da violência e do controle da violência. Para o grande público, telespectadores de programas policiais, colocar as forças armadas nisso seria o ápice, mas para os estudiosos, para quem não está querendo aparecer muito, isso é uma coisa muito perigosa, muito controversa e acho que inclusive é irresponsável .
Quais as relações desta polÃtica de segurança com o projeto de cidade que se tem?
Tem tudo a ver com o projeto da cidade do Rio de Janeiro. Existe agora no Rio um conjunto de forças privadas, de negócios esportivos transnacionais, que irão ocupar a cidade. Tanto a prefeitura do Rio quanto o governo estadual estão nessa ocupação. O choque de ordem, por exemplo, é um eufemismo para uma contenção truculenta da pobreza e para as estratégias de sobrevivência da pobreza, por isso eu digo que me surpreende o governo federal ter embarcado nessa.
Que assuntos ou aspectos devem ser levados em conta na elaboração de uma polÃtica de segurança pública?
A questão é o que quer dizer segurança pública para nós. Para mim, é transporte coletivo não monopolizado, de boa qualidade, escola pública de boa qualidade – o Rio é o penúltimo estado em termos de educação pública. Segurança é decorrência de um conjunto de polÃticas públicas; é assim que nos sentimos seguros: quando temos polÃticas urbanas, polÃticas de iluminação, de cultura, de lazer. Numa cidade que precisa de tanta polÃcia, de exército, marinha, aeronáutica, cercando um quilombo, ou um Canudos ou uma favela, alguma coisa está fora da ordem, como diz o Caetano Veloso. E essa cena que estamos vendo é recorrente na história do Brasil. Na República, Canudos foi a chacina fundacional: naquele tempo todo mundo achava que aqueles eram os monstros, os demônios que ameaçavam a República. Tem aquela frasesinha de Euclides da Cunha [no livro Os Sertões, que retrata a guerra de Canudos] que dizia que, no final, “eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldadosâ€. Estamos assistindo a isso: primeiro houve aquela coisa heróica da tomada do morro e agora já começamos a assistir situações de morador que foi roubado: aquilo que já conhecemos há tantos anos, que é a entrada violenta da polÃcia numa comunidade pobre, com roubo e pilhagem – que são os crimes de guerra.
Se formos a uma cidade tranqüila percebemos que tem pouca polÃcia. Em Buenos Aires, por exemplo, você entra num restaurante, aà aparece um velho policial gordo e pergunta: ‘boa tarde, está tudo bem?’ Essa é a figura daquilo que um dia já se sonhou no Rio de Janeiro: ter um policial ligado ao bairro. Mas essa estratégia bélica de ocupação, as próprias UPPs [Unidades de PolÃcia Pacificadora] não passam de uma ocupação militar das favelas. Mesmo que a capitã seja doce, seja uma mulher, seja ótima, uma gracinha – como ela deve ser mesmo, eu não a conheço -, é de apenas uma comunidade, que está aà na peça publicitária, que foi vendida como a grande solução mágica. Mas continua a matança no Rio pela polÃcia. e então, a UPP não é um programa alternativo, é mais uma estratégia. Há dois especialistas israelenses que estão dizendo que o que ocorre aqui é igual ao que ocorre em Israel. Toda essa ideia de reconquista do território, que vários sociólogos estão aplaudindo, é coisa do paradigma bélico, as pessoas estão incorporando já o vocabulário da guerra para a segurança pública. Isso é um fiasco para mim que acredito que segurança é uma outra coisa, mas há quem goste de ver tanque virado para a favela, a favela ocupada pela polÃcia, os moradores pedindo licença para tocar uma música – músicas que a policia não gosta, como o funk, não pode tocar.
Do ponto de vista da guerra, então, é um sucesso?
Não é um sucesso, é um sucesso de vendas, tanto para a mÃdia quanto para os armamentos que estão sendo anunciados . Eu não vi ainda o sucesso do outro ponto de vista. Não tinha não sei quantos homens armados? Eu vi uns ferrados correndo armados, mas cadê o sucesso da operação? Porque a finalidade explÃcita era o sucesso da operação, mas a implÃcita é vender a guerra, a ode à polÃcia. O subsecretário da polÃcia civil estava vestido como os soldados se vestiam no Iraque. A Folha de São Paulo está dizendo que a Globo, que foi sócia na empreitada, já tinha sido avisada antes. PolÃcia civil é polÃcia investigativa, mas o cara está lá vestido de rambo, com colete, todo orgulhoso. E do lado de lá está Canudos. É aquilo que conhecemos há 500 anos, desde a colonização: só muda o crime, mas a estética é a mesma.
O discurso de uma parte da população é de recrudescimento da violência policial. Percebemos, nesse contexto, a glamourização das forças policiais, como do Bope, por exemplo. Como essa percepção é construÃda?
