Por Felipe Milanez e MaÃra KubÃk Mano
O dia começou cedo no último domingo, 22 de janeiro, em São José dos Campos, interior de São Paulo. Depois de chuva forte, havia muita lama por toda a área do Pinheirinho. Às 5 horas da manhã, todos estavam recolhidos em casa, relativamente mais calmos depois que a ordem de despejo, imaginavam, havia sido suspensa.
JanaÃna (que pede para não ter o sobrenome citado), seu marido e filhos dormiam. Então veio o estrondo, seguido por sons diversos, despertando as famÃlias que vivem na área para um pesadelo.
Ela conta, com um olhar distante e um semblante tranquilo, algumas horas mais tarde, o que aconteceu nessa madrugada: “A maioria estava dormindo quando eles entraram. Eu acordei com o barulho do helicóptero. Abri o portão e meu vizinho estava gritando. Eles já estavam quebrando. Não tinha como ficar. Eles entraram em casa atirando. É uma covardia o que eles estão fazendoâ€.
Um susto. Porta arrombada. Gás. Na rua, caos, correria. Barulhos de tiros. Gritos. Todos saindo de casa atordoados.
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“A gente sabia ali que a qualquer hora podia vir a polÃcia pra cimaâ€. Mas foram pegos de surpresa.
“Sai de casa, sai, saiâ€, gritou um policial para uma senhora. Ela ainda estava assustada no inÃcio da tarde. “Não deu tempo de pegar nada. Eles disseram: deixa tudo aÃ, depois vai voltar para buscar. Peguei o que deuâ€.
“Peguei o que deu†foi uma expressão corrente. Adrian pegou as galinhas e a mãe. Teve gente que pegou o filho, o bebê. Algum carrinho de mão com um amontoado de objetos. Outros conseguiram jogar uns poucos bens, como aparelho de som e televisão, no porta-malas de carros. Cães. Os bichos deveriam vir junto impreterivelmente. Alguns, saindo do susto, aparentemente mais calmos, acreditaram nas palavras dos policiais e que a senha de papel que receberam daria direito a ir e ver, logo em seguida, a casa intacta para retirar o que quiser.
JanaÃna ficou confusa quando percebeu que tinha medo da polÃcia. “Na realidade, a gente tem eles para proteger a gente. Mas nesse caso, eles estão protegendo ninguém.†Uma senhora disse, com ar meio irônico: “liguei para o 190 para chamar a polÃcia!â€
A confusão em torno do papel da polÃcia (medo ou confiança?), para a moradora do Pinheirinho, tem origem na Justiça.
“A juÃza mandou e aproveitaram hoje, domingo, porque a liminar federal vai para ela amanhã (segunda-feira). Agora a maioria do povo vai para alojamento. Ainda tem bastante gente lá dentro. Não querem deixar as pessoas saÃrem nem entraremâ€, conta JanaÃna, nessa tarde longa de um dia de medo e tensão.
Ela mora há 8 anos na ocupação, desde seu inÃcio. E segue: “À noite vai ser pior, vão quebrar tudo. Já tem trator lá, mas não sabemos se derrubaram as casas. Eu não tirei nada, só estou com a roupa do corpo. Eu tirei meus filhos de manhã cedo e meu marido ficou. Ele saiu depois e só pegou alguns documentos. O resto ficou para trás: móveis, eletrodomésticos tudo. Meus filhos estão todos sem roupaâ€, afirma, apontando para uma menina descalça.
A reintegração de posse foi autorizada pela juÃza da 6ª Vara CÃvel de São José, Márcia Mathey Loureiro. “Se ela aparecer aqui vai ser linchada ou mortaâ€, vocifera Ivonete, empregada doméstica e mãe de três filhos. “Eu tenho que batalhar para sobreviver. Meu marido está preso e eu nem tenho dinheiro para ir visitar ele. Tudo vai para as criançasâ€.
A entrevista é interrompida por três vezes. Ivonete se perde e é reencontrada em instantes em meio à correria das balas e bombas.
Cheiro de fumaça, cheiro de borracha queimada, marcas pretas no chão. “Parece Bagdáâ€, comenta um amigo. “Faixa de gazaâ€, diz um jovem. “Palestina!â€, gritou outro, numa roda de papo falando sobre o que está acontecendo.
Carros incendiados nas ruas de acesso avisam, a quem possa interessar, qual é a real situação. Mais perto, tudo fica pior. Tensão era tão visÃvel no ar que ele estava pesado – talvez pelo cheiro de tanta fumaça misturada.
