“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
O texto de hoje é de Karina Biondi, antropóloga e autora do livro “Junto e Misturado: uma etnografia do PCC” (resenha), e foi apresentado no Seminário “Tráficos, violência urbana e o consumo de psicoativos: a contribuição etnográfica na compreensão das questões contemporâneas de interesse da saúde públicaâ€, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da USP em novembro de 2010.
Karina Biondi[2]
No decorrer de minha pesquisa, venho descrevendo como o Primeiro Comando da Capital (PCC) é constituÃdo por relações que são travadas artesanalmente, em escalas microscópicas. A existência do PCC depende dessas relações, é sustentada por elas. De acordo com essa perspectiva, as coisas não se dão de outra forma senão na medida em que vão acontecendo. Não há teleologia. Tudo está em constante transformação, negociação, discussão. Pois essas relações que garantem a existência do PCC são relações polÃticas, de uma polÃtica que nada tem a ver com polÃtica partidária, mas que diz respeito ao modo como os prisioneiros conduzem suas existências e suas lutas.
Podemos encontrar, nessa polÃtica do PCC, orientações e os procedimentos que não podem ser confundidos com leis, regras, ordens ou julgamentos. Traduzi-los dessa forma consistiria em aplicar metáforas que, ao invés de auxiliar, prejudicariam a análise, pois conduzem a um espelhamento do Estado, forma social conhecida. Ao abandonar essas metáforas, é possÃvel enxergar um PCC que não funciona na chave jurÃdica, onde não existe um código ou leis e punições prescritas à queles que as transgridem. O que existe é um debate incessante sobre “o que é o certo” e sobre como conduzir suas existências “pelo certo”. O que existem são idéias[3] cujo nascimento e morte dependem das forças que operam em sua produção, manutenção, replicação, interrupção, transformação. Elas possuem agência e sua autonomia, alcance e potência também dependem das interações em jogo e de como são nutridas (no sentido de mantidas vivas). As idéias podem ser para si próprio, podem envolver uma relação interpessoal (quando alguém “dá uma idéia” perante outro), mas existem também as idéias que se alastram, que são esticadas, replicadas e ganham alcance, tornando-se uma polÃtica, uma orientação mais geral.
Algumas dessas idéias tocam em questões como consumo e comércio de algumas substâncias ilÃcitas[4]. Uma idéia que teve um grande alcance no universo prisional está relacionada com a circulação e consumo de crack nas cadeias. Embora hoje o crack esteja extinto no interior das prisões, isso não ocorreu de uma hora para outra. Em um primeiro momento (presenciei isso em meados de 2004), definiu-se que não mais seria permitida a venda da droga por irmãos (membros batizados no PCC). Depois, os irmãos não podiam também consumi-la. Mais tarde, a população prisional também não podia vendê-la. A comercialização da substância estava proibida. Aquele que quisesse consumi-la deveria procurar meios para obtê-la por conta própria, ou seja, ele mesmo deveria trabalhar para conseguir levar a droga para dentro da cadeia. Até então, muitos presos consumidores de crack contraÃam dÃvidas junto a outros presos que o comercializavam e não conseguiam pagá-la. Essas situações geravam episódios violentos de cobrança da dÃvida e para muitos prisioneiros não restou outra opção senão habitar o seguro. Essa questão está registrada em um salve que circulou no interior das prisões: “A maior parte [dos] abusos, conflitos e covardias era gerada em conseqüência da droga (crack)”.
Não tive acesso à eficácia dessa medida que extinguia o comércio de crack, mas pouco tempo depois, também seu consumo foi extinto no interior das cadeias do PCC[5]. Este assunto foi abordado no depoimento de Marcos Willian Herbas Camacho (Marcola) à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Armas:
DEPUTADO PAULO PIMENTA – Agora, para se chegar a uma decisão sobre isso, é preciso que haja um comando.
MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO (Marcola) – Um consenso.
DEPUTADO PAULO PIMENTA – Um consenso, um comando.
MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO (Marcola) – Um consenso, o senhor não acha?
DEPUTADO PAULO PIMENTA – Certo, um consenso. Agora, há necessidade de ter uma…
MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO (Marcola) – Alguém dá uma idéia, por exemplo. Alguém pensa, raciocina e fala: ‘Ô, gente, o que que vocês acham de a gente abolir o crack dentro da prisão?’ Isso é mandado pra todas as penitenciárias, todas as penitenciárias do Estado. (…) Aà os presos de todas as penitenciárias vão expor suas opiniões, contrárias ou a favor. Se a maioria for a favor de abolir o crack, o crack vai ser abolido, conforme o caso.
Diferentes de leis, as idéias não codificam comportamentos e não prevêem punições a quem transgride o suposto código. Vale lembrar que a idéia de que um participante do PCC manda ou obedece as ordens de outro é absolutamente rechaçada (e por participante eu não me refiro somente aos irmãos, mas a todos que participam da produção do PCC). Por isso a importância (e a insistência de Marcola) de denominar esses processos como consensos. É muito freqüente ouvir dos prisioneiros que “ninguém é obrigado a nada” ou que “nada é proibido, mas tudo vai ter conseqüênciaâ€. A idéia é que não há pessoas com autoridade para punir outras, mas que cada uma é responsável pelos seus atos. Sendo assim, também são responsáveis pelas conseqüências desses atos, conceito que difere substancialmente do que conhecemos por punição.
Entre as conseqüências possÃveis estão as agressões e o envio do preso para o seguro. O recurso diplomático que anuncia a iminência dessas situações extremas e pode ser usado para resolver problemas envolvendo o consumo ou o comércio de substâncias ilÃcitas é o que os presos chamam de esticar o chiclete. Esta expressão pode ser grosseiramente traduzida como “levar à s últimas consequênciasâ€. Mas, observando cuidadosamente seus usos em contextos e situações diferentes, podemos ver que ela reflete muitas outras coisas. Esticar o chiclete, antes de tudo, implica dar prosseguimento a uma discussão, levá-la adiante; trata-se de conflitos que não tiveram um desfecho consensual. Quando um preso diz ao outro que vai esticar o chiclete, ele está afirmando que está disposto a levar o debate adiante e até sua conclusão, seja ela qual for.
Na cadeia
Isso fica claro quando examinamos o caso de Silas, preso que telefonou para seus familiares e disse que deveria pagar uma determinada quantia ao PCC, pois caso contrário seria assassinado. Um de seus companheiros de cela ouviu o teor do telefonema e, sabendo que o dinheiro que pedia não era para pagar ao PCC, mas para quitar uma “dÃvida com drogas”, esticou o chiclete[6]: passou a caminhada pra faxina, que chamou Silas a se explicar. Iniciou-se, então, um debate sobre o ocorrido. Aquele que passou a caminhada também participou deste debate, no qual estavam presentes todos os irmãos do raio.
Estamos, aqui, no campo da argumentação oral. No entanto, o chiclete, quando está sendo esticado, pode, a qualquer momento, se romper, e eis aqui uma das peculiaridades desta expressão: o chiclete se rompe do lado de quem não sustentou sua posição em suas argumentações. Perde o debate aquele que fica sem argumentos diante do outro ou aquele que cai em contradição. Depois de exposto o motivo pelo qual todos se reuniram e tendo os envolvidos exposto suas versões, resolveram pedir a Silas que telefonasse para sua mãe, com o telefone celular no viva-voz, e perguntasse a ela se tinha feito o depósito que ele havia solicitado: “E aÃ, mãe, fez o depósito?â€. A resposta da mãe confirmou a acusação: “Ainda não consegui, filho, estamos sem dinheiro. Eles já bateram em você?â€. Esticar o chiclete, portanto, supõe a possibilidade, bastante concreta, de sua ruptura, que representa a quebra de uma relação, não só entre os presos envolvidos, mas de um dos lados envolvidos com todo o coletivo.
