“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
O texto de hoje é de um dos nossos colaboradores mais especiais, o professor de História e militante antiproibicionista há décadas Henrique Carneiro. Henrique nos traz uma instigante – e como sempre muito bem fundamentada – contribuição, relacionando os estados de consciência alterada e a busca pelo êxtase com o sentimento que eclode nas massas populares em momentos revolucionários ou de grandes lutas por transformações sociais. Henrique se inspira na primavera do Oriente Médio e nos levantes dos “indignados” na Espanha, e passa até pelas nossas mais humildes Marchas no Brasil, para tentar entender essa “atmosfera” de revolta que tem sido crescente entre a juventude mundial.
Confiram o texto completo abaixo e leiam também o texto Legalização e controle estatal de todas as drogas para a constituição de um fundo social para a saúde pública, também de Henrique e publicado anteriormente pelo DAR.
Henrique Carneiro-junho 2011
Um dos aspectos mais notáveis da onda revolucionária que se espalha desde o inÃcio de 2011 é seu caráter epidêmico. Essa palavra, de origem grega, quer dizer “sobre o povoâ€, como algo que atinge a todos de maneira praticamente involuntária, algo superior até mesmo a uma “vontade†particular ou egoÃstica que se eleva como um arrebatamento, uma força superior que muda completamente a vida cotidiana, rompe a rotina dos dia-a-dia e cria um amálgama moral entre as pessoas. É uma forma de contágio, portanto, lembrando que antes da idéia de contaminação por uma doença, a noção de epidemia tinha um sentido dionisÃaco, pois era assim que se denominava na Grécia antiga a conversão coletiva aos ritos convulsivos e ruidosos do deus da ebriedade.
É como uma embriaguez, portanto, que se manifesta esse contágio epidêmico da disposição revolucionária, cuja propagação é mimetizada e emulada por meios de comunicação em redes que se propagam não só por TV, rádio ou boca a boca, mas por uma difusão midiática nova das chamadas “redes sociais†da Internet, particularmente o twitter, onde ocorrem fenômenos virais com as mensagens que podem ser replicadas a milhares de outros emissores.
A disposição de luta que nasce com uma velocidade espantosa em povos acostumados por décadas de passividade e inação impressiona por sua intensidade psicológica que advém de um impacto moral, uma reverberação social de ondas de indignação, de sensações de que chegou o momento do basta. O auto-imolado suicÃdio de Mohamed Bouazizi na TunÃsia, em 17 de dezembro de 2010, fez parte de uma onda de atos semelhantes que além dos desesperos individuais simbolizou o esgotamento psicológico de muitos povos num mesmo momento. Essa sincronia, esse cosmopolitismo, essa natureza culturalmente febril e viral de uma sequência de rebeliões criou ondas de choque que já atingiram, de imediato, o Mediterrâneo, levando para a Espanha, Grécia, Portugal e outros paÃses levantes sociais de caráter semelhante: ações de rua, ocupações de praças, uso de mÃdias e redes de comunicação – tudo será filmado e colocado on line – e articulações que recusam o espaço institucional tradicional. PaÃses como a China sentiram o risco e proibiram menções à Praça Tahrir. Lá, onde a Internet mais cresce e mais é controlada, a maior fortuna do paÃs é a Baidu, equivalente chinês do Google, criada por Robin Li, que teve sua empresa como a primeira chinesa a entrar na Nasdaq.
Não é acidental que o ditador Kaddafi tenha usado sistematicamente uma teoria estapafúrdia para explicar a irrupção súbita da insurreição do povo lÃbio contra seu governo que foi a das “pÃlulas alucinógenas†distribuÃdas pela Al Qaeda para os rebeldes. Três dias após o inÃcio do levante em Benghazi, seu filho foi a TV, em 20 de fevereiro de 2011, num discurso exaltado ameaçou mais de cem mil mortos e acusou os rebeldes de serem drogados com alucinógenos. A versão foi repetida pelo próprio ditador quando, dias mais tarde retomou na TV a versão das “pÃlulas alucinógenas†de Bin Laden, e chegou a apresentar, em 04 de março de 2011, quatro containers cheios de remédios supostamente apreendidos, especialmente o opióide Tramadol, como evidência dessa conspiração “alucinógeno-fundamentalistaâ€, numa versão que foi exibida como algo verossÃmil apenas pelo correspondente da Tele Sur venezuelana, Jordan RodrÃguez[1]. A CNN chegou a fazer uma entrevista com o porta-voz lÃbio em que o repórter Anderson Cooper questionava como pÃlulas anestésicas opióides, que produzem sono e sedação, poderiam ajudar a despertar disposições bélicas e rebeldes[2].
