Estudo avaliou 667 casos de flagrantes na capital paulista e processos no Judiciário
Por Gabriela Moncau
Caros Amigos
Se a última reforma na Lei de Drogas (11.343/06) implementada em 2006, que determina que o usuário de droga ilÃcita não é mais punido com pena de privação de liberdade, parecia trazer mudanças interessantes na opinião daqueles que vêem na “guerra à s drogas†uma justificativa para o encarceramento em massa e a criminalização seletiva do setor mais pobre da sociedade, a recente pesquisa lançada pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), “Prisão provisória e lei de drogas – um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Pauloâ€, mostra que os efeitos têm sido opostos. Junto com o abrandamento da pena para usuário, a lei de 2006 aumentou a pena de 3 para 5 anos para o traficante, cujo crime passou a ser considerado hediondo e, portanto, não passÃvel de liberdade provisória.
“A maioria dos entrevistados disse que tem a sensação de enxugar gelo e que essas prisões não têm resultado em um combate efetivo [ao tráfico]â€, relatou Gorete Marques, coordenadora do estudo. Se por um lado a maioria dos policiais mostrou entender que amanhã já entra outro no lugar de quem eles prenderam hoje, por outro, vêem a necessidade de continuar fazendo seu trabalho. A respeito dos presos enquadrados por envolvimento com o comércio ilegal de drogas, “se são traficantes, são no máximo pequenos traficantes. Não correspondem a atores que, retirados dessa cadeia [produtiva do tráfico], surjam efeitos sobre ela. Geralmente são pessoas que estão na ponta, fazem o trabalho da venda direta ao consumidor, e, uma vez retirados desse posto, são substituÃdas†constata Gorete.
Metodologia
A pesquisa foi elaborada a partir da análise junto a 667 autos (e 923 acusados) de prisão em flagrante de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. A equipe de pesquisadores passou 3 meses acompanhando o Departamento de Inquéritos Policiais e PolÃcia Judiciária (DIPO) no Fórum Criminal da Barra Funda (o maior da América Latina). Os processos originados desses autos (se a pessoa respondeu a acusação solta ou presa e as sentenças que saÃram nesse perÃodo) também serviram de fontes, além de entrevistas com policiais militares e civis, promotores, defensores e juÃzes.
Lotando os presÃdios
A prisão provisória – medida processual, de caráter excepcional, na qual a pessoa é mantida presa antes de ser propriamente condenada – tem crescido vertiginosamente no Brasil: de 2005 a 2010 houve aumento de mais de 60% de presos provisórios no sistema carcerário. Concomitante a isso, houve aumento dos presos por tráfico de drogas. No Brasil, em 2006 o sistema penitenciário abarcava 47.472 presos. Até 2010 a taxa pulou para 124%, quando o número atingiu 106.491 presos. Somente em São Paulo o aumento foi de 142%. Já temos a quarta maior população carcerária do mundo, ficando atrás somente dos EUA, China e Rússia.
Questionados a respeito da utilização do dispositivo de prisão provisória, muitos juÃzes demonstraram que a medida vai além de um dispositivo cautelar. Somando-se ao sentimento de um anseio da população que cobraria que os operadores do direito “mostrem serviçoâ€, muitos simplesmente se vêem na condição de antecipar a sentença, como mostrou trecho de uma entrevista (anônima) feita com um juiz durante o estudo: “Se você condenar, para o indivÃduo não mudou nada, prisão é prisão, só muda o nome. Em termos é uma antecipação de pena, qualquer juiz acaba fazendo esse cálculoâ€.
Perfil dos presos por tráfico de drogas
Os pesquisadores do NEV conseguiram desenhar um retrato dos flagrantes de tráfico de drogas na capital paulista. Em quase todos os casos a detenção é feita pela PolÃcia Militar (87%), ou seja, em via pública. Na maioria dos casos a pessoa é apreendida sozinha e, portanto, a única testemunha é o policial que faz a prisão. Apesar do enquadramento como traficante, a média da quantidade de entorpecentes apreendidos por ocorrência se mostrou bastante baixa: 66,5 gramas, incluindo maconha, cocaÃna, e outras drogas.
Quase nenhuma menção ao envolvimento do acusado com organizações criminosas foi encontrada na amostra: em apenas 1,8% dos casos há alguma relação. Apenas em 4% dos casos houve investigação ou apuração dos flagrantes. “Os delegados costumavam dizer que por serem flagrantes, já trazem todos os elementos que precisariam ser levantados para o inquérito. Na verdade o inquérito era o próprio auto de flagrante, com depoimento do policial que fez a prisão, do acusado e um laudo comprovando que a droga é ilÃcitaâ€, resume Gorete.