Antes da ruptura, porém, o chiclete, ao ser esticado, torna-se mais fino, possibilitando a visualização do que antes estava em seu interior. Essa maior visibilidade proporcionada por sua estica revela que, quanto maior a exposição das coisas, maior a possibilidade de ruptura. Pois um chiclete não rompe se não é esticado. Diante da resposta da mãe de Silas, um dos irmãos tomou o telefone de suas mãos e disse a ela:
Boa tarde, senhora. Seu filho contraiu essa dÃvida com droga. Não faz parte da disciplina do Comando extorquir preso algum. Ninguém aqui está ameaçando seu filho. Olha, essa fita já era, não vamos nem cobrar mais, mas seu filho ficará interditado: ninguém mais pode vender droga pra ele, dar droga pra ele ou usar com ele. Porque não tá certo tirar dinheiro da boca da famÃlia pra usar com droga.
Silas foi interditado. A partir de então, de acordo com meus interlocutores, não se venderia drogas para ele, não se ofereceria para seu uso e não se consumiria com ele. Ocorrido em perÃodo posterior à extinção do crack nas cadeias, essa interdição Silas dizia respeito especificamente ao consumo de cocaÃna e maconha.
Nas ruas
Por volta do ano de 2005, ouvi relatos sobre a proibição da venda de crack nas quebradas. Diziam que o consumo abusivo de crack por pessoas das comunidades faziam-nas, por um lado, perder sua dignidade e, por outro, iniciar conflitos em função, por exemplo, da violência e roubo dentro da própria comunidade. Na época, chegou-se a noticiar a queda do consumo de crack em São Paulo. Mas logo depois a venda voltou a ser praticada. Segundo alguns interlocutores, “o dinheiro falou mais alto”. A idéia de manter o crack longe das quebradas não teve grande alcance, tal como teve nas prisões. Outro trecho do depoimento do Marcola na CPI aborda essa questão:
O SR. DEPUTADO PAULO PIMENTA – E essa regra é válida quando o cara sai do presÃdio também?
O SR. MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO (Marcola) – Não.
O SR. DEPUTADO PAULO PIMENTA – Se ele sair, ele pode vender crack, pode negociar?
O SR. MARCOS WILLIAN HERBAS CAMACHO (Marcola) – Isso é com ele, não tem nenhum problema. Mas, dentro da prisão…
Mas encontramos pontos em que a prisão se faz presente na rua, como no caso descrito pelo pesquisador Bruno Ramos Gomes em sua apresentação no Seminário promovido pela Faculdade de Saúde Pública da USP, em novembro de 2010. Ele registrou uma interessante fala de seu interlocutor, que afirmou que, ao ir para a cadeia, aprendeu outra forma de estar na rua. Ele teria deixado de ser nóia para se tornar traficante. O que esse relato ilustra é uma ética na qual o problema não é vender o crack, mas o uso que se faz dele.
Nas quebradas, também encontramos um procedimento utilizado nas cadeias: a interdição (com o que ocorreu com Silas, no caso descrito acima). O procedimento de interdição ocorre também fora das cadeias. Acessei relatos de mães que, vendo seus filhos “se destruÃrem na droga”, ou sendo vÃtimas de agressões e roubos dos próprios filhos, reportam o problema ao traficante local. O traficante, então, interdita o filho dela: não venderá drogas para ele e orientará a comunidade a não oferecer ou usar drogas com ele. No entanto, continua suas vendas a outros usuários que “sabem usar” a droga, ou seja, que não deixam seus efeitos comprometerem sua dignidade, sua hombridade ou interferirem nas relações próximas.
