‘Pregão do crack’ atrai 300 usuários
Droga é vendida aos gritos, no inÃcio da noite, a poucos metros de 30 carros da PM
LAURA CAPRIGLIONE
MARLENE BERGAMO
DE SÃO PAULO
“Olha a pedra, olha a pedra de 5! Pedra de 5!” Eram 20h30 de ontem, quando, na esquina da avenida Rio Branco com a rua dos Gusmões, centro de São Paulo, abriu-se o feirão de crack, vendido aos gritos, como se fosse produto legal. Cerca de 300 usuários da droga arremataram suas pedras.
A quatro quadras dali, do outro lado da avenida Rio Branco, pelo menos 30 carros de polÃcia com os giroflex vermelhos ligados anunciavam a ocupação do território da cracolândia pelas forças da ordem. Ruas tranquilas, poucas pessoas nas calçadas. Uma cidade normal?
“Você prefere tratar um câncer localizado? Ou com ele espalhado por todo o corpo? É isso o que estamos fazendo: espalhando o câncer.”
A frase expressa o desalento de um dos cerca de 70 policiais ontem na operação.
“E enquanto a gente está aqui, eles estão logo ali”, emendou o parceiro, um soldado da PM, apontando.
Bastava atravessar a avenida, para constatar que o inferno apenas tinha mudado de endereço.
Um homem lutava para se livrar do cerco de três jovens alucinados que tentavam roubá-lo (levaram-lhe guarda-chuva, blusa e celular). Outro usuário trazia debaixo do braço um cinzeiro, desses de portaria de hotel. Um idoso levava um carrinho de supermercado com uma geladeira de isopor, tênis velhos e uma caixa com embalagens cheias de cola branca. Tudo para vender ou trocar pela droga.
Ontem, terceiro dia do cerco à cracolândia, continuou a estranha dança entre polÃcia e usuários de crack.
Os homens da Força Tática -armados com fuzis e espingardas de balas de borracha- tangiam os esquálidos zumbis para fora de seus esconderijos, prédios em ruÃnas.
Minutos depois de dispersos, os usuários voltavam a se concentrar. Estavam exaustos. O dia todo andando -se sentassem ou deitassem na calçada, já um PM aparecia para tocá-los dali.
Edilaine, 18, apenas um dente na boca, cogitava voltar para a famÃlia, no Itaim Paulista, extremo leste da cidade. “A gente não pode fumar, não pode dormir e nem descansar. Está difÃcil.”
Nem as irmãs e os frades da Missão Belém, católica, que atuam na recuperação de dependentes quÃmicos escaparam. À noite, na praça Princesa Isabel, vizinha dali, três grupos de moradores de rua e de usuários de crack estavam sentados no chão, rezando e cantando com os missionários, quando chegou a PM.
“Mãos na cabeça” e todos foram revistados.
Sobre a tática anunciada pela prefeitura, de “dor e sofrimento” para obrigar os usuários de crack a pedir ajuda para sair da dependência, o padre Julio Lancelotti, 63, vigário episcopal para a população de rua, disse: “Isso é tortura. Dor e sofrimento levam ao desespero. Só a alegria e esperança podem provocar a mudança”.
Usuários temem até helicóptero durante operação na região central
‘Parece brincadeira de gato e rato’, diz comerciante da área
AFONSO BENITES
DE SÃO PAULO
“Os ‘gambés’ estão voando”, grita o usuário de crack.
Bastou ele dizer isso para cerca de 30 ‘noias’, como os usuários são conhecidos, deixarem o ponto onde estavam, na esquina das ruas do Boticário e Timbiras, no centro de São Paulo, e se espalharem por outras vias da região.
O motivo, era um helicóptero da PM que sobrevoava o centro monitorando concentrações de viciados para dispersá-los em seguida. O termo ‘gambé’, usado pelo viciado, é um apelido utilizado para se referir aos policiais.
Desde terça-feira passada é comum ver helicópteros sobrevoando a cracolândia. Quando não são da PM, são de TVs tentando mostrar a operação feita para, segundo os órgãos oficiais, “sufocar o tráfico de drogas”.
“Não gostamos que fiquem de olho na gente. É bom você nem ficar muito tempo por aqui”, diz um viciado, aparentando ter 30 anos, pouco antes de acender seu terceiro cachimbo com crack do dia.
“Nos últimos dias, os ‘noias’ e os policiais parecem que estão brincando de gato e rato”, diz um comerciante.
Quando um policial se aproxima da turba, alguém anuncia sua chegada e os demais correm. Na tarde de ontem, a Folha presenciou duas tentativas de abordagens. Ninguém foi detido nelas.
Com o fechamento de cortiços que abrigavam os ‘noias’ na rua Helvetia e na alameda Dino Bueno, os viciados tiveram de buscar novos locais para consumir a droga.
De dia eles eram vistos em vias do entorno: avenida Rio Branco, alameda Barão de Piracicaba e rua Aurora.
Até em prédios residenciais havia usuários. A reportagem viu uma mulher fumando crack na sacada de um apartamento invadido na rua Conselheiro Nébias. “Tá olhando o quê, sou viciada, mas não fico na rua”, disse ao perceber que era notada.