È construÃda ao longo dos tempos. A Rede Globo é uma grande construtora de subjetividades brasileiras. Mas acho que a sociologia fluminense também contribuiu muito para isso. Basta olhar as entrevistas dos sociólogos: só falta estarem de colete blindado aplaudindo. Agora a verdade das coisas começa a aparecer porque não prenderam tanta gente. Será que não tinha tanta gente assim? Não apareceu cocaÃna, só apareceu maconha; os fuzis que aparecem são meio velhos, não são tantos quanto diziam, as pessoas não aparecem. O que aconteceu ali? Eu não sei responder agora, estou procurando saber – por isso eu não gosto de falar no fogo dos acontecimentos porque o importante é reunir elementos para pensar profundamente. Por trás do Tropa de Elite 1 e 2, há aquele discursinho politicamente correto, o novo inimigo, mas no paradigma bélico o importante é ter sempre um inimigo. Embora as intenções do livro e do filme sejam boas, o sucesso dele mesmo são as cenas de tortura, que é quando o público vai ao delÃrio, e por isso é perverso porque é muito enganador. E o filme foi construÃdo por um sociólogo e por um ex-Bope. O Zaffaroni, que é um dos maiores pensadores sobre esta questão na América Latina, diz o seguinte: para haver o genocÃdio sempre precisa ter um discurso legitimante. Na minha tese de doutorado O Medo na cidade do Rio de Janeiro, eu fiz um trabalho sobre o medo no Rio no século XIX e no século XX. Lá eu digo que o medo acua as pessoas. Na saÃda da ditadura, por exemplo, nós tÃnhamos uma resistência muito maior à truculência policial, e hoje ela é considerada heróica, é aplaudida. E se formos olhar tecnicamente e militarmente, há um uso desproporcional de força, uma porção de erros táticos e técnicos e aà temos que analisar com calma.
O que vem aparecendo na mÃdia com relação a esta situação do Rio é que a população do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro está aprovando as ações policiais. Isso tem acontecido de fato?
Até hoje eu não vi nenhum morador aplaudindo, eu só vejo a mÃdia dizendo isso. Você viu? Porque uma cartinha, até eu mando também dizendo isso. Eu duvido que os moradores do Alemão estejam gostando dos últimos dias.
Eu estudo esta questão de drogas há 20 anos, a polÃcia do Rio tem matado tanto e o mercado de drogas continua. No capitalismo, alguém irá tomar esse espaço e a pergunta é: quem? A partir da leitura da matéria da Folha de São Paulo de hoje (2/12), você começa a desconfiar de que já estão tomando. E agora colocamos as forças armadas também nisso, naquilo que o Darcy Ribeiro chamava de o moinho de gastar gente: vão botar o recruta e daqui a dez anos, o menino estará como? O Brasil, que está na guerra contra as drogas, é um dos poucos paÃses do mundo onde o consumo de drogas aumentou. Isso não aconteceu com Portugal e Espanha, por exemplo, que descriminalizaram as drogas. Nós estamos pegando aqui a rapa das mercadorias da era Bush. No México, as forças armadas estão tomando uma corrida, porque eles conseguem fazer igual aos Estados Unidos fizeram no Afeganistão: ocupam, matam para caramba e aÃ? Como se faz para ficar? Ou as tropas são corrompidas ou é preciso ficar matando, matando e matando. Por exemplo, no Afeganistão, sob o regime talibã, a produção de drogas diminuiu, mas aumentou com a ocupação americana, o outro lugar foi a Colômbia, paÃs também ocupado pelos Estados Unidos e onde a produção de drogas também aumentou. E o modelito aqui do Rio é todo copiado de lá, e tudo aparece assim como se fosse uma grande novidade. Aà vem um monte de sociólogo, faz um quadrinho, mostra que está tudo integrado e tal. Mas apreensão de droga é agulha no palheiro. Talvez eles consigam mesmo destruir uma das chamadas facções, mas e as outras? Quem vai pegar? É um aprofundamento de uma linha burra e derrotada. Mas deve ter algum lucro. A guerra contra as drogas é fracassada em todos os objetivos que ela propôs – produção, comercialização, consumo, violência e corrupção policial – mas ela continua regendo há mais de 40 anos no mundo e no Brasil. Então, uma polÃtica com tantos fracassos deve ter alguma coisa por trás dela que é um sucesso. Na minha modesta opinião, é porque ela alimenta a indústria da guerra e do controle do crime.
E qual a relação do tráfico de drogas com o modo de produção capitalista? O capitalismo pode prescindir deste negócio neste momento?