É importante ressaltar que, tanto nas cadeias quanto nas quebradas, não são somente os usuários de crack os que podem sofrer interdição. O que está em questão não é a substância ou a opção pelo seu consumo, mas o controle de si na interação do usuário com a substância e, subsequentemente, a interferência dos efeitos do consumo em sua rede de relações. Não se vê problemas, por exemplo, no alto consumo de cocaÃna, desde que o consumidor seja capaz de manter sua dignidade, sua hombridade, que permaneça sujeito-homem, que tenha controle de si e que seu consumo não comprometa a qualidade de suas relações. Entretanto, o consumo da mesma cocaÃna pode ser motivo para interdição do usuário, se ele não tiver o controle sobre os efeitos de seu consumo. Isso quer dizer que o consumidor de qualquer substância comercializada ilegalmente pode ser interditado (o prisioneiro Silas, mencionado acima, foi interditado em decorrência do consumo de cocaÃna). Contudo, é o crack a substância vista como a maior destruidora da dignidade de seus consumidores, aquela que, de acordo com as experiências empÃricas daqueles que convivem com usuários, mais facilmente transforma um sujeito-homem em nóia. Por isso, seu consumo é mal visto, mesmo que não sejam visÃveis os efeitos que transformariam o usuário em nóia. Cogita-se que, mais cedo ou mais tarde, ele se transformará em um nóia.
Existem variadas formas de se tornar nóia: por meio do consumo de crack, cocaÃna, de bebidas alcoólicas. Mas entre os nóias de farinha ou de pinga, é o de pedra a sua forma mais extremada. Como se fosse um super nóia. Vemos aqui que aparece uma substância lÃcita entre as que, de acordo com meus interlocutores, são capazes de “destruir a dignidade” de uma pessoa e prejudicar a qualidade de suas relações: o álcool. Por outro lado, substâncias ilÃcitas comercializadas por traficantes, como maconha, êxtase, lança perfume, raramente são associadas a essa “degradação humana”, tal como qualificam os efeitos do crack. Ainda assim, caso os efeitos de seu consumo prejudiquem a qualidade das relações de seus usuários ou incorram na possibilidade de overdose, podem desencadear interdições. Diferentemente, o consumo de álcool, justamente por ser uma substância comercializada licitamente, não é passÃvel de ser interdito.
Entretanto, a interdição nas ruas não tem tanto sucesso quanto nas prisões. O usuário pode ir a outro ponto de tráfico e, ali, comprar sua droga. A interdição não funciona como uma carteira de motorista apreendida, em que a pessoa perde o direito de dirigir em território nacional. O traficante de uma quebrada nem sempre conhece o traficante da quebrada vizinha (mesmo quando ambos são irmãos do PCC, o que nem sempre é o caso). Outras vezes, os traficantes se conhecem e o usuário precisa se afastar mais da região para conseguir sua droga. Muitas vezes, chega ao centro da cidade, na chamada “cracolância”.
No entanto, algo está acontecendo com as quebradas. Interlocutores com quem tive contato recentemente se queixaram que “a quebrada está largada”. Quando perguntei o que isso queria dizer, foram recorrentes as referências a situações que envolviam consumo excessivo de drogas que culminaram em mortes por overdose de rapazes menores de idade, moradores da quebrada. Diziam que isso passou a acontecer quando os irmãos da quebrada foram detidos ou quando tiveram que fugir em virtude de sucessivas incursões policiais. Para eles, a ausência dos irmãos deixa a “quebrada largada” e é o motivo pelo qual ocorreram as mortes por overdose. Afinal, é responsabilidade deles garantir a vigência da disciplina do Comando, da ética por meio da qual o problema não é a venda e nem mesmo o consumo de substâncias entorpecentes. O problema é o consumidor perder o controle sobre si, deixar de ser responsável pelos seus próprios atos, perder sua dignidade, sua hombridade, seu proceder. E isso precisa ser evitado, nem que para isso sejam adotadas medidas como a interdição, um dispositivo acionado somente após debate sobre “o que é o certo”, após se chegar a um consenso de que o mais certo é lançar mão dessa tentativa de oferecer ao interditado a lucidez necessária para decidir se trilhará seus caminhos de acordo com essa ética. O dispositivo da interdição parece contrariar uma ética que tem como ponto central a liberdade de ação. No entanto, assim como o consumo de substâncias entorpecentes não contraria o estado lúcido – afinal, considera-se que é possÃvel ter o controle de si mesmo sob efeito de tais substâncias –, a interdição pretende devolver à pessoa justamente a sua liberdade de ação, comprometida pela ação das substâncias. No mesmo sentido, a presença do Estado não é contraditória aos relatos de abandono da quebrada, pois seria justamente a repressão à circulação dos irmãos, pessoas ligadas a atividades criminosas, que resulta na impressão que moradores de algumas quebradas relataram quando afirmaram que “a quebrada está largada”.