O recurso a uma droga alucinógena como única explicação para as causas do levante popular é não só uma das utilizações mais grotescas dos argumentos da “guerra contra as drogas†por parte de um ditador caricato, mas é também uma mostra de como a disposição revolucionária em povos que viveram passivos por décadas é um fenômeno também de ordem psicológica, de uma disposição mental que irrompe como um relâmpago em céu claro.
A acusação à s revoluções de serem obras da embriaguez é antiga. Após a derrota da Comuna de Paris, em 1871, a Academia de Medicina criou uma comissão especial para analisar as causas da irrupção revolucionária, num esforço que já era antigo de relacionar a dissidência com a doença. Sua conclusão foi de que “a Comuna se fez numa espécie de embriaguez permanente, uma vasta erupção de alcoolismoâ€[3]. Como sublinha Yves Lequin, “o que é novo é que o inebriamento alcoólico deixa de ser uma simples metáfora e que os médicos pretendem estabelecer sobre a frieza das observações a filiação biológica da subversãoâ€[4].
Walter Benjamin havia se dado conta dessa força do êxtase, ao escrever sobre o surrealismo, que este, “em todos os seus livros e empreendimentos, empenha-se em conquistar as forças do êxtase para a revoluçãoâ€, pois é uma “verdade, de nós conhecida, de que em qualquer ato revolucionário existe vivo um componente extáticoâ€[5].
A partir das dimensões do sonho e do êxtase, Benjamin identificava uma possibilidade de expansão da consciência racional, para um âmbito supra-racional ou supra-real como conceberam os surrealistas a denominação do seu movimento. Diante de um mundo técnico industrial no qual a humanidade é oprimida e explorada, onde a guerra é a grande meta e a publicidade o seu método de arrebanhar multidões, a “sua concepção da essência dessa época†era a seguinte: “ou bem a técnica se tornava, nas mãos das massas, o órgão sensato de uma experiência cósmica embriagadora ou então caminhava para catástrofes ainda piores do que a Primeira Guerra Mundialâ€[6].
A consciência polÃtica de classe foi teorizada por grande parte da tradição marxista como parte da tradição filosófica da filosofia do sujeito que via na auto-reflexividade crÃtica do espÃrito humano consigo próprio no seu desdobramento histórico como o foco cognitivo não só dos indivÃduos, mas do próprio “espÃrito da épocaâ€. A consciência crÃtica de uma época sobre si própria se cristalizaria institucionalmente nas organizações sociais da classe trabalhadora como os sindicatos e os partidos. Estes, entretanto, após as ascensões e as crises das internacionais operárias, se tornaram a principal camisa de força burocrática dedicada a bloquear a luta social. A consciência polÃtica rebelde, órfã dos aparatos, e desconfiada da polÃtica institucional, emerge atualmente em manifestações muitas vezes espontâneas de rebelião, cujo caráter mais imediato é um estado de espÃrito de euforia coletiva, de festa transgressiva, de entusiasmo polÃtico.
Esse estado corresponde também à s caracterÃsticas de inorganicidade e perda de direitos sociais, polÃticos e sindicais das novas camadas do proletariado, especialmente na Europa, caracterizado pela presença de um verdadeiro apartheid em relação aos imigrantes ilegais e por uma exclusão de direitos também em relação à s novas gerações de trabalhadores. O “precariado†é o termo que vem designar uma nova forma de proletariado informalizado, precarizado, terceirizado, também já chamado de “cognitariadoâ€, termo que parece ter sido proposto originalmente por Franco Berardi[7] para se referir a um novo tipo de trabalhador empregado especialmente no campo da telemática cujas habilidades intelectuais são exploradas por meio de precarização, desregulamentação e perda dos direitos sociais do welfare state das gerações anteriores do proletariado industrial.
A palavra “precariado†parece ter surgido como um neologismo anglicizado no Japão, onde a força de trabalho desregularizada passou de 15% em 1984 para 33% em 2006[8]. O economista Guy Standing publicou o livro The Precariat. A new dangerous class, em 2011, desenvolvendo a tese de que este setor vem se tornando cada vez mais importante e socialmente conflitivo[9]. O termo se tornou comum no debate sociológico contemporâneo, a ponto de alguns, talvez apressadamente, relacioná-lo com um novo modelo de acumulação “pós-industrial†tÃpico do século XXI[10].