Tumulto. Gente caminhando para todos os lados. Desnorteados, às vezes, como zumbis pobres carregando sacolas, botijões, coisas em carrinhos de bebês, bebês nos colos.
Um helicóptero na cabeça intimida qualquer um. Mais tarde, veio outro, mais amedrontador. Deles saiam bombas de gás quÃmico, insuportáveis ao nariz e olhos. Pendurado para fora da aeronave, o atirador de elite aponta sua metralhadora indiscriminadamente. Isso cria um pânico no chão. O barulho das hélices voando baixo permanece durante todo o dia, ora mais forte, ora mais distante.
Estratégia de terror psicológico. Cerco. Estão na frente, estão atrás, estão do lado, estão por cima. PolÃcia por todos os lados. Cercados. Não há para onde fugir, e mesmo assim, agridem.
“Foi a maior guerra aqui de manhã. Os guardas municipais atiraram com bala de verdade. Foi feioâ€, comenta Maria, que mora próxima à entrada do Pinheirinho e tem amigos lá dentro. “Tinha muita gente machucada. A escola foi queimada, o povo está revoltado. A polÃcia entra atirando, como se a gente fosse cachorro. Ninguém é cachorro aquiâ€.
“E não temos notÃcia lá de dentro. A gente só vai saber mesmo o que aconteceu lá dentro depois que o Choque sair daqui. Aà a gente vai ver o prejuÃzoâ€, complementa uma vizinha.
“Lá dentroâ€, como chamam a área cercada pela PM, ninguém entra.
Capitão Antero, do setor de comunicação, responsável pelo atendimento da imprensa, tenta ser simpático e convincente. Chove um pouco, os jornalistas são minguados nessa tarde, circulando como os moradores, de lado pra lado, desnorteados. Como a polÃcia também.
“Preparamos a escola para receber vocêsâ€, ele avisa, como um hostess de um clube. “Tem computador, lugar para descansar. Mas esta sala está sem energia. Podem circular à vontade por aquiâ€.
E passa a falar da organização da operação, do planejamento exato que diz ter sido feito, de como a PM não agiu com violência alguma, “o ferido foi em um confronto com a GCM (a Guarda Civil Municipal)â€.
Ao que importa: o que está acontecendo “lá dentroâ€? É possÃvel entrarmos?
A resposta: “nem acompanhado da polÃcia. Lá dentro ninguém entra. Onde está ocorrendo a ação não pode entrar. pois não podemos garantir a segurança.â€
Quanto mais perto da entrada do Pinheirinho, mais gente se aglomera.
Uns eram curiosos do bairro, excitados com toda aquela movimentação. Outros, moradores da região que achavam a reintegração absurda, assim como a ocupação militar na porta de suas casa.
E havia, claro, centenas de pessoas recém-despejadas. A área tinha cerca de 1.600 famÃlias. Todo mundo deveria sair imediatamente, deixando tudo o que tem em casa, para ter então a sua situação reconhecida pelas autoridades num processo que a polÃcia militar estava chamando, quando perguntada, de “recadastramentoâ€.
JanaÃna e Maria estão paradas em frente ao terreno onde a Prefeitura de São José dos Campos coloca os desabrigados. Observam tudo o que acontece. Maria está com o celular na mão, gravando vÃdeos e tirando fotos. Mostra imagens do carro da TV Vanguarda pegando fogo e de um policial empunhando uma arma contra ela e dizendo que não ela não podia filmar.
Começa uma correria dentro do alojamento. Depois de uma conversa rápida com um advogado do Pinheirinho, os moradores decidem derrubar parte da cerca dessa área onde estavam confinados pela Prefeitura. O lugar mais parece um campo de concentração do que de refugiados. Tudo vigiado pela Guarda Civil Metropolitana que manteve, ao longo de todo o dia, cenas de confronto quase ininterrupto com a população que era obrigada a entrar, pela PM, nesse reduto. Era algo como: se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come. Bicho mau, no caso a GCM, que foi ainda mais truculenta com os moradores.
Funcionários do municÃpio que colocavam arames farpados nas grades do terreno são surpreendidos por um grupo de 20 pessoas. Com algum esforço, um pedaço da cerca verde vai ao chão. Bombas de gás estouram naquela direção e ouve-se o barulho de tiros. Dois carros da polÃcia cantam pneus na rua do lado para afastar os moradores do bairro. Um militante do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Guilherme Boulos, é espancado pela polÃcia e levado preso. Horas depois, soube-se que ele recebeu cuidados médicos algemado.