[1] Texto apresentado no Seminário “Tráficos, violência urbana e o consumo de psicoativos: a contribuição etnográfica na compreensão das questões contemporâneas de interesse da saúde pública”, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da USP em novembro de 2010.
[2] Doutoranda em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS – UFSCar), pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades (HYBRIS) e bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
[3] As palavras grafadas em itálico correspondem a expressões nativas.
[4] Embora existam muitas substâncias, lÃcitas e ilÃcitas, que compõem a categoria “drogas”, ela aparecerá diversas vezes neste texto no sentido atribuÃdo por meus interlocutores, particularmente nos contextos em que as substâncias interferem em sua polÃtica. Como veremos, nos dados apresentados neste texto, a categoria “drogas” se restringirá a crack e cocaÃna.
[5] Esta é uma expressão nativa que não pretende se opor à gestão das cadeias pela Secretaria de Administração Penitenciária, pois refere-se à outra dimensão da existência prisional.
[6] A iniciativa de esticar o chiclete pode ser unilateral, ela não depende da concordância do(s) outro(s) envolvido(s). Por isso, nunca se propõe ao outro esticar o chiclete (algo do tipo “vamos esticar o chiclete?â€), pois da mesma forma que ninguém é obrigado a nada, o preso pode esticar o chiclete quando quiser, não depende da aceitação do outro. No entanto, para demonstrar que estão pelo certo, os presos costumam dizer “se quiser esticar o chiclete, demorou!â€.
Consumo de drogas na polÃtica do PCC[1]
Karina Biondi[2]
No decorrer de minha pesquisa, venho descrevendo como o Primeiro Comando da Capital (PCC) é constituÃdo por relações que são travadas artesanalmente, em escalas microscópicas. A existência do PCC depende dessas relações, é sustentada por elas. De acordo com essa perspectiva, as coisas não se dão de outra forma senão na medida em que vão acontecendo. Não há teleologia. Tudo está em constante transformação, negociação, discussão. Pois essas relações que garantem a existência do PCC são relações polÃticas, de uma polÃtica que nada tem a ver com polÃtica partidária, mas que diz respeito ao modo como os prisioneiros conduzem suas existências e suas lutas.
Podemos encontrar, nessa polÃtica do PCC, orientações e os procedimentos que não podem ser confundidos com leis, regras, ordens ou julgamentos. Traduzi-los dessa forma consistiria em aplicar metáforas que, ao invés de auxiliar, prejudicariam a análise, pois conduzem a um espelhamento do Estado, forma social conhecida. Ao abandonar essas metáforas, é possÃvel enxergar um PCC que não funciona na chave jurÃdica, onde não existe um código ou leis e punições prescritas à queles que as transgridem. O que existe é um debate incessante sobre “o que é o certo” e sobre como conduzir suas existências “pelo certo”. O que existem são idéias[3] cujo nascimento e morte dependem das forças que operam em sua produção, manutenção, replicação, interrupção, transformação. Elas possuem agência e sua autonomia, alcance e potência também
[1] Texto apresentado no Seminário “Tráficos, violência urbana e o consumo de psicoativos: a contribuição etnográfica na compreensão das questões contemporâneas de interesse da saúde pública”, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da USP em novembro de 2010.
[2] Doutoranda em Antropologia Social no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS – UFSCar), pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades (HYBRIS) e bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
[3] As palavras grafadas em itálico correspondem a expressões nativas.