O capitalismo e o mundo contemporâneo não podem prescindir das drogas de uma forma geral. Está todo mundo no Lexotan, no Prozac, no Valium [medicamentos], no wisky ou no quer que seja. Mas algumas substâncias foram demonizadas, estas não podem ser consumidas. E estas são as que causaram a guerra. Mas na história do capitalismo já houve uma guerra a favor do ópio, que foi da Inglaterra contra a China. Todas as civilizações sempre t suas substâncias para ajudar a transcender ou por rituais religiosos ou mesmo cotidianos. Os romanos tomavam vinho, os amazônicos tomam auaska, os rastafari maconha e por aà vai. E o ocidente cheira pó, toma calmante e estas drogas. Só que o mercado ilÃcito acaba ficando para os pobres, porque os nossos jovens [de classe média e ricos] vão trabalhar em bancos, em produtoras, em jornais, mas a mão de obra pobre é que vai se encarregar da parte barbarizada do mercado. Mas no capitalismo, mercado é mercado. A Folha de S. Paulo já diz hoje que tem milÃcia dentro do Alemão. Mas isso é tão obvio que iria acontecer! A cobertura Fox News da Globo não me convenceu, mas criou toda esta pedida de truculência. A capa da Veja era o Capitão Nascimento como herói nacional. Você me perguntou sobre a adesão das classes populares a esta truculência e eu acho que tudo isso contribui para esta adesão. Mas também não ouviremos em lugar nenhum as pessoas que não aderem.
A senhora comentou sobre sua tese O medo na cidade do Rio de Janeiro, onde mostra como a criminalização da pobreza sempre foi um elemento da polÃtica de segurança da cidade. A criminalização do traficante hoje atua também como elemento de criminalização da favela?
A criminalização da pobreza sempre aconteceu. O Nilo Batista diz que o criminal é um fetiche para esconder a conflitividade social. Ao observarmos os crimes no século XIX, percebemos que eram todos crimes de escravo. O discurso é sempre o mesmo. Eu tenho isso no livro porque pesquisei os arquivos do século XIX e lá dizia: “magotes de negros armados pelos morrosâ€. É igualzinho. O que muda é só o discurso, ou é porque é capoeira, ou quilombola, ou é sambista, ou funkeiro, ou é porque é traficante, entre aspas. Eu tive um aluno delegado [Orlando Zaccone] que escreveu um livro chamado Acionistas do nada. Quando dei a aula sobre drogas, ele falou que quando era delegado na Barra da Tijuca fez pouquÃssimos registros de tráfico. Um tempo depois ele foi transferido para Jacarepaguá, onde tem muita favela, e aà ele viu que tinha dezenas de autuações por tráfico a cada dia em Jacarepaguá. Agora, me conte uma coisa: será que é porque não tem tráfico na Barra da Tijuca? Ou será que é porque a venda varejista de drogas na Barra é feita de uma maneira diferente? Eu não estou dizendo que quero fazer uma guerra contra a Barra da Tijuca, o que estou dizendo é que o tráfico está em todos os lugares, mas o tráfico do varejo pobre virou o inimigo nacional. Você passa nas ruas e os pobres também, os porteiros, estão todos dizendo: ‘é uma raça ruim, tem que matar’. Isso é fruto de uma educação. Ao ler as cartas dos leitores do Globo, se percebe qual é esse projeto educacional. Então, eu acho que andamos para trás, na saÃda da ditadura tÃnhamos muito mais resistência. Hoje eu vejo as pessoas de esquerda, inclusive, falando ainda sem nem ter conseguido avaliar o que está acontecendo. Eu ainda não estou entendendo direito o que está acontecendo, a grande vitória militar eu não vi.
A senhora disse que ao longo da história sempre houve um personagem criminalizado, o capoeira, o sambista, por exemplo. Mas o que determinou a construção do sujeito conhecido como traficante, alvo desta criminalização violenta por parte da polÃcia, mas também gerador de violência, o que, inclusive, serve para justificar também a truculência dos aparatos de repressão do estado?
Primeiro, eu acho que não se pode generalizar a categoria de traficante, assim também como eu acho que não se pode generalizar falando que a polÃcia é assim ou assado. Eu não conheço esses caras sobre os quais estão dizendo que são violentos, você sabe se eles realmente são? E eu não chamaria de traficantes, eu os chamo de comerciantes varejistas.
Mas existe uma diferença deste sujeito de agora para os outros sujeitos que a senhora comentou?