Vem à mente a frase do capitão Antero: “ferido? só em um confronto com a GCMâ€. Bastava andar pelas ruas para ver pessoas mancando com faixas, como um senhor de setenta anos, todo machucado, ou jovens que mostravam as marcas de balas no corpo como tatuagens, ou Reinal Ferraz da Cunha, que levanta a calça para quem quiser ver a marca de bala de borracha em sua perna esquerda. “Foi à queima-roupaâ€.
O movimento diminui e a situação parece ficar novamente calma, mas tensa.
As tendas da praça são brancas, como aquelas utilizadas em raves e em shows de música, em festivais.
As placas eram simpáticas como se fossem para receber convidados. São parte do “planejamento minucioso da operação†mencionado pelo capitão Antenor – que fez questão de ressaltar que “a polÃcia Militar não faz atendimento socialâ€.
Faixas brancas com escritos azuis na entrada. A primeira delas dizia, de forma convidativa: “recepção.†Nas cadeiras apenas alguns moradores, nenhum funcionário.
Depois, como no parque temático, seguiam os dizeres de diversos serviços do Estado, aos quais os moradores do Pinheirinho não tinham acesso onde viviam: “Conselho Tutelarâ€; “Atendimento Social†(que “não é serviço da PMâ€, fez questão de ressaltar o capitão); “Alimentaçãoâ€; “Alojamentoâ€.
Mais um espaço com muitos computadores desligados, estes que serviriam para fazer o cadastramento da população. Quem planejou a operação, aparentemente, sabia como receber convidados em um grande evento. Não contava, no entanto, com a dura realidade da situação.
Ronaldo está na fila para passar pelo processo de triagem. “Triagem? Que diabos é isso? Só ouvi falar em trilhos lá em Minas Geraisâ€, balbucia.
“Eu construà uma casa de cinco cômodos no Pinheirinho e agora querem me mandar para tendas. Eu não sou Ãndio para morar em tendas!â€
Josias, pedreiro, já foi registrado no cadastro da Prefeitura. “Eles deram essa numeração aquiâ€, aponta para uma etiqueta colada no peito. “Disseram para tirarmos só os pertences de roupas, documentos. Nem no Rio de Janeiro, que tem traficantes perigosos, foi esse confronto todo. Aqui só tem gente humilde, trabalhadoraâ€, reclama.
“SaÃmos do Pinheirinho à s 4 horas da manhã. Já é de tarde e nem deram comida para a gente. Daqui a pouco a maioria de nós vai perder o emprego. Nem as nossas coisas querem que tirem. Amanhã, quando eu chegar na firma, eles não querem saber dos meus problemas. Se eu não aparecer, mandam embora. Todo mundo tá sem teto aquiâ€.
Em seguida, pães franceses – sem mortadela, manteiga ou algo do gênero – são distribuÃdos para mãos desesperadas.
Edvaldo, ao seu lado, está nervoso. “Aqui não é favela, é um bairro. Nós queremos que legalizem o terreno. Nós queremos construir as casas do nosso próprio bolso, não precisa dar nadaâ€.
“Chegaram à s 4 horas da manhã jogando bomba de gás. Já mataram gente, tem um aleijado. A Guarda Municipal deu três tiros num moleque. Eu viâ€, diz Josias. Nenhuma morte foi confirmada até agora, mas muitos boatos e depoimentos correm soltos, inclusive de uma criança pequena que teria falecido intoxicada com o gás lacrimogênio – algo que seria plenamente factÃvel pelas cenas que presenciamos.
“Já tem mortos lá dentro. Eu não vi, mas todo mundo está falando. Tem um que está no hospital, acordou agora. A mãe dele me disse que ele pode ficar paralÃtico. Não podia ter entrado com bala de verdade, mas todo mundo está usando elasâ€, afirma JanaÃna.
Pouco depois, quando a luz do fim do dia começa a se apagar, tem inÃcio um novo tumulto assim que um trator acelera em direção à ocupação.
Os moradores tiveram a certeza de que suas casas seriam derrubadas. Havia um cordão de policiais ao longo de uma corda azul de nylon. “Não pode passar da cordaâ€, gritou uma policial quando passamos, quase sem perceber, em direção ao Pinheirinho.