Quanto ao perfil dos apreendidos durante os três meses (novembro e dezembro de 2010 e janeiro de 2011), 87% eram homens, maioria entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com até o primeiro grau completo, sem antecedentes criminais e que declarou no momento da prisão exercer alguma atividade remunerada. Apesar dos autos não registrarem a média de renda das pessoas, é possÃvel ter ideia da classe social que é alvo da “repressão ao tráfico†ao observar que em 61% dos casos a pessoa é atendida pela Defensoria Pública (que presta assistência jurÃdica a pessoas que ganham até 3 salários mÃnimos). O estudo indicou ainda que 81% das pessoas tiverem contato com seu defensor depois de 3 meses ou mais de prisão provisória, normalmente apenas 10 minutos antes da primeira audiência. “Os defensores públicos entrevistados alegaram que têm muita dificuldade de fazer a defesa principalmente em caso de tráficoâ€, conta Gorete.
O levantamento junto aos autos de prisão em flagrante, demonstra que as mulheres (13% das pessoas detidas durante o perÃodo em questão), quando comparadas proporcionalmente, foram presas através de denúncias (35%), e em revistas na penitenciária (10,9%), enquanto os homens sofreram mais abordagens a partir de patrulhamento de rotina (67,8%).
A “diferença†entre usuário e traficante
Diferente do que se esperaria, a Lei de Drogas não determina a quantidade de entorpecente ilÃcito que definiria a linha entre usuário e traficante. A distinção, feita de acordo com local, circunstância, disposição da droga (se estava dividia em porções) e outros fatores subjetivos, acaba sendo feita pelo próprio policial ou juiz, não raras vezes apoiada em graves preconceitos.
“Atitude suspeita é um gesto de anormalidade. Um cara de terno numa favela é normal?! Ou ele foi buscar [droga] pra consumo ou ele tá envolvido com o tráfico. Dei aula na escola de soldados. Os soldados me questionavam: é atitude suspeita um negro num Audi? Depende do local, das circunstânciasâ€, afirmou um policial militar entrevistado na pesquisa, confirmando trecho da música “Caso de polÃciaâ€, de Rappin Hood: “Se você for preto como eu ou meu irmão, parado é suspeito, correndo é ladrãoâ€.
“A diferença [entre usuário e traficante] é estabelecida de acordo com o poder aquisitivo do apreendido. Se ele tem poder aquisitivo alto e é pego com 10 papelotes, ele pode ser usuário. Já se uma pessoa de poder aquisitivo baixo é pega com a mesma quantidade é mais fácil acreditar que ele seja traficante, pois ele não tem capacidade financeira de comprar a drogaâ€, admitiu um delegado em entrevista ao estudo.
“Em cerca de 44% dos casos, os policiais que realizaram a prisão em flagrante disseram que o acusado teria confessado o crime no momento da prisão, o que para defensores não pode ser provado e não deveria ter o peso que tem no julgamentoâ€, salientou a pesquisa do NEV. “Eu não tenho certeza que ele estava vendendo, mas as circunstâncias me levam a crer que sim. Não precisa ter a certeza absoluta de que um crime aconteceu para você condenar alguém, o que eu preciso é não ter dúvida do contrário. Precisa ser uma dose de razoabilidadeâ€, descreve um promotor entrevistado.
Antes e depois
A respeito da diferença entre a polÃtica de drogas antes e depois da lei de 2006, a conclusão do sumário executivo da pesquisa aponta que “se algo mudou, esta mudança não foi sentida pelos operadores que continuam prendendo, processando, defendendo e julgando os mesmos réusâ€. Durante os três meses de colheita de dados, “nenhum financiador do tráfico foi preso em flagrante e nenhum acusado advindo da classe média foi mantido presoâ€.
Entre as recomendações que aparecem ao final da pesquisa, consta a reavaliação da forma como usuários e traficantes são definidos pela atual legislação de drogas, o fortalecimento das defensorias públicas, o investimento em pesquisas nos variados campos de conhecimento sobre drogas e em programas de tratamento para presos que são dependentes de drogas, além da ampliação do debate sobre drogas abordando temas como polÃticas de redução de danos, discriminalização e legalização das drogas.