DÉBORA MISMETTI
EDITORA-ASSISTENTE DE “SAÚDE”
Uma montanha de documentos sigilosos da indústria do tabaco, tornados públicos por causa de processos judiciais, são a matéria-prima do historiador americano Robert Proctor no livro “Golden Holocaust” (“Holocausto Dourado”, sem edição no Brasil).
Usando a munição dada pelos próprios fabricantes, o professor na Universidade de Stanford mostra como a indústria alterou o produto para causar cada vez mais dependência e relata suas estratégias para incluir o cigarro no cotidiano, como a promoção de aulas para mulheres aprenderem a fumar.
Questões raciais também aparecem no exaustivo trabalho do pesquisador. Segundo os documentos, um fabricante afirma que os negros americanos gostam de cigarros mentolados porque eles esconderiam seu “odor racial”.
Proctor, 57, falou por telefone à reportagem e comentou a resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que baniu os cigarros com aromas mas manteve a permissão à adição de açúcar ao tabaco, decisão errada, na opinião dele.
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Folha – O Brasil acaba de proibir cigarros com sabor, como mentolados. O uso do açúcar, que também estava na pauta de discussão, continuou permitido. Foi o passo certo?
Robert Proctor – Não. Deveriam ter proibido também o açúcar, porque ele torna o tabaco muito mais mortÃfero.
Isso tem a ver com o fato de a presença de açúcar no cigarro facilitar a inalação da fumaça?
Sim, toda a epidemia de câncer de pulmão no mundo é devida à grande proporção de açúcar adicionado ao tabaco. A coisa mais importante, porém, seria eliminar a nicotina.
Se isso fosse feito, seria a medida de saúde pública mais importante na história da humanidade. É isso o que a indústria não quer. Documentos secretos mostram que eles sabem que, se a nicotina for retirada, as pessoas não vão mais fumar e o negócio deles será liquidado.
Nessa regulamentação, os protestos da indústria foram centrados na questão do açúcar, que acabou permitido.
A indústria é poderosa e acaba conseguindo o que quer. O interessante seria voltar ao processo de fabricação pré-século 19 e só permitir cigarros que façam uma fumaça com pH [nÃvel de acidez] 8 ou maior.
A indústria faz os cigarros para que eles sejam tragáveis ao máximo para causarem a maior dependência possÃvel. Qualquer regulamentação que propusesse isso ia ameaçar os lucros. Eles querem ter controle sobre o processo produtivo e não querem que ninguém os diga o que fazer.
A indústria aqui diz que não há prova de que os cigarros com sabor façam mais mal que os cigarros comuns. Como as pessoas têm a liberdade de comprar cigarros, também deveriam poder comprar os aromatizados.
Uma tragada no cigarro mentolado não é pior do que no cigarro comum. Mas o fato de que há mentol no cigarro o deixa mais mortal porque torna mais fácil começar e continuar a fumar e engana as pessoas, fazendo-as pensar que os cigarros são mais seguros.
Cigarros mentolados são quase um tipo de doce. Muitos dos ingredientes usados pela indústria têm a função de transformar o cigarro num docinho.
Você propõe que os cigarros industrializados sejam proibidos e que cada um plante o seu tabaco se quiser fumar. Você acredita que isso vá acontecer num futuro próximo?
Sim, não tenho dúvida. Não sei se em 20, 30 ou 50 anos, mas vai acontecer. O cigarro é ambientalmente insustentável. E os fumantes não gostam do fato de que fumam.
Cigarro não é uma droga recreativa, é um vÃcio. A maioria dos fumantes diz que gostaria de parar, mas não consegue. É tão difÃcil de largar quanto heroÃna e cocaÃna. Pesquisas mostram isso.
A defesa da venda dos cigarros se baseia na liberdade individual. Por que você não concorda com esse argumento?
Isso é orwelliano, kafkaniano. A indústria está dizendo que escravidão é liberdade. Fumar rouba a sua liberdade, não cria liberdade. As pessoas são condenadas a fumar, é uma escravidão. É muito diferente de beber. Só 3% das pessoas que bebem são alcoólatras. Mas 80% ou 90% dos fumantes são viciados. “Fumar não é como beber, é como ser um alcoólatra.” Essa citação é de um documento secreto de uma fabricante de cigarros do Canadá. Eles sabem disso.
O que não fazem é tornar a informação pública. Eles nunca admitiram que milhões morreram por causa do cigarro, que fizeram anúncios dirigidos a crianças, que manipulam a quÃmica da nicotina para maximizar o vÃcio. Ração para cachorro tem regulamentações mais rigorosas. Eles nunca divulgam os ingredientes contidos no cigarro. Se os fumantes soubessem o que tem ali, ficariam estarrecidos.
Como uma indústria que faz tudo isso conseguiu prosperar no mundo todo?
É o vÃcio duplo. Os governos têm culpa porque encorajam o tabaco, é muito fácil cobrar impostos em cima dele. Na Inglaterra nos anos 50, 20% das receitas estatais vinham de impostos sobre cigarros. Na China, há dez anos, a fatia era de 12%. É sempre assim: o ministério da saúde odeia o cigarro e o das finanças, adora. Hoje, isso diminuiu bastante, mas o cigarro ainda é uma fonte importante de renda para o governo.
A outra razão é que não foi até 50 anos atrás que surgiram provas irrefutáveis de que o cigarro matava. Houve muito ignorância. É difÃcil imaginar uma indústria com mais poder do que a do tabaco. Eles penetraram e corromperam todos os aspectos da sociedade. Por isso é tão difÃcil pará-los.
Uma das partes mais interessantes do livro é a descrição de como o cigarro foi inserido no cotidiano, como a colocação de cinzeiros em carros. Na sua pesquisa, qual foi a ‘inserção’ mais curiosa que você encontrou?
Um dos meus achados favoritos é que o computador mais poderoso do mundo nos anos 50, o SAGE, projetado para preparar a terceira guerra mundial, detectando mÃsseis soviéticos, tinha cinzeiro e isqueiro embutidos. Você poderia apagar seu cigarro enquanto orquestrava o fim do mundo.