Eles eram demonizados da mesma forma. Existe essa coisa: o traficante é mal. Mas, gente, tem o indolador, de 14 anos, que é o menino que faz a embalagem, a mãe é passadeira, está fora o dia todo e o menino embala a droga. Nem todo mundo que trabalha nesse negócio barbarizado é bárbaro, mas ele vai se barbarizando por causa da guerra. Outro dia eu vi um filme lindo americano sobre um militar que o filho é morto na volta da guerra do Iraque. No inÃcio você pensa que ele é assassinado porque testemunhou horrores no Iraque. Mas no final você descobre que o menino virou um monstro, eu odeio usar esta palavra, uso entre aspas: o menino começa a gostar de matar. E então, a guerra faz isso. Eu acho que daqui a pouco nós vamos começar a ter esses psicopatas iguais aos psicopatas americanos, que só tem nos Estados Unidos, que é o cara que sai atirando em todo mundo, que são pessoas com transtornos decorrentes da guerra. O mercado varejista do capitalismo ilÃcito é bárbaro, o mercado bom ficará para os meus filhos, um é designer, o outro é advogado, o outro trabalha em banco, mas o filho da minha passadeira tem que se conformae com a bolsinha famÃlia, o salariozinho ruim, ficar direitinho, não se comportar mal com a polÃcia. Mas, mesmo assim, de vez em quando ele irá apanhar na cara, levar um tiro, alguém vai botar uma arma e um flagrante na mão dele. As pessoas vão se barbarizando: tem também uma educação para isso, que é a educação do esculacho, o menino pobre, negro, adolescente no Rio de Janeiro pode ser morto a qualquer momento e ser chamado de traficante.
E a perspectiva é de que esta polÃtica de segurança pública continue?
O discurso federal assustadoramente está sendo este, eu não esperava isso. Me considero uma pessoa triste porque pensava que isso teria um rumo diferente, mas eu vejo que é este lixo da era Bush que está sendo vendido para nós como tecnologia de segurança pública, armas, sentimentos de ódio, de truculência. Acho que estamos muito mal. A maneira de furar também é a de mÃdias como vocês, que têm uma capacidade de vazar informações e criar um público qualificado, porque a de massa fez uma educação sinistra nos últimos tempos.
Rio do Janeiro e Segurança Pública: ‘Não sei se é fascismo ou farsismo’ |
Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação | |
Do Correio Cidadania | |
Após mais uma onda de violência na cidade do Rio de Janeiro, o Brasil se deparou com um espetáculo deprimente de suas mazelas sociais e humanas. Após traficantes desceram ao asfalto, promovendo assaltos e queima de veÃculos, por razões ainda pouco esclarecidas, novamente a cidade se viu em pânico. Situação inflada pela cobertura espetacularizada da grande mÃdia, que por sua vez endossa sem parar as polÃticas fracassadas de mera repressão à ponta pobre do tráfico, isto é, nos morros.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a socióloga Vera Malaguti, secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), criticou duramente os governos estadual e federal, especialmente em relação à entrada das forças armadas na questão, de legalidade questionável. “Tudo é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de exceção”, afirmou, referindo-se também à s violências cometidas contra moradores inocentes das áreas invadidas pelas forças oficiais. Para ela, tal processo é parte de uma polÃtica de ocupação de áreas pobres, idealizada pelos EUA há décadas, que visa também garantir um controle militarizado da vida das pessoas, além de abrir caminho para “os negócios transnacionais e olÃmpicos”. Malaguti questiona firmemente a polÃtica de segurança do governo Cabral, por considerar as UPPs – Unidades de PolÃcia Pacificadora – e toda a recente operação mais uma ação de marketing, baseada nas mesmas polÃticas de repressão sem investimento social, amplamente fracassadas.. “Estão ocupando a cidade. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela nossa pobreza”. A entrevista completa, na qual Vera não poupa nem o ex-secretário Luiz Eduardo Soares (“ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE como solução”), cujas análises foram elogiadas por setores progressistas, pode ser conferida a seguir. Correio da Cidadania: O apaziguamento do clima de guerra que se instalou no Rio, a partir da colaboração do Exército e da Força Nacional de Segurança na expulsão dos traficantes do Morro do Alemão, levou a um clima de euforia entre a população, seguido pela maior parte da mÃdia. Como encara, nesse sentido, as ações imediatas que foram tomadas pelo governo nos últimos dias para controlar a crise? Vera Malaguti: Estranhei muito. Eu penso que a euforia foi fruto de uma campanha midiática. Gosto de falar com base em evidências, mas desde o inÃcio considerei muito estranhos os acontecimentos. Comparando com aquela vez em São Paulo, em 2006, quando a cidade parou, na