Marcelo Semer
De São Paulo
Levantamento recente da Folha de S. Paulo concluiu que a superlotação nos presÃdios do Estado passou do sustentável e exigiria hoje nada menos do que a construção de dez penitenciárias por ano para se equilibrar.
Mais de vinte pessoas são presas por dia a mais daquelas que são soltas, inflando sem parar as estatÃsticas prisionais.
Mesmo assim, na primeira audiência pública para discutir o novo Código Penal, elevaram-se vozes a pressionar a Comissão justamente para aumentar as penas.
O encarceramento brasileiro caminha a passos largos para seguir números norte-americanos, o maior Ãndice de aprisionamento mundial.
E o que ganhamos com isso?
Como a experiência tem nos demonstrado há décadas, mais prisão não faz diminuir a criminalidade. Ao contrário, a médio prazo só a incrementa.
Leis draconianas e interpretações rigorosas expõem um número cada vez maior de jovens ao contato com organizações criminosas, e os afastam da reinserção social.
Afinal, se todos querem um funcionário ficha limpa, quem vai empregar os egressos? E o que farão depois, sem chance de trabalho?
De outro lado, a grande mÃdia incensa sem parar a sanha prisional.
Os crimes são maximizados, de modo a que cada um dos leitores ou espectadores possam se sentir vÃtimas a todo momento.
As pessoas são convidadas a participar de julgamentos midiáticos que rapidamente se transformam em linchamentos e esvaziam o sentido do processo.
Quando um réu é absolvido, jamais pode ser simplesmente inocente. Ele apenas se “livra” da acusação.
Nem mesmo a condenação consegue aplacar a sede de punição. Todas as penas são tidas como irrisórias. O sistema progressivo, de longa tradição no direito penal, é traduzido como pura ausência de sanção. E um crime após a soltura ameaça prejudicar a liberdade de todos os demais que cumpriram as regras estabelecidas.
Apesar de estarmos em um crescimento geométrico do número de presos no paÃs, nunca é suficiente para espantar a mÃstica do “sentimento de impunidade”.
Em resumo, é prender ou prender.
Até os juÃzes acabam por se contaminar com esse recrudescimento da moral punitiva.
Mas será que a sociedade está disposta a pagar o preço de um sistema fincado no crescimento contÃnuo das penas?
Muito em breve é possÃvel que sejamos convidados à criação de uma nova CPMF, desta vez para as cadeias. Ou então continuaremos desviando recursos de áreas sociais para atenuar esse incontido sentimento de vingança.
É preciso entender que punir nem sempre significa prender – e aplicar a prisão a crimes menos graves é um verdadeiro contrassenso. Até porque os Ãndices de reincidência são muito maiores dentro do que fora das grades.
A ânsia de mais e mais punição é uma forma demagógica que polÃticos encontram para lidar e lucrar com o medo alheio. Mas está nos fazendo apagar fogo com querosene.
Um dos mais crescentes Ãndices de aprisionamento se encontra nos pequenos traficantes.
A “guerra contra as drogas” está lotando as cadeias de jovens primários, operários do comércio que não passam de meras peças de reposição. Suas prisões em nada esvaziam os negócios ilÃcitos, mas ao sair das celas terão grandes dificuldades de retornar ao convÃvio social. E seremos nós, não apenas eles, que perderemos com isso.
Permanece ainda uma enorme resistência dos juÃzes na aplicação de penas restritivas de direito, fazendo com que a jurisprudência garantista dos tribunais superiores continue acessÃvel a poucos.
Há muito que fazer no sistema penal para corrigir suas históricas distorções.
O fim do foro privilegiado para autoridades e a expansão das defensorias públicas para os carentes, por exemplo, são medidas que podem contribuir para reduzir as enormes desigualdades da justiça.
Mas o Congresso e os governos não têm se mostrado dispostos a concentrar esforços em nome da igualdade. Continua sendo mais fácil encontrar e punir os suspeitos de sempre.
O discurso pelas penas mais rigorosas pode até ser um mantra eleitoral com dividendos sedutores.
Mas é bom ter em mente que o crescimento desenfreado do direito penal apenas promete aprofundar um quadro que já está à beira do abismo.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação JuÃzes para a Democracia. Coordenador de “Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho” (LTr) e autor de “Crime ImpossÃvel” (Malheiros) e do romance “Certas Canções” (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem JuÃzo.