Rezam os livros de história que, quando Dom João VI correu do Rio de Janeiro em 1821 de volta à Portugal, raspou os cofres e deixou um território gigantesco para ser administrado por seu filho, Dom Pedro. Este, sem muito talento para a coisa e de pires na mão, iniciou a história independente de um paÃs que já nascia adiando suas necessidades e obrigações.
Ou seja: nascia o Brasil que conhecemos.
A partir daÃ, quase tudo o que constitui uma civilização ocorreu no Brasil tardiamente, e daquele jeito bem mais ou menos. Ou então ainda não ocorreu. A primeira universidade brasileira surgiu no século XX, centenas de anos após nossos vizinhos terem as suas. Escola pública universal é uma conquista recente, e só ocorreu quando a qualidade dela já não era das melhores. Os surtos de dengue se repetem a cada verão. E o respeito aos direitos humanos ainda está longe dos hábitos enraizados da sociedade.
No último século, lampejos de uma democracia frágil e duas ditaduras, a de Getúlio Vargas e a dos milicos, acabaram por deturpar uma das instituições fundamentais para a evolução de uma sociedade: a polÃcia.
O brasileiro aprendeu a ter medo de quem veste farda. Nos anos de chumbo, porque a polÃcia tinha poderes arbitrários para prender quem quisesse. Tem cara de terrorista? Vai preso. Tem cara de bandido? Vai preso. Está sem o R.G.? Vai preso. Está fazendo nada? Vai preso por vadiagem. E assim foi por muitos anos. Se perguntassem a um policial nos anos 1970 sobre qual era a prioridade de seu trabalho, a resposta padrão seria “manter a ordemâ€, e não “proteger a sociedadeâ€. O cassetete virou polÃtica.
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Isso porque, na prática, a polÃcia defendia os governantes da própria população, porque uns queriam ser representados e outros se outorgaram o direito de representar. Estavam em lados opostos, algo que não faz sentido, em tese, em uma democracia – em que você pode cobrar quem elegeu como representante.
A polÃcia é um exemplo de que a transição da Ditadura Militar para a democracia parece ser mais um capÃtulo dessa história brasileira na qual as coisas acontecem mais ou menos, das polÃticas que mudam mas não muito, da evolução que se dá do jeito que der e não do jeito que deveria ser.  Podem ter existido casos isolados, mas nunca  houve uma real e abrangente ruptura das estratégias policiais da Ditadura com a maneira como as polÃcias estaduais atuam hoje.
Três fatos desta semana exemplificam esse fato: a ação da PM paulista na chamada Cracolândia, zona central de São Paulo tomada por viciados; a violência gratuita de um policial, também da PM paulista, contra um estudante da USP;  a ação repressiva da polÃcia do Piauà contra estudantes que protestavam contra o aumento da passagem de ônibus.
O que podemos fazer para acabar com o problema do crack no centro da maior cidade do PaÃs? Borrachada em viciado, impugindo-lhes propositalmente “dor†e “sofrimentoâ€, relegando a segundo plano a ação de saúde pública e de assistência social. O que fazer com estudantes a protestar contra o aumento da passagem de ônibus? Borrachada neles, como se fossem revolucionários comunistas tentando tirar o milico de plantão no poder do PaÃs.
É importante frisar que ser um policial competente no Brasil é um sacrifÃcio digno de odisséias  bÃblicas. O salário é baixo, sobretudo se comparado ao risco que ele corre todos os dias. Quase nunca ele tem ao seu dispor uma boa estrutura para exercer o ofiÃcio. E ainda tem grandes chances de receber instruções deturpadas no que se refere aos direitos humanos.
As autoridades já deveriam há muito tempo ter criado uma polÃtica nacional para a ação policial, seja esta sob jurisdição estadual ou municipal. PolÃcia que bate sem contexto de legÃtima defesa é polÃcia subdesenvolvida. A incapacidade das corporações policiais em resolver os problemas sem o cassetete mostra um paÃs a evoluir do jeito que dá e não do jeito que deveria ser. É o rescaldo da Ditadura, que nos lembra diariamente o quão longe ainda estamos de sermos uma civilização avançada, não importa o quão bem caminhe nossa economia.