hora em que o governo decidiu mobilizar as forças armadas, ainda se teve uma meia dúzia de carros queimados, mas nenhuma vÃtima. Tudo foi engatilhado de um jeito que pareceu muito estranho. Se formos ver a análise da mÃdia, como a da Folha, que dessa vez foi mais crÃtica, vê-se que existia uma combinação com a Rede Globo, tanto que na véspera eles anunciavam o ‘Tropa de Elite 3’, e no dia seguinte transmitiram aquilo o dia inteiro. Diante do que acontecia, creio que a reação foi desproporcional em relação ao ocorrido, e aà não entendemos de fato como foram as coisas. Seriam 600 homens, ou não? As apreensões mostradas também não fazem muito sentido, porque o envolvimento das forças armadas em tais situações é muito questionado no mundo inteiro. Os EUA, por exemplo, proÃbem suas forças armadas de trabalharem como polÃcia. No entanto, estimulam muito que as forças armadas latinas entrem nesta guerra perdida, como no caso do México, grande exemplo disso. Desde 94, quando da operação Rio 1, as conversas com o Comando Militar do Leste sempre receberam a recusa das forças armadas brasileiras, por ser algo perigoso. Da mesma forma que a polÃcia se desmantela nessa guerra sem fim, as forças armadas, que na verdade são responsáveis pela nossa soberania, poderiam passar pelo mesmo. Atirá-las nessa guerra perdida é uma aventura. As forças armadas norte-americanas não entrariam nessa jamais. Portanto, creio que foi um ato midiático, como tudo que é feito pelo governo do estado do Rio de Janeiro. Só que desta vez o governo federal embarcou na aventura, a meu ver de forma muito irresponsável, correndo o risco de colocar as forças armadas brasileiras num impasse geopolÃtico. Correio da Cidadania: Mas no momento especÃfico, e diante da dificuldade da polÃcia carioca no enfrentamento frontal ao tráfico dos morros, a presença do Exército, assim como da Marinha e Aeronáutica, não seria necessária como medida emergencial? Vera Malaguti: Em 2006, em São Paulo, aconteceu algo muito mais grave, muito mais profundo, e as forças armadas nem foram cogitadas. Quando entraram, tinha-se meia dúzia de carros queimados e nenhuma vÃtima. Na França, é normal queimarem 300 carros num protesto, e o exército francês nunca entrou pra interferir. E nunca considerou esses atos terrorismo, e sim manifestação. Acho que tudo faz parte de uma escalada do modelo norte-americano de ocupação. Inclusive saiu uma entrevista do ministro (da Justiça, e futuro governador do Rio Grande do Sul) Tarso Genro no Página 12, da Argentina, na qual os jornalistas se assustaram com as declarações dele, pois tinham um jargão bélico constante. Ao mesmo tempo, é um modelo fracassado, pois os EUA estão perdendo a guerra no Iraque nessa acepção. Correio da Cidadania: Fracasso da guerra à s drogas também. Vera Malaguti: Exatamente. A guerra à s drogas já virou um mico mundial. Portanto, essa escalada do Rio de Janeiro me parece fazer parte do processo que mencionei. Já tivemos a chacina do Pan, também no Alemão. É algo muito midiático, e também perigoso, por ser uma escalada bélica. E agora, miraculosamente, acabou tudo, está tudo calmo. O que acontece no Rio de Janeiro de verdade? Acho que ainda faltam elementos para afirmarmos algo com responsabilidade, mas me pareceu tudo muito rápido e alinhado à Globo. Parecia tudo parte dos efeitos Tropa de Elite. Tanto que na véspera do ‘Dia D’, a manchete do O Globo era ‘Tropa de Elite 3’. E depois houve aquela cobertura toda, enquanto do lado de lá se viam escombros, tanto que houve várias comparações com Canudos. E o day after é aquilo que a gente conhece sempre, a história de invasões da polÃcia à s comunidades faveladas. Correio da Cidadania: Na invasão do Alemão, em 2007, durante o Pan, foi a mesma coisa, e nem o tráfico de drogas, nem o controle armado do território por criminosos foram, no entanto, até hoje eliminados. Pelo contrário, estamos novamente diante do mesmo morro, agora com uma ocupação ainda mais extensa, a partir da participação direta da Força Nacional de Segurança, da PolÃcia Federal, do Exército, Marinha e Aeronáutica. Trata-se da persistência inócua e equivocada de uma polÃtica de ocupação, não? Vera Malaguti: Sim. Os moradores sendo humilhados, torturados, tendo suas casas roubadas, reviradas, aquilo que a gente conhece. Agora com o agravante da glorificação de uma polÃcia militarizada, um efeito perverso que enxerguei nos filmes Tropa de Elite, e que me parece formar esse todo, de glorificação da força militar. O saudoso coronel Carlos Magno Nazaré Teixeira, assassinado em 99, policial militar com formação humana, profunda, crÃtica, escreveu um artigo intitulado ‘A remilitarização da segurança pública’. É, de fato, um processo. O Brasil aderiu agora; e, surpreendentemente, a partir do governo federal. Correio da Cidadania: Esse cenário não tem sido