O motor do trator é barulhento. Atravessando essa avenida com um canteiro no meio, estava a praça na qual os moradores estavam reclusos, nas tais tendas.
O trator avança e a PM mantêm-se burocraticamente calma. Mas a notÃcia começa a se espalhar dentro da praça. E os moradores, assustados, a correr. Gritos. Xingamentos da PM. Ao lado dos policias, dois jornalistas vestem coletes a prova de bala da cor azul-claro (ou, o popular azul-calcinha). São da afiliada da Globo e foram os únicos autorizados a entrar dentro da área do Pinheirinho (uma exceção à regra da “imprensa não entra†emitida pelo Capitão Antero).
Pedras. Mais xingamentos. Surpresa. Gritos agudos de mulheres em prantos: “minhas coisasâ€. “Filhas da putaâ€. “Filma isso†e “fala a verdade aÃ, o Globoâ€.
Desesperados, e atrás das grades altas, verdes, os moradores temiam ser passados para trás mais uma vez. Os papéis que haviam recebido para, depois do confronto, retornar à s suas casas e retirar seus pertences, não serviriam para nada. Enfeitariam o chão das ruas, voando com o vento dos carros da polÃcia que passavam correndo a alta velocidade e cantando pneus para assustar aos moradores.
Os escudos foram armados. Passaram informação no rádio e um pelotão veio caminhando em passo firme pela rua que faz a divisa com o Pinherinho. Passo militar. Foi cômico quando o primeiro da fila parou e levantou a mão, e os últimos, sem prestar a atenção, olhando para as pedras e os xingamentos, juntaram-se a ponto de tropeçar nos parceiros da fila.
Alguns carregavam granadas de gás na mão. Foi dada a ordem para preparar. E avançaram em direção à grade e pela rua. Muitos tiros e bombas são lançados para a praça. Alguns policiais, mais atrevidos e nervosos, correram até a grade, aos gritos: “O Pinheirinho agora é nossoâ€, disse um, sem identificação, atirando. Apontava a arma reta, na altura do ombro.
Nas tendas agora enfestadas de fumaça tóxica também estavam mulheres, crianças, famÃlias. Todas deitadas, pensando ser ali o alojamento. A GCM se somou à PM e respondia com tiros e mais bombas em direção aos manifestantes, recuados numa ponta. Atacados dois lados, eles não sabiam mais para onde correr. Gritos, muitos gritos de desespero.
Na rua, todos entram na primeira casa que viam com o portão aberto. A polÃcia segue avançando em paralelo à grade. Muita fumaça. Tanta fumaça que o pelotão, em mais uma cena de comédia e tragédia, passava pelo meio da fumaça que haviam provocado para assustar os moradores e terminava com os próprios olhos ardendo. Dava para ver os policiais lacrimejando – como nós, ali do lado.
Mas mesmo com os olhos inflamados, sem máscara e com a visão prejudicada, eles não paravam de atirar. Claramente assustados, tentavam assustar ainda mais os moradores.
Os boatos continuavam a circular. Duas moradoras mostram os números que haviam ganhado num papel. Outra, uma pulseira azul, utilizada por várias senhoras. A pulseira servira para marcar os moradores legÃtimos do Pinheirinho que teriam direito a um alojamento. E os números distribuÃdos seriam o direito ao retorno a suas casas para recolher os bens. Assim pensavam as entrevistadas. Nova decepção veio quando surgiu a possibilidade de que seus bens seriam enviados para a cidade de Osasco. Será que nunca mais ninguém ali veria a sua casa? O jardim, o colchão. A pia da cozinha. A horta. A rua. A janela. O quarto. Onde dormir naquele domingo? “Nesse alojamento onde eles jogaram bomba agora? Eu é que não vou dormir aÃ. Prefiro dormir na ruaâ€, disse uma moradora. “Eu é que não fico aà com as criançasâ€, garante JanaÃna.
Um jovem magro, cabelo descolorido, camisa sem manga, chega junto para puxar conversa. Dar uma real. Olha a fumaça. “Tá ouvindo os grito das muié?â€, pergunta. “Vou dizer uma coisa pro senhor: eu sou bandido. Sou mesmo, não nego. Mas esses daÃâ€, aponta para a polÃcia, “esses daà são cruel. O que eles tão fazendo com as mulher e as crianças nóis num faz não.â€
Nesse momento, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, em última instância o responsável pelas ações da PolÃcia Militar, posta em seu twitter um “feliz ano novo†chinês.