O cenário contemporâneo se parece mais com uma nova divisão internacional do trabalho, no qual a high-tech, as indústrias da informação, da mÃdia e do espetáculo se localizam no centro, enquanto as indústrias pesadas se transferem para áreas periféricas e pior remuneradas, não havendo, portanto, em escala global, nenhuma diminuição do proletariado industrial. Mas, tanto no setor industrial como no de serviços, há um enorme esforço global de desregulamentação e perda de direitos sociais em nome da “flexibilização†que criou uma nova camada social precarizada que se concentra nos mais jovens. A exigência de que a crise desencadeada desde 2008 pelo sistema financeiro seja paga por meio dos cortes públicos e pela privatização foi a gota d´água que está fazendo a Espanha e a Grécia transbordarem.
Esses “indignados†da Europa, assim como os insurretos do mundo árabe, são os que podem despertar uma nova euforia polÃtica coletiva num mundo dominado pelos ideais de individualismo e continuidade perpétua do cotidiano. A sua apropriação dos recursos técnicos da comunicação de massas hipermidiática cria um novo fórum público de opinião e coordenação polÃtica. A ruptura do cotidiano é uma emancipação da criatividade e uma vazão de alegria e excitação contidas e se apresenta como uma consciência polÃtica não apenas crÃtica e voltada para a ação, mas com um potencial embriagador, que pode contagiar povos inteiros para sua elevação ao protagonismo público de uma vida social solidária em que o futuro deixa de ser a repetição do mesmo, mas uma invenção prática na novidade de cada dia, quando a polÃtica sai da sujeira cinzenta dos salões e vai para a iluminação das ruas.
Um exemplo dessa nova consciência crÃtica e rebelde foram as “marchas da maconha†no Brasil, cuja proibição suscitou não apenas enfrentamentos com a polÃcia nas ruas ou a retomada das lutas por liberdades democráticas, mas um chamado à s “marchas da liberdadeâ€, cuja próxima deverá ser realizada em várias cidades do paÃs em 18 de junho próximo, um dia antes do dia para o qual foi chamado um protesto unificado em toda a Europa. As conexões de rebelião neste annus mirabilis de 2011 se tecem em meio a muitas coincidências felizes em que a emulação internacional da revolta volta a criar aquilo que podemos chamar de uma “atmosfera†revolucionária geral.
Bibliografia:
Benjamin, Walter, “O Surrealismo, O mais recente instantâneo da inteligência européiaâ€, in Textos escolhidos, trad. José Lino Grünnewald, Col. Os Pensadores, 2. Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983.
Delumeau, Jean; e Lequin, Yves (orgs.), Les Malheurs des Temps. Histoire des fleaux et des calamites em France, França, Larousse, 1987.
Wiggershaus, Rolf, A Escola de Frankfurt. História, desenvolvimento teórico, significação polÃtica, Rio de Janeiro, Difel, 2002.
[1] http://multimedia.telesurtv.net/5/3/2011/28474/autoridades-libias-detuvieron-en-tayura-contenedores-con-pastillas-provenientes-de-dubai/
[2] http://www.dosenation.com/listing.php?id=8281&utm_medium=twitter&utm_source=twitterfeed
[3] Yves Lequin, “Au péril de la race†in Delumeau, Jean; e Lequin, Yves (orgs.), Les Malheurs des Temps. Histoire des fleaux et des calamites em France, França, Larousse, 1987 , p.438.
[4] Yves Lequin, “Au péril de la race†in Delumeau & Lequin, p.439.
[5] Walter Benjamin, “O Surrealismo, O mais recente instantâneo da inteligência européiaâ€, in Textos escolhidos, Col. Os Pensadores, 2. Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983, p.83.
[6] Rolf Wiggershaus, A Escola de Frankfurt. História, desenvolvimento teórico, significação polÃtica, Rio de Janeiro, Difel, 2002, p.228.
[7] La fabbrica dell’infelicità : new economy e movimento del cognitariato. Roma, DeriveApprodi, 2001.
[8] http://search.japantimes.co.jp/cgi-bin/nn20070621f2.html
[9] http://www.policy-network.net/articles/4004/-The-Precariat-%E2%80%93-The-new-dangerous-class
[10] http://politique.eu.org/spip.php?article333