construÃdo, com a ajuda da mÃdia, como forma de criar uma legitimação para a Copa e as OlimpÃadas? A força militarizada não serve pra sufocar os gritos contrários? Vera Malaguti: Com certeza. Além disso, abrir caminho também para os grandes negócios transnacionais. Crime organizado é isso aÃ. Esses negócios olÃmpicos e transnacionais fazem parte da estratégia de ocupação das áreas pobres. É mais um capÃtulo dos ‘muros ecológicos’, ‘paredes acústicas’, que vão murando e isolando as áreas pobres. Depois, as pessoas falam que é uma alternativa. Não, não é uma alternativa ao modelo, e sim seu aprofundamento, chegando agora na ocupação militarizada das favelas. Eu chamo de gestão policial da vida. Pra fazer uma festa tem que pedir autorização. Por isso, creio estarmos diante de um projeto de ocupação militarizada nas áreas de pobreza do Rio de Janeiro, com uma cobertura vergonhosa da grande mÃdia. O Loïc Wacquan escreveu artigos como ‘Punir os Pobres’, ‘A Penalização da Miséria’, mas um em especial chama a atenção: ‘Da Penalização à Militarização’. Durante esses dias, ele me mandou uma mensagem perguntando isso: “Vera, estou vendo tudo pela TV. É aquilo mesmo, da penalização à militarização?”. Acho que é exatamente isso. Demonizam-se algumas atividades em certas regiões, depois se criminaliza e se entra com tudo no lugar em questão. É o que também chamamos de indústria do controle do crime, é uma modalidade de economia. As próprias forças armadas, em parte, resistem a isso. Mas como parece que nosso ministro da Defesa gosta de trocar inconfidências com ministros americanos, como vazou o Wikileaks, vimos que os EUA queriam saber se o Rio de Janeiro poderia sofrer terrorismo e que lhes interessava vender-nos tecnologia para tal combate. Correio da Cidadania: Não só vender equipamentos, como até editar uma lei antiterrorismo, como também foi vazado. Vera Malaguti: Tudo o que acontece são tecnologias de guerra sendo vendidas. Os jornais mostravam os blindados, a polÃcia dizia que gostava… Enfim, estamos comprando as sucatas das derrotas dos EUA no Iraque e no Afeganistão. Correio da Cidadania: De Israel também, haja vista que o Brasil, e especialmente o Rio, é um grande cliente dos israelenses no mercado de armas, não? Vera Malaguti: Certamente. Israel é o grande parceiro das vendas de serviços e tecnologia nessa área. Mas antes é preciso construir o discurso do inimigo, o que o grande jurista argentino Zaffaroni chama de ‘direito penal do inimigo’. As garantias vão sendo suspensas, prendem-se os familiares, advogados. Ou seja, estamos vivendo no Rio um Estado de Exceção. Não vi nenhum morador dessas áreas aplaudindo. Como também nunca vi morador elogiar UPP, apenas vejo a mÃdia dizer que eles aprovam. Na cobertura do day after, só vi morador se sentindo humilhado, violentado, esculachado, roubado… A história de sempre, desde Canudos. Não sei se o nome adequado é fascismo ou farsismo. Correio da Cidadania: Já vêm soando rumores de que o Exército poderia permanecer nas áreas conflagradas por tempo maior que os cerca de 8 meses inicialmente cogitados, fincando suas bandeiras nessas áreas até a Copa do Mundo. Ao lado do comentado risco de contaminação do Exército pelo tráfico, uma permanência tão estendida é a prova cabal da polÃtica de militarização imposta pelos EUA, não? Vera Malaguti: Eu acho um perigo para a soberania nacional colocar as forças armadas nessa guerra perdida. E digo mais: não me parece que a situação do Haiti seja bonita, onde nossas forças armadas comandam uma ocupação. Como está lá? Nossas forças armadas vão se transformar em polÃcia de contenção de pobreza absoluta? Eu acho uma tristeza, além de um precedente perigoso. E tem ainda o circo das ONGs: a Viva Rio, que aqui no Rio é chamada de ‘Viva Rico’, esteve lá no Haiti. Vai participar aqui também? Tirar as forças armadas de seu papel, de garantir a soberania nacional, é o sonho dourado dos EUA. As forças armadas deles não entram jamais numa empreitada dessas, mas eles recomendam a todos os outros que o façam. O governo Lula aderir a isso é uma vergonha. Correio da Cidadania: Sem contar a sensÃvel questão acerca da legalidade de tal atuação, muito questionável. Vera Malaguti: Tudo é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de exceção, tudo é ilegal. Desde a inviolabilidade do lar até a gravação das prisões de advogados, fora outras coisas que já citamos. E a OAB do Rio já apoiou a operação desde o começo. Em vez de ficar na trincheira de luta, observando se as garantias constitucionais estão sendo levadas em conta, já entrou apoiando, como também o fez na operação de 2007 no Alemão. E a atuação da grande mÃdia… Correio da Cidadania: Parece que estão transmitindo mais uma atração dominical. Vera Malaguti: Exatamente. E com a glorificação da truculência, da militarização. É de fato a glorificação da figura do Capitão Nascimento. Correio da Cidadania: Fora o massacre ideológico, com as mesmas figuras defendendo por horas e horas todas as ações, com as mesmas idéias de sempre, que, como você já disse, só acumularam fracassos. Vera Malaguti: É uma cobertura que serve muito mais para as pessoas não entenderem o que acontece. E, no final, os resultados são pÃfios. Cadê os 600 homens, cadê as armas? Aparece uma bazuca aqui, outra ali… Sinceramente, acho que, se olharmos bem, vamos ver que as forças armadas, polÃcias civil, militar, fizeram um fiasco, prendendo um monte de pé rapado. Não há novidades no front. Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação quanto à polÃtica das UPPs no Rio de Janeiro, tanto no que se refere ao conceito e objetivos que lhes dão sustentação, como à forma pela qual vêm sendo conduzidas? Vera Malaguti: É parte de todo esse jogo. É uma obra de arte midiática, uma peça de marketing. O governador do Rio é expert nisso. O Rio tem o maior investimento em segurança pública e está em penúltimo no ranking da educação de todo o paÃs. Se pegarmos o que o governo do estado investe em marketing… As UPPs são mais uma peça publicitária, parte dessa militarização da segurança pública, por se tratar de uma ocupação militar, na qual os moradores são obrigados a se submeter a tudo, até a pedir permissão pra fazer uma festa. Além de significar a glorificação da gestão policial da vida – dos pobres, é claro. E a prefeitura, cujos integrantes participam do mesmo projeto polÃtico, entra com o Choque de Ordem, que busca tirar todas as estratégias de sobrevivência dos pobres na rua. Mas, ao mesmo tempo, as ruas do Rio são invadidas por empresas transnacionais. Portanto, o camelozinho pobre não pode botar suas bugigangas na Vieira Souto. Mas no fim de semana retrasado um laboratório francês, enorme, estava lá com container, fazendo exames de câncer de pele e distribuindo filtro solar. Correio da Cidadania: Fazendo exames e, claro, uma belÃssima ação de marketing. Vera Malaguti: É. A empresa pode. Mas as estratégias de sobrevivência dos pobres, criadas pelo povo, não. Essas são demonizadas e criminalizadas. Agora, a ocupação militar. Uma vergonha. Mesmo com todas as crÃticas que tenho, nunca esperava um papelão desses do governo federal, que entrou na jogada. Correio da Cidadania: O sociólogo Luiz Eduardo Soares adverte que sem ir à raiz da relação promÃscua entre policiais e traficantes as UPPs não têm chance alguma de sucesso, visto que seriam contaminadas pelo mesmo esquema de corrupção. Vera Malaguti: É, pode ser, mas o Luiz Eduardo Soares é um pouco responsável, é o criador do Capitão Nascimento, o novo herói nacional. Tenho uma posição muito crÃtica em relação à produção do Luiz Eduardo Soares. Ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE como solução. Mas ele alterna também. Está esperando a polÃcia ficar limpa no capitalismo… Vai ter que esperar um bocado. Ninguém está limpo no capitalismo, mas quem está menos limpo é a sociologia fluminense, que está toda inserida no mercado, nossa! Na cobertura, apareciam todos apoiando a operação. Inclusive ele, na última entrevista, disse: “sou a favor da repressão, mas…”. Portanto, tenho uma visão muito crÃtica a ele especificamente, pois acho que os Tropas de Elite 1 e 2 tiveram esse efeito perverso. Tanto que o ápice do 2 é a tortura do polÃtico corrupto. E a tortura é a estrela dos dois filmes. Por isso, acho-o muito responsável pelo que culminou com o Globo chamando toda a história de ‘Tropa de Elite 3’. Correio da Cidadania: Mas o que pensa dessa relação promÃscua entre policiais e traficantes, assim com de seu impacto sobre as UPPs? Vera Malaguti: Acho que o proibicionismo, a polÃtica criminal de drogas dos EUA, à qual aderimos desde a ditadura, produz esse resultado, razão pela qual as forças armadas não podem entrar, pois vão se desmantelar. Não é um problema moral, e sim de escolha polÃtica que se faz. Quanto mais repressão, maior custo. E polÃticas que não legalizam o segundo emprego do policial, jogando-o na ilegalidade, só contribuem ainda mais. Não é uma questão moral das polÃcias, mas uma questão econômica, dentro de um capitalismo selvagem. Correio da Cidadania: O mesmo sociólogo há algum tempo tem ressaltado que o tráfico armado, tal qual se apresenta hoje, é um modelo em processo de extinção – não devido à existência das UPPs, mas em função de sua estrutura pesada e custosa, tendente, portanto, a caminhar para formas mais sofisticadas de crime organizado. As milÃcias tão preponderantes hoje no Rio, cujos membros são em grande parte policiais, seriam uma dessas modalidades mais ‘atualizadas’ do crime organizado. Diante do que se viu no Rio, você comunga dessa avaliação, de que o tráfico armado nos moldes atuais esteja realmente em extinção no Rio? Vera Malaguti: Acho que ainda não tenho, nem ele, elementos para afirmar isso. Pierre Bourdier criticava muito o que chamava de fast thinker. Aqueles caras que a grande mÃdia sempre procura. Pode ver que a grande mÃdia procura sempre os mesmos. É uma penca, não vou citar nomes. Pra você dizer algo assim, tem que se fazer uma pesquisa, se aprofundar, mas para a Globo News eles sempre sabem tudo já na hora dos acontecimentos. Correio da Cidadania: Mas, de toda forma, as milÃcias têm sido um braço fortÃssimo do crime organizado, até com mais tentáculos, e sem combatê-las não vai adiantar absolutamente nada, no final das contas, eliminar somente os comandos tradicionais. Vera Malaguti: Claro. Estranhamente, o governo estadual resolveu combater somente uma das empresas do comércio varejista de drogas. Qualquer pessoa com o mÃnimo de inteligência, conhecendo o mercado, sabe que em caso de se partir pra cima de alguém em seu espaço, retirando-o de lá, tal espaço será ocupado por outra empresa. Mais uma vez, todo esse aparato foi pra cima de uma das empresas. Estranhamente, as outras (milÃcias) têm uma relação maior com a polÃcia. Natural. Houve um momento em que todo mundo dizia que as milÃcias eram autodefesa ao narcotráfico. Deu no que deu. As milÃcias cresceram, primeiro sendo glorificadas, e agora fica tudo meio embolado. Correio da Cidadania: O que pensa sobre o modelo de polÃcia hoje existente? Quais seriam, a seu ver, as polÃticas públicas e medidas que, a médio e longo prazos, realmente incidiram sobre este modelo de modo a enfrentar o tráfico e a violência em uma cidade como o Rio de Janeiro? Vera Malaguti: Primeiramente, acabar com o proibicionismo, ou seja, a polÃtica proibicionista norte-americana. E, claro, as velhas polÃticas públicas: escola pública de tempo integral, saúde, enfim, todo o universo da agenda que perdemos, porque agora nossa agenda é só segurança pública, ela vem na frente de tudo. Em terceiro lugar, o protagonismo da juventude popular, pois uma das coisas que a criminalização das estratégias de sobrevivência faz é também criminalizar a potência juvenil, popular, transformando-a em bandidagem. Precisamos recuperar os movimentos polÃticos que dão potência e protagonismo à juventude popular. E não demonizá-los, criminalizá-los e agora aniquilá-los. Correio da Cidadania: E o que pensa sobre o atual modelo de polÃcia? Vera Malaguti: É o mesmo de sempre. É a história da polÃcia do Brasil. Começou para erradicar quilombos e assim continua. Erradicando e ‘pacificando’ quilombos. Não mudou nada. Correio da Cidadania: Para evitar questionamentos quanto à polÃtica salarial e ao orçamento público, o governo faz a citada vista grossa para várias ‘ilegalidades’, como os bicos feitos por policiais de modo a incrementar seus ganhos – bicos que, em função do mencionado ‘proibicionismo’, estão na raiz do tráfico e da formação de milÃcias. Diante desse cenário todo, seria possÃvel lidar com a situação atual, de modo a que a raiz da degringolada fosse de fato enfrentada, sem um novo enfoque para as polÃticas públicas, e sem, ademais, um novo olhar para a cidade? Vera Malaguti: O Luiz Eduardo, por exemplo, gosta de vender modelos de segurança. Acho que o modelo de segurança é algo que precisa ser construÃdo coletivamente. E utopicamente também. Toda cidade que precisa de muita organização policial tem algo de muito errado. As cidades seguras são aquelas que precisam de pouca polÃcia. A desigualdade social, a brutalização da pobreza, essas medidas compensatórias, que aprofundam os nexos da desigualdade… Precisamos construir um modelo de felicidade para a cidade, no qual a segurança seria a última prioridade. Porém, não acredito nisso. Estamos voltando à República Velha, época em que, quando se pensava na questão social, pegava-se um revólver. Estou me sentindo na República velha, quando as questões sociais eram resolvidas pela polÃcia. Precisamos de menos polÃcia, menos prisão, mais beleza, mais cultura, mais alegria, mais potência juvenil e popular, protagonizando as coisas. Correio da Cidadania: Finalmente, como vislumbra que o futuro governador do Rio, assim como a futura presidente do Brasil, vão lidar com o tema da Segurança Pública? Vera Malaguti: Olha, estou morrendo de medo dos dois. A perspectiva é sombria. E como o ministro da Defesa será mantido… Parece que estaremos bem com as embaixadas americana e israelense. Correio da Cidadania: Podemos, dessa forma, imaginar uma intensificação desse modelo militarista de mediação social? Vera Malaguti: Estão ocupando a minha cidade. A linda, insubmissa e rebelde cidade do Rio de Janeiro. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela nossa pobreza. Essa é a minha triste impressão dos acontecimentos. Como eu disse, não sei se é fascismo ou farsismo. Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista. |